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“PODER” E “CONSEGUIR”: UM ESTUDO SOBRE SEUS USOS POR APRENDIZES DE PORTUGUÊS BRASILEIRO

“Poder” and “Conseguir”: A Study on their Usage by Learners of Brazilian Portuguese

“Poder” y “conseguir”: Un estudio sobre sus usos por aprendices extranjeros de portugués brasileño

Resumo

Estuda-se neste trabalho o uso dos verbos “poder” e “conseguir” entre aprendizes de nível básico de português como língua estrangeira (PLE). Esses verbos em contexto são discutidos sob uma perspectiva semântico-pragmática, sob a luz de teorias modais como as de Kratzer (1977; 1981; 1991; 2008; 2012) e outros, além de noções clássicas de “accomplishment” e de “achievement”, conforme Vendler (1957; 1967), Dowty (1979), Abusch (1985) e Smith (1997). Pelo fato de o par de línguas português brasileiro (PB) e espanhol divergirem em vários aspectos, o objetivo é verificar se ocorre ou não uma transferência não facilitadora do espanhol para o português, conforme Cabrelli et al. (2020). Analisados exemplos de sala de aula, o estudo sugere a possibilidade de adoção de práticas de awareness raising sobre essas diferenças entre o PB e o espanhol para que os aprendizes possam utilizar essas formas de modo apropriado conforme o contexto de uso.

Palavras-chave:
Modalidade; Português como língua estrangeira; Competência pragmática; Awareness Raising; Língua Espanhola

Abstract

In this paper, we study the use of the verbs “poder” and “conseguir” among basic level learners of Portuguese as a foreign language. These verbs in context are discussed from a semantic-pragmatic perspective, in the light of modal theories such as those of Kratzer (1977; 1981; 1991; 2008; 2012) and others, as well as the classical notions of “accomplishment” and “achievement”, according to Vendler (1957; 1967), Dowty (1979), Abusch (1985) and Smith (1997). Since the Brazilian-Portuguese (BP) and South American Spanish language pairs differ in several aspects, the objective is to verify wether or not non-facilitative transfer from Spanish to Portuguese occurs, according to Cabrelli et al. (2020). By analyzing the occurrences of these verbs in oral speech during classroom moments, the study suggests the possibility of adopting practices to raise awareness of these differences between BP and Spanish so that learners can use these forms appropriately according to their context of use.

Keywords:
Modality; Portuguese as a Foreign Language; Pragmatic Competence; Awareness Raising; Spanish Language

Resumen

Se estudia en este trabajo el uso de los verbos “poder” y “conseguir” entre los estudiantes de nivel básico de portugués como lengua extranjera. Estos verbos en contexto se discuten desde una perspectiva semántico-pragmática, a la luz de teorías modales como las de Kratzer (1977; 1981; 1991; 2008; 2012) y otros, así como de las nociones clásicas de “realización” y “logro”, según Vendler (1957; 1967), Dowty (1979), Abusch (1985) y Smith (1997). Debido a que los pares lingüísticos portugués de Brasil (PB) y español de América del Sur divergen en varios aspectos, el objectivo es de verificar se se produce una transferencia no facilitadora del español al portugués, según Cabrelli et al. (2020).Analizando las ocurrencias de los verbos in habla el estudio sugiere la posibilidad de adoptar prácticas de sensibilización sobre estas diferencias entre el PB y el español para que los alumnos puedan utilizar estas formas de forma adecuada según sus contextos de uso.

Palabras clave:
Modalidad; Portugués como lengua extranjera; Competencia pragmática; Awareness Raising; Lengua española

1. INTRODUÇÃO

Com o objetivo de fazermos uma análise sobre os usos dos verbos “Poder” e “Conseguir”, frequentemente utilizados de forma equivocada por falantes nativos de espanhol cursando Português como Língua Estrangeira (PLE) - em módulo online -, em um Curso de Letras de uma IES do sul do Brasil apresentamos, como ilustração, os exemplos abaixo, selecionados de amostra de sala de aula. Salientamos que, neste trabalho, utilizaremos o termo Português como Língua Estrangeira (PLE), como sinônimo de Português como Língua Adicional (PLA) e Português como L1 (PL1), assim como Língua Estrangeira (LE) como sinônimo de Língua 2 (L2):

  • (1) Eu necessito de ajuda (necesito tu ayuda)/Preciso de ajuda/I need help.

  • (2) Esta é Laura, minha noiva/(esta es Laura mi novia)/Esta é a Laura, minha namorada/This is my girlfriend Laura.

  • (3) Não posso suportar isso/Não consigo suportar isso/(no puede soportarlo)/Não aguento isso/I can’t stand it.

Nesses casos, há três instâncias de transferência linguística no processo de aprendizagem e aquisição de uma segunda ou terceira língua, em que ela pode ser ou não apropriada dependendo do contexto em que se encontra. O exemplo (1) encontra-se no meio termo de uma adequação. Não está errado usar “necessitar”, mas é mais comumente usado pelos falantes nativos de Português Brasileiro (PB) - pelo menos no RS - o verbo “precisar”. O exemplo (2) apresenta uma transferência no nível lexical, chamada de não facilitadora; “novia” não é noiva, mas namorada, podendo, por isso, haver um problema de comunicação. O exemplo (3), por fim, apresenta o verbo “poder” ou “conseguir” de forma epistêmica, mas deixando de lado a expressão corriqueira no PB com o verbo “aguentar”.

Tendo em vista o exposto, nosso artigo preocupa-se basicamente com questões ligadas ao exemplo (3), ou seja, o uso de verbos modais ou quase-modais como “poder” e “conseguir” por aprendizes de PB. Para tanto, nosso cenário teórico envolve questões de PLE e fenômenos com os quais se ocupa, aquisição de competência pragmática, modalidade na sua visão semântico-pragmática como delineada por Kratzer (1977KRATZER, Angelika. What “must” and “can” must and can mean. Linguistics and Philosophy 1:337-355, 1977.; 1981; 1991; 2008; 2012) e outros, além das noções clássicas de “accomplishment” e de “achievement”, conforme Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967), Dowty (1979DOWTY, David. Word meaning and Montague Grammar. Dordrecht: D. Reides Publishing Company, 1979.), Abusch (1985ABUSCH, Dorit. On verbs and time. (1985). Doctoral Dissertations 1896 - February 2014. Disponível em: https://doi.org/10.7275/zvey-4x7. Acesso em: 11 jul. 2022.
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) e Smith (1997SMITH, Catherine. The Parameter of Aspect. Studies in Linguistics and Philosophy, v. 43. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1997.), nos dados coletados em sala de aula, os quais ilustram o nosso trabalho.

Para dar conta do nosso arcabouço teórico, iniciaremos nossa proposta situando o percurso a partir dos estudos pragmáticos que se preocupam com a aquisição e competência pragmática no âmbito da língua adicional, no nosso caso, especificamente, o da competência pragmática em PLE.

2. DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA PRAGMÁTICA EM PLE

A competência pragmática é um aspecto bastante significativo de habilidade linguística que pode - e deve - ser desenvolvida em aulas de língua adicional com vistas a melhorar a habilidade de os aprendizes desenvolverem uma comunicação significativa. No caso específico deste artigo, as autoras observaram que nas aulas de português como língua estrangeira os alunos de origem latina produzem algumas construções que, aparentemente, são transferidas do espanhol para o português, como é o caso do verbo “poder” no lugar do verbo “conseguir”, o que pode causar estranhamento no entendimento da fala.

Segundo Cabrelli et al. (2020CABRELLI, Jennifer; IVERSON, Michel; GIANCASPRO, David; GONZÁLEZ, Becky H. The roles of L1 Spanish versus L2 Spanish in L3 Portuguese morphosynthatic development. In: Linguistic Approaches to Portuguese as Additional Language. XXX; XXX; XXX (eds.) Amsterdam: Johns Benjamins Publishing Company, 2020.), em função da sua considerável semelhança, a transferência do espanhol facilita no processo de aquisição quando o aprendiz está adquirindo o PB. Este argumento está presente em estudos que comparam a aquisição do PB (CABRELLI; AMARO et al, 2009) entre falantes de inglês e espanhol. De acordo com Wiedemann (2009WIEDEMANN, Lyris. Portuguese for Spanish Speakers - what research tells us. Trabalho apresentado no Annual Meeting of the American Association of Teachers of Spanish and Portuguese. Albuquerque, Novo México, EUA, 2009.), estima-se que os monolíngues de inglês precisam do dobro de tempo para adquirem o português quando comparados com monolíngues de espanhol

Entretanto, o par de línguas PB e espanhol diverge em vários aspectos, principalmente quanto a questões relativas ao uso de modais e seus respectivos aspectos semântico-pragmáticos, conforme veremos no artigo. De acordo com esses estudos, no caso do espanhol para o português, essa transferência é considerada não facilitadora (CABRELLI et al, 2020CABRELLI, Jennifer; IVERSON, Michel; GIANCASPRO, David; GONZÁLEZ, Becky H. The roles of L1 Spanish versus L2 Spanish in L3 Portuguese morphosynthatic development. In: Linguistic Approaches to Portuguese as Additional Language. XXX; XXX; XXX (eds.) Amsterdam: Johns Benjamins Publishing Company, 2020., p. 12): “A tarefa dos alunos de língua espanhola de PB nesses casos é, portanto, superar a influência não facilitadora do espanhol”1 1 No original: “The task of Spanish-speaking learners of BP in these cases is thus to overcome the non-facilitative influence of Spanish.” .

Acreditamos que essa influência não facilitadora possa ser sanada através do desenvolvimento de competência pragmática na aula de PLE, no qual os aprendizes sejam conscientizados sobre as diferenças entre o espanhol e o PB, através de uma metodologia que inclua atividades de awareness raising, sobre as diferenças entre o espanhol e o PB, especificamente nos casos dos modais supracitados. Segundo Ishihara (2007ISHIHARA, Noriko. Web-based curriculum for pragmatics instruction in Japanese as a foreign language: An explicit awareness-raising approach. Language Awareness, 16 (1),2007), p. 21-40.) descreve, awareness raising são estratégias linguísticas necessárias para que os alunos desenvolvam consciência sobre como aplicar formas apropriadas em um contexto de L2. Para Parajuli (2022PARAJULI, Klehor. Enhancing Pragmatic Competence in Language Learners. A Peer Reviewed Journal in Social Sciences, v. 1, n. 1, Feb. 2022, p. 14-23, https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/22525/14891. Acessos em setembro de 2019 e julho de 2022.
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), o ensino explícito da competência pragmática deve ser incluído nas aulas de língua adicional. Ishihara e Cohen (2014) sustentam que o conhecimento sobre pragmática permite que os aprendizes desenvolvam insights sobre como a língua deve ser usada em contextos diferentes, indo além do sentido literal do que é dito ou escrito para comunicar o sentido pretendido. Para Timpe-Laughlin et al (2015), a habilidade em usar a língua de forma apropriada dentro de um contexto é uma característica fundamental e comumente descrita como competência pragmática.

Essa afirmação pode ser ampliada para situações de escolhas lexicais nas quais os aprendizes têm de lançar mão de expressões que demandam o uso de verbos que são utilizados de forma diferente nas línguas, conforme suas origens e usos, como é o caso de “poder” e “conseguir”, objeto de nossa análise. Tais verbos são costumeiramente utilizados de forma adequada pelos falantes nativos do PB, como podemos perceber em situações corriqueiras de diálogos e também em contextos formais e escritos da língua. No entanto, a experiência das aulas de português para estrangeiros2 2 As aulas de português para estrangeiros na PUCRS são ministradas em módulo online síncrono. em níveis iniciais de aprendizagem da língua e a descrição sobre os verbos “poder” e “conseguir” na plataforma de ensino Speaking Brazilian3 3 Speaking Brazilian (https://www.speakingbrazilian.com/) é uma plataforma online de PLE que apresenta conteúdos interessantes sobre a língua com o propósito de oferecer cursos de português a falantes estrangeiros. apontam que esses mesmos verbos parecem sinônimos aos aprendizes de PB e são comumente utilizados de forma indistinta: o verbo “poder” muitas vezes é utilizado com o sentido de “conseguir” por falantes não nativos. Esse seria um fenômeno comum entre falantes nativos de espanhol e falantes de inglês (nativos ou não). Entre as hipóteses que explicariam esse fenômeno estão o princípio de transferência linguística, próprio dos processos bilíngues em que características da L1 são incorporadas à L2.

Conforme mencionado anteriormente, especialmente em línguas de mesma família como o PB e o espanhol, alguns aspectos desse processo de transferência são considerados facilitadores (CABRELLI et al., 2020CABRELLI, Jennifer; IVERSON, Michel; GIANCASPRO, David; GONZÁLEZ, Becky H. The roles of L1 Spanish versus L2 Spanish in L3 Portuguese morphosynthatic development. In: Linguistic Approaches to Portuguese as Additional Language. XXX; XXX; XXX (eds.) Amsterdam: Johns Benjamins Publishing Company, 2020.) por proporcionarem uma apropriação mais veloz da língua-alvo, além de apreensão vocabular, ao passo que outros são considerados não facilitadores por dificultarem a aquisição da nova língua e tornarem menos veloz esse processo e, por interferirem, são chamados de interferência.

Retomamos alguns exemplos da introdução deste artigo para explicar esse fenômeno:

  • (1) Eu necessito de ajuda (transferência facilitadora do espanhol);

  • (2) Esta é Laura, minha noiva (transferência não-facilitadora do espanhol).

Os verbos “necessitar” e “ser” não são objeto de estudo deste artigo, mas as sentenças (1) e (2) apresentam bons exemplos de transferência do espanhol, que podem ocasionar tanto um benefício, pela familiaridade das línguas em questão, quanto um prejuízo para aprendizes latinos de PB e, por isso, foram escolhidas para ilustrar esse fim.

Em (1) temos um exemplo de transferência facilitadora, em que a correspondência do espanhol é praticamente a mesma: “necessito ayuda”. Em (2) temos uma transferência não facilitadora ocasionada pelo termo espanhol “novia”, que significa namorada, o que comumente ocasiona problemas de comunicação entre falantes de PB que desconhecem esse significado em espanhol.

Por definição, uma interferência decorre de uma transferência não facilitadora direta de um uso/expressão da L1, o que gera um prejuízo de apropriação e aquisição da L2. Por exemplo, a transferência direta de expressões que são frequentemente usadas nas formas coloquiais do espanhol, como em “yo no puedo con esto”; ou no inglês a transferência dos modais “can/could”, como em “I can’t help it,” e “I couldn’t make it”- na ausência no caso do inglês de um correlato mais adequado que representasse os significados lexicais, semânticos e pragmáticos da expressão em espanhol. Se transferidas de forma direta para o PB essas expressões (“yo no pude com esto”; “I can’t help it” e “I couldn’t make it” ) podem causar prejuízo de significado.

Ocorre que essas escolhas lexicais, além de geraram dúvidas entre falantes não nativos de PB, dificultam a proficiência da língua-alvo e também podem dificultar a compreensão e a comunicação e até mesmo causar certo estranhamento quando usadas em situações de diálogo com falantes nativos de PB.

Sobre o tema, podemos observar os seguintes exemplos4 4 As explicações desses exemplos serão apresentadas na seção 4 deste artigo, intitulada Reflexões sobre o uso dos verbos. :

  • (4) “Eu não posso acessar ao sistema”;

  • (5) “Eu não posso achar as chaves”;

  • (6) “Eu não posso abrir a porta”;

  • (7) “Ele não pode achar a resposta”;

  • (8) “Eu não posso chegar mais cedo”.

Observamos nas aulas de PLE que os falantes de contexto hispânico-latino têm uma tendência a transferir expressões que se pareçam com as de uso na sua língua materna. Esse fenômeno também ocorre entre falantes de outros contextos bilíngues, que sabem inglês, que aprenderam o PB a partir do inglês, ou que sabem outras línguas, e que não têm a compreensão clara do significado dos verbos “poder” e “conseguir” no PB e tampouco de seus usos, conforme sinalizam os exemplos da plataforma Speaking Brazilian5 5 É importante explicarmos que a plataforma Speaking Brazilian é destinada a falantes não nativos de PB e apresenta textos e vídeos curtos sobre aspectos gramaticais que costumam causar dúvidas entre esses aprendizes da língua. Os conteúdos são sempre explorados de forma didática e bilíngue (português-inglês), de forma a desenvolver habilidades de leitura entre os aprendizes de PB e também a contemplar falantes nativos que possam ter dúvidas ou algum interesse nos aspectos gramaticais apresentados. :

Tabela 1
Exemplos com os verbos “poder”e “conseguir” na plataforma Speaking Brazilian:
Tabela 2
Exemplos com os verbos “poder”e “conseguir”na plataforma Speaking Brazilian:

Os exemplos da plataforma somados à experiência em sala de aula dos alunos do Programa de Português para Estrangeiros mencionado anteriormente, todos de origem latina, nos permitem dizer que a dúvida sobre qual verbo utilizar (“poder” ou “conseguir”) em diversos contextos é bastante corriqueira entre falantes não nativos de PB, sobretudo aqueles de origem hispânica e os que aprenderam o PB a partir do inglês (sendo falantes nativos de inglês ou não, que tiveram acesso à instrução de PB através do inglês, como na plataforma Speaking Brazilian). Podemos considerar nesses casos o inglês como uma língua mediadora, sendo L2 ou não, para a língua-alvo em questão, o PB, que pode funcionar como uma L2, ou L3, ou ter outra classificação de acordo com as proficiências e conhecimentos de línguas dos aprendizes.

Observamos que os falantes estrangeiros compreendem os verbos “poder” e “conseguir” como uma tradução correlata para os modais “can/could” do inglês, sobretudo nos contextos de fala em que são utilizados. Do espanhol também podemos depreender um uso coloquial frequente da expressão “yo no puedo con esto”, com significado semelhante a “eu não estou suportando isso”, o que poderia explicar a preferência pelo uso do verbo “poder” no sentido, de “suportar/conseguir” como uma transferência do espanhol. Essa expressão é apenas um exemplo que ilustra esse fenômeno e que poderia dar conta de explicar o porquê de os falantes não nativos de origem latina preferirem utilizar o verbo “poder”, visto como um auxiliar e modal no PB, como será analisado no decorrer deste artigo.

O exemplo da expressão coloquial em espanhol “yo no puedo con esto” e os exemplos (4-8) com o uso indevido do verbo “poder” no PB nos demonstram a importância do uso do contexto e, portanto, da competência pragmática, nas escolhas lexicais, e evidenciam, especialmente, o quanto essas escolhas podem ser eclipsadas por falantes não nativos e não tão proficientes em uma língua adicional. À primeira análise, a escolha do verbo “conseguir” nos parece ser a mais adequada do ponto de vista da pragmática para os contextos em que foram elencadas as sentenças (4-8). Não obstante, esta também nos parece ser a escolha semântica mais adequada e, portanto, a opção pragmático-semântica mais acertada do uso desses verbos, e até mesmo a naturalmente escolhida por falantes nativos do PB, e que também evitaria estranhamentos entre os falantes nativos.

A experiência das salas de aula de português para estrangeiros de uma IES no sul do Brasil, a descrição da plataforma e o que foi apresentado nesta seção nos levam a crer que são necessárias discussões semânticas e pragmáticas para a compreensão mais adequada do fenômeno de substituição de “poder” por “conseguir”.

Para tanto, precisamos considerar alguns dos principais conceitos de modalidade, tais como categoria (epistêmica, deôntica, circunstancial etc.) e força modal, conforme o exposto por Kratzer (1977KRATZER, Angelika. What “must” and “can” must and can mean. Linguistics and Philosophy 1:337-355, 1977.; 1981; 1991; 2008; 2012) e von Fintel (2006), além de evidenciarmos com uma breve discussão sobre a importância de um estudo mais detalhado acerca da modalidade no PB, língua em que a classificação da modalidade ainda é pouco mapeada segundo Pires de Oliveira (2014), principalmente no que se refere à interface com teorias pragmáticas para aquisição de uma L2.

Além disso, pretendemos discorrer sobre as diferenças semânticas e pragmáticas dos verbos “poder” e “conseguir” no PB com o intuito de trazer para a discussão neste artigo, a partir da divisão verbal proposta por Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967), os conceitos de “achievement verb” e “accomplishment verb” e o sentido apropriado do uso dos verbos “poder” e “conseguir”.

3. PODER X CONSEGUIR: UM DESDOBRAMENTO SEMÂNTICO-PRAGMÁTICO?

Para o propósito deste artigo, apresentaremos apenas o âmago da questão dos modais, como entendido por Kratzer (1977KRATZER, Angelika. What “must” and “can” must and can mean. Linguistics and Philosophy 1:337-355, 1977.; 1981; 1991; 2008; 2012) e von Fintel (2006)6 6 Não apresentaremos todo aparato teórico, nem tampouco a formalização dos tipos de modais, uma vez que não é a questão central do texto. , em que se entende modalidade como uma predicação de segunda ordem que pode evidenciar tanto possibilidade quanto necessidade, podendo ser expressa por verbos auxiliares, adjetivos, advérbios, substantivos e sufixos (através da morfologia dos verbos), e até mesmo do sentido inerente dos verbos. Por isso, a modalidade é um recurso próprio da cognição humana e da linguagem (MONAWAR, 2016MONAWAR, Monica. Modality and evidentiality: a discussion of philosophical and formal aspects. In: Letras de Hoje, v. 51, n. 3, jul-set., 2016, p.412-420. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/22525/1489. Acesso em 11 jul. 2022.
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), que expressa o possível, o provável, o permitido, o proibido, entre outras construções lógicas. Modalidade é entendida como uma relação de quantificação sobre mundos possíveis (cf. Kratzer). A quantificação codifica o que interpretamos como “poder “e “dever” numa relação epistêmica, circunstancial ou deôntica. Nos exemplos abaixo (PORTNER, 2008, p. 2), observamos o uso de “must” (dever) classificado em pelo menos duas categorias:

  • (9) John must be sick;

  • (10) John must apologize.

“Must” é epistêmico em (9), ou seja, está relacionado a conhecimento, e é deôntico em (10), relacionado a um sistema de regras7 7 Dado um contexto conversational f , define-se o modal em sua relação dentro do mundo w. Epistêmico: f(w) um conjunto de fatos conhecidos em w Deôntico: f(w) é um conjunto de regras em vigor em w Teleológico: f(ww) i um conjunto de metas em w Bulético: f(w) é um conjunto de desejos em w Circunstancial: f(w) um conjunto de circunstâncias determinadas em w Estereotípica: f(ww) um conjunto de expectativas em relação ao que w é. . A diferença entre os vários usos de um dado modal, de acordo com Kratzer (2008), é determinada por tipos de mundos possíveis8 8 A ideia de modalidade também está presente na teoria dos mundos possíveis (LEWIS, 1986/1998) “há muitas maneiras pelas quais as coisas poderiam ter sido além da maneira como elas são”. A partir de condicionais e de atitudes proposicionais, é possível formular hipóteses sobre situações que diferem da realidade (KRATZER, 2012). e se prende a duas funções independentes estabelecidas contextualmente (contexto conversacional), a saber: força modal e fonte de ordenação. A força modal aliada à fonte de ordenação dá origem à categoria modal, que pode ser, conforme mencionado, epistêmica, circunstancial e deôntica, entre outras classificações. Para cada uma dessas classificações, ainda de acordo com Kratzer (2008), é importante que se considere o contexto para o estabelecimento dessas categorias.

Para Kratzer (2012KRATZER, Angelika. Modals and Conditionals. Oxford Studies in Theoretical Linguistics. 2012.), existe força modal porque os verbos e as demais expressões que representam modalidade na linguagem podem ser organizadas em diferentes graus. Há verbos de modalidade forte e fraca. Algo importante a ressaltar é que, em línguas distintas, pode ser que o modal não se aplique da mesma forma, ou melhor, pode ser que tenhamos numa língua um único modal com diferentes forças, e em outra língua duas escolhas lexicais. Assim, em inglês dizemos:

  • (11) Laura can write (she learned it);

  • (12) Laura can write (there are no obstacles for her to write).

Já, em português, teremos:

  • (13) Laura sabe escrever (ela aprendeu);

  • (14) Laura pode escrever (não há obstáculos para isso).

Essa diferença de escolha lexical pode, em hipótese, ser um dos problemas relacionados a transferências realizadas por aprendizes de uma língua, fato que é interessante se considerarmos as questões de transferência em PLE por falantes não nativos de PB. Outro aspecto que pode contribuir para a compreensão dessas questões de transferência por aprendizes de PB é o uso do verbo “conseguir”. Para isso, é importante realizarmos uma breve descrição das categorias propostas por Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967), que tiverem desdobramentos em Dowty (1979DOWTY, David. Word meaning and Montague Grammar. Dordrecht: D. Reides Publishing Company, 1979.), Abusch (1985ABUSCH, Dorit. On verbs and time. (1985). Doctoral Dissertations 1896 - February 2014. Disponível em: https://doi.org/10.7275/zvey-4x7. Acesso em: 11 jul. 2022.
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) e Smith (1997SMITH, Catherine. The Parameter of Aspect. Studies in Linguistics and Philosophy, v. 43. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1997.).

Diferentemente do verbo “poder”, notadamente modal, o verbo “conseguir” assume outras características semânticas9 9 Alguns autores (QUARESMA; MENDES et al, 2014) sugerem que o verbo conseguir poderia assumir uma característica modal, sendo por isso, uma espécie de modal atípico. , que podem ser bem percebidas através da categorização verbal proposta por Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967) e retomada por diversos autores, entre eles Dowty (1979DOWTY, David. Word meaning and Montague Grammar. Dordrecht: D. Reides Publishing Company, 1979.), Abusch (1985ABUSCH, Dorit. On verbs and time. (1985). Doctoral Dissertations 1896 - February 2014. Disponível em: https://doi.org/10.7275/zvey-4x7. Acesso em: 11 jul. 2022.
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) e Smith (1997SMITH, Catherine. The Parameter of Aspect. Studies in Linguistics and Philosophy, v. 43. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1997.). Por ser um clássico, a atualidade e a funcionalidade da divisão verbal de Vendler é tal que pode ser explorada e aplicada a diferentes línguas, entre elas o PB.

Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967) propôs uma categorização de verbos para o inglês, a verbal schemata, dividindo-os em quatro grupos que posteriormente dariam origem aos papéis semânticos dos verbos e a uma série de teorias sobre aspecto verbal. Trata-se de um trabalho bastante precursor que se mantém atual pela relevância de suas contribuições. Sinteticamente, o autor dispõe os verbos nestas quatro categorias gerais, a saber:

Tabela 3
Categorias Verbais de Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.) 10 10 As autoras optaram por manter a nomenclatura original, a fim de evitar prejuízos de compreensão. Uma tradução possível para as categorias dos verbos seria: verbos de estado, verbos de atividade, verbos de realização e verbos de concretização, respectivamente. :

Conforme mencionado, dessas quatro categorias nos interessa desenvolver os “achievement verbs” e os “accomplishment verbs”. Um “achievement verb” é um verbo que expressa a realização de um feito, como nos exemplos dados por Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967) : “to reach the summit of a mountain”, alcançar o topo de uma montanha; “to won a race”, vencer uma competição. Obviamente, é necessário adaptarmos esta ideia para outros verbos, como fazem outros autores, tal como Smith (1997SMITH, Catherine. The Parameter of Aspect. Studies in Linguistics and Philosophy, v. 43. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1997.), e transpô-la para o PB.

Já os “accomplishment verbs” são descritos por Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967) como verbos contendo uma ação com um objetivo final, tais como “to run a mile”, correr uma milha, “to draw a circle”, desenhar um círculo. De igual modo ao exposto sobre “achievement verbs”, é necessário adaptarmos essa ideia e extendê-la a outros verbos e contextos, tais como “to walk to school”, caminhar para escola, como faz Saeed (2003). Smith (1997SMITH, Catherine. The Parameter of Aspect. Studies in Linguistics and Philosophy, v. 43. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1997.) também retoma essas ideias e estabelece outras relações para os verbos com conceitos e propriedades semânticas, tais como telicidade11 11 Propriedade em que distingue os verbos de modo geral como télicos (com um final de ação), e atélicos (sem um final de ação). .

É interessante mencionarmos que o autor também trata como casos à parte os verbos modais e outros casos específicos de verbos, ressalvando que estes não fechariam critérios para pertencer a determinado grupo de verbos, fato que corrobora para o argumento que defendemos neste artigo de que os verbos modais devem ser distinguidos das demais categorias de verbos. Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967) distingue inclusive casos em que verbos assumem mais de uma categoria e demonstra seus diferentes sentidos através de exemplos empíricos e contextuais, fato que corrobora também para a ideia que defendemos neste artigo de que apenas uma perspectiva semântico-pragmática seria a suficientemente adequada para explicar o uso dos verbos “conseguir” e “poder” no PB.

Acerca da modalidade no PB vamos considerar apenas a modalidade dos verbos auxiliares. O trio de auxiliares consagrado na literatura do PB (PIRES DE OLIVEIRA, 2007PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; MULEKANGOY, Francisco. Notas sobre a semântica do sufixo ‘VEL: A expressão da Modalidade no PB. In: Revista Letras, Curitiba, 73: set/dez 2007, p. 185-201. Editor UPFR. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/7546. Acessos em julho de 2022.
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, 2014; PESSOTTO, 2014PESSOTTO, Ana Lucia. Epistemic and Gradable Modality in Brazilian Portuguese: a Comparative Analysis of “poder”, “dever”and “ter que”. In: ReVEL, special issue n. 8, UFRGS, 2014, p.49-75. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/7ff183ad0e917431c7d51637a4231cfb.pdf. Acesso em: 11 jul. 2022.
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) é composto por dois verbos, “dever” e “poder”, e uma expressão verbal, “ter que”. Seguindo o aparato teórico de Kratzer (2012KRATZER, Angelika. Modals and Conditionals. Oxford Studies in Theoretical Linguistics. 2012.), é importante que as estruturas em que ocorrem esses verbos e a expressão verbal sejam analisadas de acordo com os contextos conversacionais para que possamos classificá-los adequadamente. No entanto, alguns estudos dão conta de explicar as classificações e ocorrências possíveis desses modais no PB, o tipo de quantificação que exercem e a força de sua modalidade.

Para Pessotto (2014PESSOTTO, Ana Lucia. Epistemic and Gradable Modality in Brazilian Portuguese: a Comparative Analysis of “poder”, “dever”and “ter que”. In: ReVEL, special issue n. 8, UFRGS, 2014, p.49-75. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/7ff183ad0e917431c7d51637a4231cfb.pdf. Acesso em: 11 jul. 2022.
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), o verbo modal auxiliar “poder” pode assumir as classificações deôntica, teleológica e epistêmica. Além disso, esse verbo expressa uma possibilidade em um mundo w, sendo assim um quantificador existencial. Já a expressão “ter que” denota obrigação, sendo, por isso, um modal de força forte, podendo assumir características deônticas, telológicas, ou epistêmicas, de acordo com o contexto das sentenças. Por fim, para a autora, o verbo “dever” é preferencialmente epistêmico, com evidências desse fato amparadas na intuição pragmática, na aquisição pragmática e na própria sintaxe do verbo auxiliar12 12 Outras classificações dos modais auxiliares do PB podem ser vistas em Lunguinho (2010). O autor difere de Pessoto (2014), entre outros aspectos, quanto ao verbo “dever” ser preferencialmente epistêmico. Para ele, os verbos “dever” e “ter que” funcionam como quantificadores universais, ao passo que “poder” é um quantificador existencial, conforme os exemplos: João deve/tem que comer frutas; João pode comer frutas. .

Considerando os três modais clássicos do PB, “ter que”, “dever” e “poder”, segundo as autores citados, o de maior força modal é a expressão “ter que”. É importante que se diga que não há um consenso entre autores sobre a força da modalidade entre os verbos “poder” e “dever”. No entanto, pode-se inferir empiricamente que o verbo “poder” exerce considerada força modal diante de verbos que tradicionalmente não expressam modalidade, pelo menos ao que se encontra na literatura, como o verbo “conseguir”, o que justamente pretendemos argumentar neste artigo.

Em relação ao verbo “conseguir”, normalmente fora da lista dos modais em língua portuguesa, assumimos a noção apresentada por Quaresma et al. (2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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), que avaliam “conseguir” como verbo modal com valor de capacidade interna do participante dentro da modalidade deôntica de permissão (VAN DER AUWERE; PLUNGIAN, 1998). Em outras palavras, quando se diz algo como

  • (15) Pedro conseguiu consertar a porta; ou

  • (16) Maria consegue tocar Beethoven de ouvido,

avaliamos “conseguir” com força modal de habilidade interna.

Posto isso, passamos para outra etapa de nosso artigo, que se constitui numa reflexão sobre os exemplos dados pelos alunos e retiradas da plataforma Speaking Brazilian.

4. PODER E CONSEGUIR: REFLEXÕES SOBRE SEUS USOS

Nesta seção discutiremos algumas das observações feitas nas aulas de português para estrangeiros e no que pudemos apreender da plataforma Speaking Brazilian.

Iniciaremos retomando os exemplos (4-8):

  • (4) Eu não posso acessar ao sistema.

  • (5) Eu não posso achar as chaves.

  • (6) Eu não posso abrir a porta.

  • (7) Ele não pode achar a resposta.

  • (8) Eu não posso chegar mais cedo.

Nessas sentenças, observamos situações em que o verbo “poder” foi utilizado com o sentido de não haver condições de se fazer determinada tarefa, e não com o sentido de que haveria algum impedimento de fazer determinada tarefa, como ocorre na sentença (4) “Eu não posso acessar ao sistema”. É possível percebermos que a sentença (4) gera duplo sentido que pode confundir ou causar estranheza entre os falantes nativos, já que não seria a escolha preferida no PB. Essa sentença conduz ao entendimento duplo de que ou há alguma restrição (regra) ao acesso ao sistema e, nesse caso, “poder” funcionaria como um modal deôntico, que impediria o referido sujeito de acessá-lo, ou de que o sujeito não teria condições de realizar determinada tarefa, e, nesse caso, seria um modal circunstancial.

Embora falantes nativos de PB não tenham consciência de suas escolhas lexicais, observamos que os falantes nativos de PB optam pelo verbo “conseguir” neste contexto. Conforme observamos nas salas de PLE, os aprendizes de níveis iniciais de PB de contexto latino geralmente utilizam de forma indistinta os verbos “poder” e “conseguir”.

Um fenômeno diferente ocorre nas sentenças (5) “Eu não posso achar as chaves”, (6) “Eu não posso abrir a porta”, (7) “Ele não pode achar a resposta” e (8) “Eu não posso chegar mais cedo”, em que todas as situações apresentam um modal de valor epistêmico, e a (6) também com a possibilidade de modal de valor deôntico. O processo inferencial e, portanto, a leitura empírico-pragmática das sentenças conduz ao sentido de que existe um impedimento, uma proibição das ações/atividades referidas.

Em (5) o sentido da sentença nos leva a crer que existe algum impedimento. O sujeito teria esquecido as chaves, por exemplo, para que as chaves não pudessem ser encontradas. Em (6) a porta não pode ser aberta porque não se tem as chaves ou porque o acesso a elas é restrito a determinadas pessoas (tendo, portanto, um valor deôntico). Em (7) ele não pode encontrar a resposta porque falta alguma parte no enunciado, na questão, ou porque faltam elementos para investigação. Em (8), por fim, a sentença fornece o sentido de que existe alguma razão, algum impedimento para que o sujeito chegue cedo.

Além disso, como no exemplo (4), existe um caso em que os verbos apresentam o mesmo sentido, o mesmo valor semântico. Este caso é quando se trata de capacidade ou habilidade (cf. Quaresma et al. (2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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)) em que os verbos indistintamente correspondem à mesma ideia de significado. Como nos exemplos abaixo:

  • (15a) Eu posso tocar a Sonata no. 5 de Beethoven (modal deôntico);

  • (15b) Eu consigo tocar a Sonata no. 5 de Beethoven (modal deôntico de habilidade interna);

  • (16a) Ele pode consertar a câmera fotográfica (modal deôntico);

  • (16b) Ele consegue consertar a câmera fotográfica (modal deôntico de habilidade interna).

Nos casos acima, os verbos são igualmente modais deônticos de capacidade interna, tanto a modalidade clássica do verbo “poder”, do que pretendemos discorrer ao longo deste artigo, quanto o próprio verbo “conseguir” que funciona como uma modalidade atípica como se poderia denominar (QUARESMA et al., 2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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). Essa modalidade atípica talvez seja reforçada tanto pelo sentido semântico do verbo como de suas funções pragmáticas, sendo, portanto, um caso em que ambos os verbos podem assumir mesmo significado. Porém, consideramos importante reconhecer o caso e saber suas especificidades.

Nesse sentido, seria interessante considerarmos as características pragmáticas do verbo “conseguir” no PB, o que podemos inferir ser a opção mais comum por falantes nativos nos casos exemplificados ao longo do texto. Aqui também cabem ressaltar alguns estudos do português europeu (doravante PE), que consideram o “conseguir” como um verbo modal, deôntico de capacidade interna, certamente instanciado por características pragmáticas próprias do uso da língua naquele país (QUARESMA et al., 2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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). De forma análoga, podemos considerar que tais ocorrências também sejam semelhantes no PB.

Na condição de “achievement verb”, o verbo “conseguir” não poderia ser utilizado de forma indistinta como sinônimo de “poder”, ressalvando-se os casos semântico-pragmáticos em que significa exatamente o mesmo que ter capacidade ou habilidade, e possibilidade de definições próprias do “poder” e de suas características de modalidade deôntica de capacidade interna. Assim, é reforçada a ideia que discutimos neste artigo de que apenas uma descrição e análise conjuntas, semântica e pragmática, seriam adequadas para a explicação do fenômeno dos verbos “poder” e “conseguir” no PB, especialmente, de se seu uso indistinto por parte de falantes não nativos.

Ainda considerando os falantes que aprendem PB a partir do inglês, como o observado na plataforma online Speaking Brazilian, torna-se um tanto difícil compreender que “conseguir” nos contextos informais em que este verbo é utilizado seja semanticamente distinto do verbo “poder”. Entre diversos motivos, podemos inferir que esses falantes em atividades de comando como as apresentadas no início do artigo nas sentenças (4-8) não conseguem perceber a diferença léxico-semântica e pragmática desses verbos. Uma das razões possíveis para este fato é a de haver comparações com o verbo “conseguir” e uma relação entre os auxiliares modais “can/could” entre aprendizes de PB que iniciam seus estudos nesta língua a partir do inglês, conforme sugere a plataforma Speaking Brazilian, e também por falantes nativos de espanhol europeu, que comparam o “can/could” com a língua espanhola. Vale ressaltar que, no caso de negação, é comum para falantes de espanhol usarem, em vez de “conseguir”, a expressão “no me sale”, como em:

  • (17) No me sale abrir la puerta/Não consigo abrir a porta.

Entendemos que uma proposta interessante está em explorar os significados dos verbos, ou significados possíveis que eles podem assumir, como o proposto pela autora da plataforma Speaking Brazilian, Virgínia Langhammer13 13 Virgínia Langhammer é falante nativa de PB, fluente em inglês, francês e espanhol e idealizadora da plataforma-escola Speaking Brazilian. .

Para o caso dos verbos “poder” e “conseguir” a plataforma apresenta diferentes exemplos em que os verbos podem assumir formas semânticas e pragmáticas, além de suas diferentes significações. Entre elas, o verbo “poder” significando o mesmo que o verbo “conseguir” (capacidade/habilidade), no sentido deôntico com valor de capacidade interna, o verbo “poder” com sentido permissão/proibição (modal deôntico clássico), o verbo “poder”com valor modal espistêmico e o verbo “conseguir” no sentido de alcançar um objetivo, um “achievement”, como nos exemplos que seguem, retirados da própria plataforma:

  • (18a) Eu posso correr 5 km (modal epistêmico);

  • (18b) Eu consigo correr 5km (modal com valor de capacidade interna);

  • (19a) Eu não posso ir ao cinema hoje porque ainda tenho trabalho (modal deôntico);

  • (19b) Eu não consigo ir ao cinema hoje porque ainda tenho trabalho (modal deôntico de capacidade interna).

No par (18a-b), os verbos “poder” e “conseguir” são sinônimos, pois significam ter uma habilidade, ter a capacidade de se fazer algo, ou representam a possibilidade de se fazer algo, assumindo a modalidade epistêmica em (a) e deôntica com valor de capacidade interna em (b). No caso, preferimos normalmente o verbo “conseguir” por modalizar a frase e, por isso, deve ser a escolha pragmaticamente mais usual. Porém, se o contexto for outro, e o falante quiser reforçar uma modalidade mais forte, menos branda, ele optará pelo verbo “poder”. Por exemplo, em um contexto em que o falante esteve um período acamado, recuperando-se de uma cirurgia, mas agora já está recuperado, ele poderia responder: “Eu posso correr 5km”. Como já dito anteriormente o contexto é fundamental para a compreensão do sentido das sentenças com modalidade. Já no par (19a-b), o verbo “conseguir” assume o mesmo sentido modal do verbo “poder” deôntico, modalizado, com uma força mais branda, representada pelo modal atípico “conseguir”, deôntico de capacidade interna.

  • (20a) Posso entrar? (modal deôntico);

  • (20b) Posso sair mais cedo? (modal deôntico);

  • (21a) Você não pode fumar aqui. (modal deôntico);

  • (21b) Mariana não pode dirigir porque ainda tem 16 anos14 14 Exemplo adaptado da Plataforma Speaking Brazilian para a realidade brasileira. (modal deôntico).

Os pares (20a-b) e (21a-b) expressam como única possibilidade o uso do verbo “poder” cujo modal deôntico indica a permissão (20a-b) e a proibição (21a-b), dois significados semânticos próprios desse verbo de característica modal, que não se aplicaria ao verbo “conseguir”. Presumimos que este caso não costuma causar tantas dúvidas aos falantes não nativos de PB, embora sua compreensão parcial leve a construções como as exploradas nos exemplos (4-8).

  • (22a) Mariana conseguiu o emprego que queria (achievement);

  • (22b) João finalmente conseguiu publicar seu livro (achievement).

Nas sentenças (22a-b) pode-se observar o uso do “conseguir” como um verbo de “achievement” em que se observa a obtenção de um objetivo, sendo, fundamentalmente, este o sentido semântico do verbo “conseguir”: alcançar um objetivo. E certamente também nesse caso encontra-se o correspondente em espanhol “yo no logré accessar o Moodle” - “eu não consegui acessar ao Moodle”, situação na qual os aprendizes das aulas observadas utilizam a expressão “Eu não pude acessar ao Moodle”.

No entanto, conforme pudemos perceber pela experiência da sala de aula das turmas de português para estrangeiros e também pelo exposto na plataforma Speaking Brazilian, nem sempre aprendizes de PB conseguem distinguir adequadamente os usos dos verbos “conseguir” e “poder”. Assim, do ponto de vista pragmático, podem ser explorados exemplos de uso desses verbos, conforme exemplos da plataforma Speaking Brazilian15 15 Exemplos adaptados da plataforma Speaking Brazilian. :

  • (23a) Mariana não pode dirigir porque ainda não tem 18 anos (modal deôntico);

  • (23b) Mariana não consegue dirigir porque quebrou a perna (modal deôntico de capacidade interna);

  • (23c) Mariana consegue dirigir, mas não pode porque ainda não tirou a carteira de motorista (modal deôntico de capacidade interna/modal deôntico).

No trio de exemplos (23a-c), percebe-se um uso mais sutil dos verbos “poder” e “conseguir” em que os detalhamentos das situações por contexto são determinantes para as escolhas dos verbos: partindo-se de uma força de modalidade forte (de proibição/permissão), e deôntica, com o poder, à capacidade interna, também deôntica, com o verbo “conseguir”, dentro das graduações contextuais a que lhe são atribuídas. Em (23b), por exemplo, não existe a proibição de “poder”, mas a ausência de capacidade/habilidade que empiricamente lê-se como momentânea, devido à condição de Mariana ter quebrado a perna. Não há, portanto, a possibilidade de Mariana dirigir. Essa sentença contrasta com (23c) em que o sujeito Mariana consegue dirigir, detém a habilidade/capacidade, tem essa possibilidade do ponto de vista de saúde/físico, mas é impedida, porque não possui carteira de motorista, requisito legal, representando assim o modal deôntico com uma gradação forte do “poder”.

Encerramos a seção com as reflexões elencadas acerca dos verbos “poder” e “conseguir” e seus usos com um importante resgate à literatura de Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967), com a ideia de “achievement” do verbo conseguir, e Quaresma et al (2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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), para quem o verbo “conseguir” assume aspectos de modalidade atípica, funcionando como um modal deôntico de capacidade interna com as mesmas características de “poder”, mas com força menor devido a questões pragmáticas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência em sala de aula de PLE em níveis inicias em uma IES do sul do Brasil com alunos de contexto hispânico, oriundos de instituições de ensino latino-americanas, nos permitiu observar que a aquisição pragmática da modalidade dos verbos “poder” e “conseguir” não é imediata e suscita diversas reflexões como as que foram expostas neste artigo. Devido ao fato de PB e espanhol serem línguas de mesma família, aprendizes de PB tendem a realizar transferências diretas de termos e expressões de sua língua materna, que nem sempre correspondem ao mesmo sentido semântico-pragmático na língua-alvo. Conforme Cabrelli (2020CABRELLI, Jennifer; IVERSON, Michel; GIANCASPRO, David; GONZÁLEZ, Becky H. The roles of L1 Spanish versus L2 Spanish in L3 Portuguese morphosynthatic development. In: Linguistic Approaches to Portuguese as Additional Language. XXX; XXX; XXX (eds.) Amsterdam: Johns Benjamins Publishing Company, 2020.), essa transferência nem sempre é facilitadora, fato que pode ser evidenciado por diversas situações contextuais que geram estranhamento e, por vezes, duplo sentido entre falantes nativos de PB e aprendizes de PB de contexto latino. Mais do que dificuldades de comunicação, as impropriedades semânticas e pragmáticas podem dificultar a aquisição de proficiência da língua-alvo, ou, quanto muito, atrasar o desenvolvimento dos aprendizes.

Para que nossos argumentos não se fundamentassem apenas nas amostras do universo a que tivemos acesso, buscamos outros dados e experiências de aquisição de PLE e encontramos na plataforma Speaking Brazilian, destinada a aprendizes estrangeiros de PB, situações semelhantes às que nos deparamos na sala de aula com os alunos de contexto hispânico. O problema de aquisição semântico-pragmática dos verbos “poder” e “conseguir” nos pareceu ainda mais pertinente, diante do fato de que o site de ensino trata amplamente das diferenças de uso e sentido desse par de verbos que, muitas vezes, parecem sinônimos a falantes não nativos. Pudemos notar, através de exemplos e reflexões das relações e transferências, facilitadoras ou não, é que os aprendizes se valem dessas transferências a partir de suas línguas maternas, ou através de uma L2, provavelmente inglês, fato que pode ser percebido através de correspondências com os modais “can/could”.

Para além disso, as amostras da sala de aula nos levaram a refletir não apenas sobre questões de proficiência e aquisição pragmática, mas sobre os sentidos léxico-semânticos e pragmáticos dos verbos “poder” e “conseguir”, o que nos conduziu à pesquisa e a reflexões semânticas sobre modalidade (cf. Krazter (1977; 1981; 1991; 2008; 2012) e von Fintel (2006)), modalidade especificamente em português (cf. Quaresma et al. (2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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)), modalidade em PB apresentadas por Pires de Oliveira (2014) e Pessotto (2014PESSOTTO, Ana Lucia. Epistemic and Gradable Modality in Brazilian Portuguese: a Comparative Analysis of “poder”, “dever”and “ter que”. In: ReVEL, special issue n. 8, UFRGS, 2014, p.49-75. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/7ff183ad0e917431c7d51637a4231cfb.pdf. Acesso em: 11 jul. 2022.
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) e às ideias de “achievement” e “accomplishment” apresentadas por Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967), expandido em Dowty (1979DOWTY, David. Word meaning and Montague Grammar. Dordrecht: D. Reides Publishing Company, 1979.), Abusch (1985ABUSCH, Dorit. On verbs and time. (1985). Doctoral Dissertations 1896 - February 2014. Disponível em: https://doi.org/10.7275/zvey-4x7. Acesso em: 11 jul. 2022.
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) e Smith (1997SMITH, Catherine. The Parameter of Aspect. Studies in Linguistics and Philosophy, v. 43. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1997.).

Acerca do que discutimos sobre a natureza semântico-pragmática desses verbos, para além de questões de aquisição, entendemos como importante retomar e reforçar a natureza quasi-modal do verbo “conseguir”, que assume sua modalidade atípica com o sentido de modal deôntico de capacidade interna para autores de PE (cf. Quaresma et al. (2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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)) e que compreendemos como análoga a situações contextuais do PB, como em: (18b) Eu consigo correr 5km e (19b) Eu não consigo ir ao cinema hoje porque ainda tenho trabalho, conforme expusemos neste artigo. Além disso, a noção de “achievement”, pouco usada no PB, mas presente no clássico de Vendler (1957VENDLER, Zeno. Verbs and Times. The Philosophical Review, v. 66, n. 2, p. 143-160 Apr. 1957.; 1967), foi fundamental para a distinção de sentido nos contextos conversacionais entre os verbos “poder” e “conseguir”, especialmente em situações como em (22a) Mariana conseguiu o emprego que queria e (22b) João finalmente conseguiu publicar seu livro (cf. exemplos deste trabalho).

A validade e a relevância de nossas contribuições se amparam no fato de que o PB ainda é pouco mapeado linguisticamente e, nesse sentido, como bem apontado por Pires de Oliveira (2014), ainda há muito a ser estudado e analisado sobre as construções de modalidade no que se refere à aquisição de uma segunda língua. Nesse sentido, são interessantes as contribuições de Quaresma et al. (2014QUARESMA, Paulo; MENDES, Amália; HENDRICKX, Iris; GOLÇALVES, Teresa. Automatic tagging of Modality: identifying triggers of modal values. In: Bunt, Harry (ed.) Proceedings 10th Joint ISO - ACL SIGSEM Workshop on Interoperable Semantic Annotation, May 26, 2014, Reykjavik, Iceland, p. 95-101. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/30784/1/Quaresma_et_at_modality_ACL_2014.pdf. Acesso em 10 maio 2022.
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) ao que se referem à classificação atípica do “conseguir”, como um verbo modal deôntico de capacidade interna. A recorrência do uso desse verbo para situações como as apresentadas no texto, tais como em (19b) Eu não consigo ir ao cinema hoje porque ainda tenho trabalho e em (23b) Mariana não consegue dirigir porque quebrou a perna, se deve à força de modalidade fraca, modalizada com “conseguir”, o que pode ser considerado com uma das razões da prevalência pragmática do uso deste verbo em detrimento de “poder”.

Ainda, em razão da natureza semântico-pragmática e de todas as questões de estranhamento por parte de falantes nativos e de dificuldade de aquisição dos aprendizes, optamos por esse tratamento de interfaces para essa problemática dos verbos “poder” e “conseguir” para que pudéssemos ter um arcabouço teórico adequado para a reflexão dos fenômenos que observamos em sala de aula e encontramos respaldo na plataforma Speaking Brazilian. Entendemos que os fenômenos pragmáticos ultrapassam as construções semânticas, de forma que a compreensão adequada de certos fenômenos da língua, os dos verbos “poder” e do “conseguir”, pressupõe uma leitura semântico-pragmática.

Na perspectiva de ensino de PLE, salientamos que o desenvolvimento da competência pragmática através de práticas de awareness raising com os aprendizes de PLE possibilitará que eles utilizem as formas apropriadas de acordo com o contexto de fala. O ensino explícito de fenômenos pragmáticos pode ajudá-los a perceberem as formas e funções linguísticas que, segundo Bardovi-Harlig (2001), trariam mudanças em sua produção e percepção da segunda língua. De acordo com Parajuli (2022PARAJULI, Klehor. Enhancing Pragmatic Competence in Language Learners. A Peer Reviewed Journal in Social Sciences, v. 1, n. 1, Feb. 2022, p. 14-23, https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/22525/14891. Acessos em setembro de 2019 e julho de 2022.
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs...
), a instrução explícita de fenômenos pragmáticos produz efeitos positivos no ensino e aprendizagem de uma segunda língua. Em razão disso, acreditamos que o desenvolvimento da metodologia de awareness raising para chamar a atenção sobre diferenças semântico-pragmáticas observadas em sala de aula pode vir a contribuir para um melhor desempenho dos aprendizes nesse nível inicial de aprendizagem de PLE.

Por fim, uma prática que não conduzimos neste estudo e que permanece para trabalhos futuros é realizar testes de aceitabilidade com falantes de espanhol e aprendizes de PB em situações que possam gerar dúvidas nas escolhas dos verbos “poder” e “conseguir”. Testes de aceitabilidade, divididos em duas seções, com e sem contexto, supostamente poderiam trazer dados mais interessantes para discussão e até para a elaboração de materiais de apoio para o ensino de PLE.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    No original: “The task of Spanish-speaking learners of BP in these cases is thus to overcome the non-facilitative influence of Spanish.”
  • 2
    As aulas de português para estrangeiros na PUCRS são ministradas em módulo online síncrono.
  • 3
    Speaking Brazilian (https://www.speakingbrazilian.com/) é uma plataforma online de PLE que apresenta conteúdos interessantes sobre a língua com o propósito de oferecer cursos de português a falantes estrangeiros.
  • 4
    As explicações desses exemplos serão apresentadas na seção 4 deste artigo, intitulada Reflexões sobre o uso dos verbos.
  • 5
    É importante explicarmos que a plataforma Speaking Brazilian é destinada a falantes não nativos de PB e apresenta textos e vídeos curtos sobre aspectos gramaticais que costumam causar dúvidas entre esses aprendizes da língua. Os conteúdos são sempre explorados de forma didática e bilíngue (português-inglês), de forma a desenvolver habilidades de leitura entre os aprendizes de PB e também a contemplar falantes nativos que possam ter dúvidas ou algum interesse nos aspectos gramaticais apresentados.
  • 6
    Não apresentaremos todo aparato teórico, nem tampouco a formalização dos tipos de modais, uma vez que não é a questão central do texto.
  • 7
    Dado um contexto conversational f , define-se o modal em sua relação dentro do mundo w.
    Epistêmico: f(w) um conjunto de fatos conhecidos em w
    Deôntico: f(w) é um conjunto de regras em vigor em w
    Teleológico: f(ww) i um conjunto de metas em w
    Bulético: f(w) é um conjunto de desejos em w
    Circunstancial: f(w) um conjunto de circunstâncias determinadas em w
    Estereotípica: f(ww) um conjunto de expectativas em relação ao que w é.
  • 8
    A ideia de modalidade também está presente na teoria dos mundos possíveis (LEWIS, 1986/1998) “há muitas maneiras pelas quais as coisas poderiam ter sido além da maneira como elas são”. A partir de condicionais e de atitudes proposicionais, é possível formular hipóteses sobre situações que diferem da realidade (KRATZER, 2012).
  • 9
    Alguns autores (QUARESMA; MENDES et al, 2014) sugerem que o verbo conseguir poderia assumir uma característica modal, sendo por isso, uma espécie de modal atípico.
  • 10
    As autoras optaram por manter a nomenclatura original, a fim de evitar prejuízos de compreensão. Uma tradução possível para as categorias dos verbos seria: verbos de estado, verbos de atividade, verbos de realização e verbos de concretização, respectivamente.
  • 11
    Propriedade em que distingue os verbos de modo geral como télicos (com um final de ação), e atélicos (sem um final de ação).
  • 12
    Outras classificações dos modais auxiliares do PB podem ser vistas em Lunguinho (2010). O autor difere de Pessoto (2014), entre outros aspectos, quanto ao verbo “dever” ser preferencialmente epistêmico. Para ele, os verbos “dever” e “ter que” funcionam como quantificadores universais, ao passo que “poder” é um quantificador existencial, conforme os exemplos: João deve/tem que comer frutas; João pode comer frutas.
  • 13
    Virgínia Langhammer é falante nativa de PB, fluente em inglês, francês e espanhol e idealizadora da plataforma-escola Speaking Brazilian.
  • 14
    Exemplo adaptado da Plataforma Speaking Brazilian para a realidade brasileira.
  • 15
    Exemplos adaptados da plataforma Speaking Brazilian.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
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