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Ações Autônomas que Emergem do Strategizing na Preservação da Cultura e Tradição de um Coletivo de Pescadores Artesanais de Florianópolis – SC

Resumo

Ações autônomas podem ser consideradas ações emergentes que se relacionam com o fazer estratégico e têm potencial de influenciar a estratégia da organização; e o strategizing é a estratégia acontecendo na prática. O objetivo deste estudo foi compreender como as ações autônomas emergem do strategizing em contextos organizacionais alternativos. Foi realizada uma pesquisa qualitativa por meio de estudo de caso em um coletivo de pescadores artesanais de tainha do Campeche (Florianópolis – SC). A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas, observação não participante e documentos. A análise dos dados foi realizada adotando-se a técnica Pattern Matching para comparação de padrões teórico-empíricos. Os resultados indicam que as ações autônomas que emergem do strategizing , no contexto estudado, são desejadas e incorporadas pela organização quando ajudam a reforçar suas práticas estratégicas no sentido de preservar a cultura e tradição da pesca artesanal. Nossa pesquisa encontrou ações autônomas e ações estratégicas emergentes imbricadas em princípios e valores culturais e tradicionais de forma compartilhada, conectadas com a estratégia organizacional, em um esforço de resistência para preservar suas formas primitivas de organização, estrutura e produção artesanal. Dependendo do contexto e da racionalidade predominante, as ações autônomas podem se conectar diretamente com os princípios e valores compartilhados nas práticas cotidianas, a partir do nível micro-organizacional, reforçando e fortalecendo a estratégia, independentemente do retorno financeiro.

ações autônomas; strategizing; estratégia como prática social; pesca artesanal; contextos alternativos

Abstract

Autonomous actions can be considered emerging actions related to strategic actions and have the potential to influence the organization’s strategy, and strategizing is strategy happening in practice. This study aimed to understand how autonomous actions emerge from strategizing in alternative organizational contexts. Qualitative research was carried out through a case study in a collective of artisanal mullet fishers in Campeche (Florianópolis – SC). Data collection took place through interviews, non-participant observation, and documents. Data analysis was performed using the Pattern Matching technique to compare theoretical-empirical patterns. The results indicate that the autonomous actions that emerge from strategizing, in the context studied, are desired and incorporated by the organization when they help to reinforce its strategic practices to preserve the culture and tradition of artisanal fishing. Our research found autonomous actions and emerging strategic actions imbricated in cultural and traditional principles and values in a shared way, connected with organizational strategy, in an effort of resistance to preserve their primitive forms of organization, structure, and artisanal production. Depending on the context and prevailing rationality, autonomous actions can connect directly with the principles and values shared in everyday practices, from the micro-organizational level, reinforcing and strengthening the strategy, regardless of the financial return.

autonomous actions; strategizing; strategy as social practice; artisanal fishing; alternative contexts

Introdução

No cotidiano das organizações, as ações dos atores organizacionais podem interferir nas atividades diárias e algumas escolhas e decisões podem, inclusive, ter o potencial de modificar os planos estratégicos definidos pela alta direção. Essas ações, manifestadas por comportamentos autônomos, podem refletir uma maior flexibilidade no planejamento organizacional e ainda ampliam a possibilidade de modificação da estratégia da instituição, tornando-a mais participativa ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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).

Nesta pesquisa, abordaremos as ações autônomas pela perspectiva da strategy as practice ( SasP ), um campo que busca compreender a prática dos atores da estratégia, ou seja, preocupa-se com a maneira como os estrategistas “fazem estratégia” ( Whittington, 1996Whittington, R. (1996). Strategy as practice. Long Range Planning, 29(5), 731-735. doi:10.1016/0024-6301(96)00068-4
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).

Embora tenha aumentado o interesse por métodos e abordagens teóricas alternativas ao mainstream da administração, percebe-se que ainda predominam as pesquisas em cenários organizacionais inseridos em paradigmas da gestão estratégica convencional, tendo como ponto central o planejamento racional, analítico e sequencial (Golsorkhi, Rouleau, Seidl, & Vaara, 2010; Lavarda, Canet-Giner, & Peris-Bonet, 2010; Rouleau, 2005Rouleau, L. (2005). Micro-practices of strategic sensemaking and sensegiving: how middle managers interpret and sell change every day. Journal of Management Studies, 42(7), 1413-1441. doi:10.1111/j.1467-6486.2005.00549.x
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; Silva, Carrieri, & Junquilho, 2011). Dessa forma, percebe-se a carência de estudos construídos sob paradigmas e lógicas diferentes das tradicionais, tendo por objeto organizações que possuem gestões alternativas da estratégia ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Faraco, Lavarda, & Gelbcke, 2019; Iasbech & Lavarda, 2018Iasbech, P.; Lavarda, R. A. B. (2018). Strategy and practices: a qualitative study of a Brazilian public healthcare system of telemedicine. International Journal of Public Sector Management, 31(3), 347-371. doi:10.1108/IJPSM-12-2016-0207 ; Lavarda, Carneiro, & Rese, 2019), assim como organizações pluralistas (Rossi, Perito, & Lavarda 2020).

Percebemos que a literatura, ao afirmar que a ação autônoma está conectada aos resultados organizacionais, influenciando e moldando a estratégia da organização, favorece análises de ambientes empresariais dinâmicos e concorrenciais típicos de mercado, sobretudo naqueles em que há uma necessidade constante de se alterar a estratégia, incorporando novas tecnologias e processos inovadores de produção. Nesse sentido, a literatura sobre ações autônomas e ações estratégicas emergentes parece ignorar a realidade das organizações apoiadas em valores culturais e tradicionais, em que a estratégia deliberada é orientada a manter suas formas originais de organização, estrutura e produção.

Parece coerente que gestões estratégicas diferenciadas estejam presentes em organizações alternativas, definidas como “espaços de produção e criação coletiva, as quais são forçadas a manter certa relação com o mercado, mas que não o têm como o centro de suas práticas, o que permite relativa autonomia dos sujeitos e a cooperação entre esses espaços e entre os sujeitos” ( Silva, 2016Silva, T. V. (2016, outubro). Organizações alternativas: uma análise das práticas organizacionais de uma cooperativa de mídia social. Artigo apresentado no IV Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais, Porto Alegre, RS. , p. 5). Considerando que as ações autônomas podem ser conceituadas como ações emergentes que, de alguma maneira, causam efeitos na tomada de decisão estratégica ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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) e que a estratégia está ligada à ação, sendo algo que as pessoas fazem, de caráter multidimensional e situacional ( Whittington, 1996Whittington, R. (1996). Strategy as practice. Long Range Planning, 29(5), 731-735. doi:10.1016/0024-6301(96)00068-4
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), chegamos à questão de pesquisa: como as ações autônomas emergem do strategizing em contextos organizacionais alternativos?

Entendemos, a partir da literatura revisada, que: (a) as ações autônomas estão conectadas ao fazer estratégico por meio da práxis e influenciam as práticas cotidianas dos praticantes; e que (b) as ações autônomas, assim como as estratégias emergentes, podem ocorrer também por ações orientadas por outras racionalidades além da instrumental ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

A seleção do caso em análise teve como critério, primeiramente, o tipo de organização e a lógica de gestão (alternativa ou coletivista), relevância cultural, proximidade e facilidade de acesso aos dados. O caso selecionado para este estudo foi uma organização coletivista local que desenvolve atividades de pesca artesanal de tainha de maneira tradicional no litoral de Santa Catarina, denominada Coletivo de Pescadores Artesanais de Tainha (CPAT), uma organização que possui como objetivo subjacente a preservação da pesca artesanal. O litoral catarinense, com sua abundância de praias, possui muitas comunidades pesqueiras tradicionais que adotam métodos artesanais de pesca semelhantes, oriundas da mesma matriz cultural, que mistura a cultura açoriana com a cultura indígena.

A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas com os pescadores, observação não participante do processo de pesca e análise de documentos e vídeos (Godoi, Bandeira-De-Mello, & Silva, 2006). A análise dos dados foi realizada por meio da técnica Pattern Matching ( Trochim, 1989)Trochim, W. M. K. (1989). Outcome pattern matching and program theory. Evaluation and Program Planning, 12(4), 355-366. doi:10.1016/0149-7189(89)90052-9
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, que compara a construção teórica, contrastando com os elementos observados na prática.

Este estudo traz perspectivas teóricas e análises científicas consideradas alternativas ao mainstream da administração e que permitem observar por outras lentes como as práticas organizacionais acontecem e como os atores participam do fazer estratégia . Buscamos também compreender como as práticas estratégicas dão significado à organização pesquisada, cuja atividade produtiva é, sobretudo, cultural e possui raízes profundas na sociedade em que está inserida.

Na esteira deste pensamento, ao observar sob a perspectiva da estratégia como prática social uma organização orientada por um saber artesanal e rudimentar, podemos compreender na prática como as ações autônomas e estratégias emergentes estão conectadas com a estratégia organizacional por meio dos princípios e valores culturais compartilhados pelos seus praticantes.

Pesquisar como as ações autônomas emergem do strategizing nas organizações pode revelar aspectos importantes do cotidiano organizacional, como a cultura, o senso de coletividade, a ética e o engajamento das pessoas no fazer estratégia , que influenciam nos resultados estratégicos, seja de forma positiva ou negativa.

A estratégia como prática social

Desde que o conceito de estratégia foi introduzido no campo dos estudos organizacionais na década de 1930, empreenderam-se esforços em pesquisas de cunho normativo prescritivo com foco nas ações planejadas pelos níveis hierárquicos mais elevados das organizações, criando modelos e técnicas de planejamento e fórmulas para otimizar tomadas de decisão com o objetivo de melhorar a performance das empresas e garantir sua competitividade (Abdalla, Conejero, & Oliveira, 2019; Ceni & Rese, 2020Ceni, J. C., Rese, N. (2020). Samarco e o rompimento na barragem de Fundão: a narrativa como um recurso performativo da prática estratégica de sensegiving inerente ao strategizing pós-desastre. Organizações & Sociedade, 27(93), 268-291. doi:10.1590/1984-9270936
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; Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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; Faraco et al., 2019)Faraco, M. M., Lavarda, R. A. B., Gelbcke, F. L. (2019). Tomada de decisão em hospitais de ensino: entre formalismo e síntese intuitiva. Revista de Administração Pública, 53(4), 769-779. doi:10.1590/0034-761220180124 .

A partir da segunda metade do século XX, surge nas ciências sociais um movimento denominado virada praxiológica, ou virada da prática, que sugere uma mudança de pensamento nas teorias sociais na busca de reconhecer o fato de que a realidade social é construída por meio de ações e atividades inter-relacionadas entre atores, instituições, organizações, estruturas etc. Os pressupostos epistemológicos dessas teorias abarcam elementos de análise voltados para as práticas sociais, que envolvem o conhecimento, significado, atividade humana, ciência, poder, linguística, instituições e transformações históricas. Dentro desse movimento, os componentes não humanos, como os artefatos e objetos, também importam, a partir de uma ontologia que envolve a complexidade das relações entre corporeidade, materialidade e práticas construídas socialmente por meio de conhecimentos compartilhados ( Schatzki, 2001Schatzki, T. R. (2001). Introduction. In T. Schatzki, K. K. Cetina, E. Savigny (Eds.), The practice turn in contemporary theory (pp. 10-23). London: Routledge. ; Silva et al., 2011Silva, A. R. L., Carrieri, A. P., Junquilho, G. S. (2011). A estratégia como prática social nas organizações: articulações entre representações sociais, estratégias e táticas cotidianas. Revista de Administração, 46(2), 122-134. doi:10.570/rausp1002 ).

Na perspectiva desse movimento, os teóricos da prática se preocupam em estudar não apenas o que é feito, no sentido quantitativo, mas como é feito, ou seja, como as atividades são executadas na prática. Existe, portanto, uma preocupação em compreender como as ações acontecem efetivamente na prática. Nesse sentido, destacam-se, mais especificamente, a habilidade dos atores organizacionais e sua capacidade de iniciativa, o que indica que, para a teoria da prática, as pessoas importam. Elas não são vistas como simples autômatos, mas como agentes das práticas, que possuem habilidades para negociar, por meio da criatividade, as restrições impedidas a elas pelas organizações. Compreende-se que as pessoas têm a capacidade de alterar as práticas desenhadas pela organização ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

Impulsionado pela virada da prática na sociologia, o campo da estratégia organizacional inicia também um movimento em direção a uma ontologia processual, apoiado por pesquisadores insatisfeitos com a incapacidade das perspectivas tradicionais em explicar os fenômenos ligados à estratégia, à predominância de análises macro e à invisibilidade dos atores e das práticas cotidianas nas pesquisas. Nesse sentido, a virada da prática nos estudos de estratégia pode ser compreendida como um movimento de mudança na forma de pensar a estratégia, assumindo-a como uma prática social ( Garcia & Montenegro, 2019Garcia, A., Montenegro, L. M. (2019). Faço sentido; logo, aprendo: as propriedades do sensemaking na aprendizagem experiencial. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 6(3), 573-615. doi:10.21583/2447-4851.rbeo.2019.v6n3.242 ; Jarzabkowski, 2005Jarzabkowski, P. (2005). Strategy as practice: an activity-based approach. Thousand Oaks: Sage. ; Whittington, 1996)Whittington, R. (1996). Strategy as practice. Long Range Planning, 29(5), 731-735. doi:10.1016/0024-6301(96)00068-4
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A perspectiva da estratégia como prática social não se satisfaz apenas com as análises da direção estratégica central e avança para as atividades gerenciais e operacionais, preocupada em compreender como os atores “fazem estratégia”. Para essa abordagem, a estratégia é construída socialmente por meio das ações, interações e negociações feitas pelos diversos praticantes da estratégia situados dentro de um contexto ( Garcia & Montenegro, 2019Garcia, A., Montenegro, L. M. (2019). Faço sentido; logo, aprendo: as propriedades do sensemaking na aprendizagem experiencial. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 6(3), 573-615. doi:10.21583/2447-4851.rbeo.2019.v6n3.242 ; Jarzabkowski, 2005Jarzabkowski, P. (2005). Strategy as practice: an activity-based approach. Thousand Oaks: Sage. ; Lavarda et al., 2010Lavarda, R. A. B., Canet-Giner, M. T., Peris-Bonet, F. J. (2010). How middle managers contribute to strategy formation process: connection of strategy processes and strategy practices. Revista de Administração de Empresas, 50(4), 358-370. doi:10.1590/S0034-75902010000400002 ; Rese, Kuabara, Villar, & Ferreira, 2017; Whittington, 1996)Whittington, R. (1996). Strategy as practice. Long Range Planning, 29(5), 731-735. doi:10.1016/0024-6301(96)00068-4
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É fato que a perspectiva SasP surgiu a partir dos estudos das atividades gerenciais, porém, ela trouxe outras concepções para o pensamento estratégico e criou um ambiente propício para: a discussão de temas como autonomia de ação na tomada de decisão; fluxo de informações bottom-up ; sensemaking ; sensegiving ; sociomaterialidade; maior inclusão e participação dos atores organizacionais no processo estratégico; e mais transparência das informações e decisões colegiadas que emergem da organização em resposta à dinamicidade do ambiente ( Abdalla et al., 2019Abdalla, M. M., Conejero, M. A., Oliveira, M. A. (2019). Administração estratégica: da teoria à prática no Brasil. São Paulo, SP: Atlas. ; Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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, 2004Andersen, T. J. (2004). Integrating the strategy formation process: an international perspective. European Management Journal, 22(3), 263-272. doi:10.1016/j.emj.2004.04.008
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; Mintzberg, 1987Mintzberg, H. (1987). Crafting strategy. Harvard Business Review, 65(5), 66-75. Recuperado de https://bit.ly/3CRd9DJ
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; Mintzberg & Waters, 1985Mintzberg, H., Waters, J. A. (1985). Of strategies, deliberate and emergent. Strategic Management Journal, 6(3), 257-272. doi:10.1002/smj.4250060306 ; Rouleau, 2005Rouleau, L. (2005). Micro-practices of strategic sensemaking and sensegiving: how middle managers interpret and sell change every day. Journal of Management Studies, 42(7), 1413-1441. doi:10.1111/j.1467-6486.2005.00549.x
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; Villar, Rese, & Roglio, 2019; Whittington, 1996, 2019)Whittington, R. (1996). Strategy as practice. Long Range Planning, 29(5), 731-735. doi:10.1016/0024-6301(96)00068-4
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, 2019Whittington, R. (2019). Open strategy: Professional strategists and practices change, 1960 to today. Oxford: Oxford University Press. ).

Podemos afirmar que a estratégia como uma prática social preocupa-se com as ações de nível micro que influenciam os desfechos estratégicos e são moldadas pelos diversos atores humanos que pertencem à organização. A SasP amplia o campo de estudo da estratégia e revela o envolvimento real das pessoas nos processos de tomada de decisão, dando destaque aos atores da estratégia. O ser humano passa a ser visto como protagonista do processo de elaboração da estratégia, ampliando o horizonte de compreensão teórica e prática das organizações. As pessoas são centrais na reprodução, na transferência e na inovação de práticas estratégicas (Johnson, Melin, & Whittington, 2003; Whittington, 2006, 20Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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, 2007Whittington, R. (2007). Strategy practice and strategy process: family differences and the sociological eye. Organization Studies, 28(10), 1575-1586. doi:10.1177/0170840607081557
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, 1996Whittington, R. (1996). Strategy as practice. Long Range Planning, 29(5), 731-735. doi:10.1016/0024-6301(96)00068-4
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).

Whittington (2006)Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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propôs uma estrutura integrativa combinando três conceitos convergentes no processo de formação da estratégia: a prática, a práxis e os praticantes. Assim como a teoria da prática não deixa esses temas separados, na SasP eles também são partes inter-relacionadas em um todo. As práticas se referem às rotinas compartilhadas de comportamento, como tradição, norma e procedimentos para pensar, agir e usar "coisas", esta última no sentido amplo. Podem ser específicas da organização, incorporadas nas rotinas, procedimentos operacionais e cultura, que moldam os modos locais de elaboração de estratégias. A teoria da prática, no entanto, também enfatiza o extraorganizacional – as práticas que derivam dos campos ou sistemas sociais mais amplos nos quais uma determinada organização está inserida. Em um nível ainda mais elevado, existem as práticas estratégicas de sociedades inteiras. A práxis refere-se à ação, a como as pessoas desenvolvem de fato as práticas, é o trabalho intraorganizacional necessário para fazer a estratégia acontecer. Os praticantes são atores estrategistas que realizam suas práticas; são sujeitos que estão ligados ao processo de criar, modelar e executar estratégias; e não se restringem aos executivos seniores, para quem a estratégia é o núcleo de seu trabalho. Whittington (2006)Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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acredita que cada um desses elementos compreende uma diferente escolha analítica e entrada no estudo da SasP .

Ao elaborar uma estrutura integrativa para a Strategy as practice , Whittington (2006)Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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observou quatro implicações no processo de formação da estratégia: (a) a força ou o peso potencial das práticas na práxis alerta para o conservadorismo e a possibilidade de mudança gerada por práticas extraorganizacionais; (b) as práticas de estratégia são tipicamente emergentes da práxis; (c) os profissionais – as pessoas – são centrais na reprodução, transferência e, ocasionalmente, na inovação de práticas estratégicas; (d) a práxis eficaz depende muito da capacidade dos profissionais para acessar e implantar práticas estratégicas predominantes.

A SasP está relacionada com o fazer estratégico, ou strategizing , isto é, como a estratégia acontece de fato nas organizações. Dessa maneira, ela se apresenta como uma perspectiva alternativa à estratégia implantada de cima para baixo ( top-down ), contemplando a participação de todos os atores da organização com condições de interferir no processo de construção da estratégia, a partir do conhecimento adquirido nas suas experiências de vida (Jarzabkowski, Balogun, & Seidl, 2007).

A intersecção e confluência das práticas, práxis e praticantes caracteriza o strategizing ou a estratégia sendo realizada. Portanto, o strategizing compreende as ações, interações e negociações de diversos atores da organização e as situações práticas nas quais eles se baseiam ao realizar as suas atividades. Refere-se ao fazer estratégico , isto é, à construção do fluxo de atividades por meio das ações e interações de múltiplos atores ( Jarzabkowski et al., 2007Jarzabkowski, P., Balogun, J., Seidl, D. (2007). Strategizing: the challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 ).

Rizzatti e Lavarda (2017)Rizzatti, G., Lavarda, R. A. B. (2017). Como as ações autônomas influenciam o processo de formação da estratégia na gestão do curso EAD de administração pública da Universidade Federal de Santa Catarina. Gestão & Regionalidade, 33(98), 67-98. doi:10.13037/gr.vol33n98.3850
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afirmam que a SasP tem um efeito descentralizador sobre as conjecturas tradicionais da estratégia, que representa um afastamento do modelo gerencialista e do princípio da concentração de poder nos modelos clássicos de criação da estratégia. O amplo e complexo processo de formação da estratégia torna-se o lócus das pesquisas, ou seja, como as pessoas constroem e ajudam a fazer as estratégias. Assim, strategizing representa a recusa em privilegiar a performance como resultado, em benefício da performance como desempenho no campo, da construção, das pessoas praticantes da estratégia, individualmente e em conjunto.

Assim, a visão linear do processo estratégico, com a estratégia de cima para baixo formulada e incorporada pela organização, não parece suficiente para lidar com as dinâmicas organizacionais e, mais ainda, com organizações alternativas e coletivistas. A natureza complexa da estratégia envolve os diversos atores da organização e carece de uma abordagem subjacente que considere as interações entre eles e as microações que constituem o fazer estratégico . A abordagem da estratégia como prática social ( Golsorkhi et al., 2010Golsorkhi, D., Rouleau, L., Seidl, D., Vaara, E. (Eds.) (2010). Cambridge handbook of strategy as practice. Cambridge: Cambridge University Press. ; Jarzabkowski et al., 2007Jarzabkowski, P., Balogun, J., Seidl, D. (2007). Strategizing: the challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 ; Rese et al., 2017Rese, N., Kuabara, F. H. S., Villar, E. G., Ferreira, J. M. (2017). O vir a ser da estratégia como uma prática social. Revista de Administração Contemporânea, 21(2), 227-248. doi:10.1590/1982-7849rac2017150300 ; Silva et al., 2011Silva, A. R. L., Carrieri, A. P., Junquilho, G. S. (2011). A estratégia como prática social nas organizações: articulações entre representações sociais, estratégias e táticas cotidianas. Revista de Administração, 46(2), 122-134. doi:10.570/rausp1002 ) tem se apresentado como uma possibilidade para se abordar o estudo das ações (autônomas) e interações entre os praticantes da estratégia.

Ações autônomas

Vimos anteriormente que a pesquisa da estratégia como prática se apresenta como uma análise da estratégia pela lente sociológica, vista como uma prática social institucionalizada. Nessa abordagem da estratégia, as pessoas e a maneira como elas agem em suas atividades cotidianas importam. As categorias de análise do fazer estratégia estão apoiadas no tripé práticas, práxis e praticantes, em que as práticas podem ser traduzidas como “maneiras aceitas de fazer coisas”, que são compartilhadas entre os atores e rotinizadas ao longo do tempo ( Mirabeau & Maguire, 2014Mirabeau, L., Maguire, S. (2014). From autonomous strategic behavior to emergent strategy. Strategic Management Journal, 35(8), 1202-1229. doi:10.1002/smj.2149 ; Vaara & Whittington, 2012Vaara, E., Whittington, R. (2012). Strategy-as-practice: taking social practices seriously. Academy of Management Annals, 6(1), 1-52. doi:10.1080/19416520.2012.672039 ; Whittington, 2007)Whittington, R. (2007). Strategy practice and strategy process: family differences and the sociological eye. Organization Studies, 28(10), 1575-1586. doi:10.1177/0170840607081557
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.

Andersen (2000)Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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acredita que estratégias importantes podem surgir sem a consciência da alta direção, impulsionadas pelas ações autônomas de seus agentes. Autonomous actions compreende as ações espontâneas realizadas por atores organizacionais com uma relativa independência ou tomada de decisões sem prévia autorização superior. Em organizações empresariais e contextos dinâmicos, as ações autônomas caminham junto com o planejamento estratégico e por vezes o complementam, geram aprendizado e têm o potencial de moldar a estratégia organizacional.

Nosso entendimento é de que Andersen (2000)Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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realizou seus estudos dentro da lógica empresarial orientada para o mercado competitivo e dinâmico, por isso a ideia de modificar a estratégia no sentido de melhor adaptar-se aos desafios impostos pelo ambiente. Nessa lógica, as organizações necessitam acompanhar as tendências e inovações tecnológicas para se manterem competitivas, ou seja, precisam alterar constantemente seu modelo de negócio, seu produto ou serviço, seu modo de fabricação, incorporar novas tecnologias, definir novos mercados, alterar sua identidade, criar novos sentidos para a empresa etc.

Os estudos sobre a relação entre o processo deliberado e emergente apontam cada vez mais as influências das ações não planejadas na tomada de decisão estratégica na organização. Essas ações têm o potencial de alterar o planejamento estratégico, influenciando o desempenho das organizações em ambientes dinâmicos quando o nível intermediário responde às necessidades de mudanças ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Mintzberg, Ahlstrand, & Lampel, 2010).

Como podemos perceber, as ações autônomas guardam semelhança com o conceito de ações emergentes, cujo conceito também condiciona as microações às transformações da estratégia, numa relação de causa e efeito, ou seja, a estratégia emergente só existe se ela causar efeitos no processo de formação da estratégia ( Rizzatti & Lavarda, 2017Rizzatti, G., Lavarda, R. A. B. (2017). Como as ações autônomas influenciam o processo de formação da estratégia na gestão do curso EAD de administração pública da Universidade Federal de Santa Catarina. Gestão & Regionalidade, 33(98), 67-98. doi:10.13037/gr.vol33n98.3850
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).

O conceito de ações autônomas ganha relevância quando se considera a perspectiva integradora da estratégia, caracterizada pela participação de todos os níveis hierárquicos da organização na formação da estratégia ( Lavarda et al., 2010Lavarda, R. A. B., Canet-Giner, M. T., Peris-Bonet, F. J. (2010). How middle managers contribute to strategy formation process: connection of strategy processes and strategy practices. Revista de Administração de Empresas, 50(4), 358-370. doi:10.1590/S0034-75902010000400002 ; Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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, 2004Andersen, T. J. (2004). Integrating the strategy formation process: an international perspective. European Management Journal, 22(3), 263-272. doi:10.1016/j.emj.2004.04.008
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). A partir dessa perspectiva, os níveis intermediários e operacionais assumem maior protagonismo nas tomadas de decisões, tornando o processo estratégico mais flexível ( Andersen, 2013Andersen, T. J. (2013). Short introduction to strategic management. Cambridge: Cambridge University Press. ). Na mesma linha, Johnson et al. (2003)Johnson, G., Melin, L., Whittington, R. (2003). Micro strategy and strategizing: towards an activity-based view. Journal of Management Studies, 40(1), 3-22. doi:10.1111/1467-6486.t01-2-00002 consideram que a estratégia acontece nas práticas do trabalho, a partir do nível micro-organizacional, evidenciando a importância do foco nas rotinas.

Logo, as ações autônomas dos níveis operacional e intermediário permitem que a organização reaja às mudanças do ambiente, facilitando a sua adaptação e o seu aprendizado. Jarzabkowski et al. (2007)Jarzabkowski, P., Balogun, J., Seidl, D. (2007). Strategizing: the challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 afirmam que essa abordagem nos estudos sobre estratégia representa uma ruptura com os modelos de estratégias deliberadas e implantadas de forma top-down , visto que estes não se preocupam em explicar como funcionam as idiossincrasias e os comportamentos humanos na construção da estratégia.

Rese et al. (2017)Rese, N., Kuabara, F. H. S., Villar, E. G., Ferreira, J. M. (2017). O vir a ser da estratégia como uma prática social. Revista de Administração Contemporânea, 21(2), 227-248. doi:10.1590/1982-7849rac2017150300 afirmam que pequenas mudanças iterativas feitas frequentemente em níveis operacionais podem gerar consequências positivas não intencionais que, em última análise, podem contribuir para o surgimento de uma estratégia coerente e viável.

Bouty, Gomez e Chia (2019) acreditam que os pesquisadores de estratégia reconhecem cada vez mais que, em muitas organizações, a estratégia pode emergir inadvertidamente de ações de enfrentamento locais e decisões tomadas "na hora". No entanto, como isso realmente acontece na prática não foi suficientemente examinado e explicado.

A partir do entendimento desses conceitos, percebemos a pertinência em estudar as ações micro-organizacionais que constituem a estratégia. As ações individuais emergentes e a deliberação das estratégias por meio do planejamento formal são vistas, muitas vezes, como atividades excludentes entre si, entretanto, elas se complementam na prática ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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).

Mirabeau e Maguire (2014)Mirabeau, L., Maguire, S. (2014). From autonomous strategic behavior to emergent strategy. Strategic Management Journal, 35(8), 1202-1229. doi:10.1002/smj.2149 acreditam que a estratégia emergente pode se originar por meio de ações e comportamentos estratégicos autônomos, como resultado da solução local de problemas. Nesse caso, essas ações podem ser decisões cotidianas e rotineiras ou outras atividades que influenciam o desenvolvimento da estratégia, podendo direcioná-la mesmo sem a consciência da alta direção ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Rizzatti & Lavarda, 2017Rizzatti, G., Lavarda, R. A. B. (2017). Como as ações autônomas influenciam o processo de formação da estratégia na gestão do curso EAD de administração pública da Universidade Federal de Santa Catarina. Gestão & Regionalidade, 33(98), 67-98. doi:10.13037/gr.vol33n98.3850
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).

A partir dos conceitos apresentados, percebemos que, apesar do discurso dominante em que o imperativo econômico orienta e condiciona as ações autônomas a obedecerem a uma racionalidade instrumental, não há elementos que justifiquem a invisibilidade das ações autônomas orientadas pelo manifesto interesse em manterem vivas a tradição e a cultura de uma atividade.

A literatura nos apresenta as ações autônomas como fenômenos próprios de organizações que possuem um planejamento estratégico formal. Porém, quando aceitamos que a ação autônoma pode estar imbricada com a estratégia da organização não somente pelo seu potencial de incorporação e transformação do planejamento estratégico, mas, sobretudo, pelo seu alinhamento com os valores e a racionalidade que orientam o strategizing , abrem-se outras possibilidades de pensar estratégia. Por exemplo, se o strategizing estiver pautado no respeito à história da própria organização e da comunidade em que está inserida, no senso de coletividade, na manutenção do modo de vida de seus integrantes e do meio ambiente em que vivem, buscando manter as suas tradições e culturas, possivelmente as ações autônomas desejadas serão aquelas que irão reforçar e fortalecer esses valores e princípios orientadores.

Assim, considerando que o fazer estratégia passa pela dimensão da práxis e emerge do cotidiano organizacional, entendemos como proposições teóricas que: (a) as ações autônomas estão conectadas ao fazer estratégico por meio da práxis e podem emergir das práticas cotidianas dos praticantes, seguindo a racionalidade predominante na organização; e que (b) em organizações que não seguem a lógica do mercado, as ações autônomas desejadas e incorporadas à estratégia tendem a ser menos instrumental, ou seja, não estão condicionadas a performance ou desempenho econômico ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

Metodologia

De acordo com o objetivo de compreender como as ações autônomas emergem do strategizing em contextos organizacionais alternativos, consideramos este estudo como interpretativista e, quanto à abordagem, nossa pesquisa se caracteriza como qualitativa ( Denzin & Lincoln, 2011Denzin, N. K., Lincoln, Y. S. (Eds.) (2011). The Sage handbook of qualitative research (4a ed.). Thousand Oaks: Sage. ). Como buscamos realizar um estudo em profundidade de uma organização a partir da análise intensiva do fenômeno estudado ( Stake, 1995)Stake, R. E. (1995). The art of case study research. Thousand Oaks: Sage. , entendemos que o método de estudo de caso foi o mais adequado ( Godoy, 2006Godoy, A. S. (2006). Estudo de caso qualitativo. In C. K. Godoi, R. Bandeira-de-Mello, A. B. Silva (Orgs.), Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos (pp. 115-146). São Paulo, SP: Saraiva. ; Lavarda & Bellucci, 2022)Lavarda, R. A. B. and Bellucci, C. (2022), Case study as a suitable research method to investigate strategy as practice. The Qualitative Report, 27(2), 539-554. https://doi.org/10.46743/2160-3715/2022.4296
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.

Buscamos um caso passível de estudo, como uma organização que apresentasse peculiaridades, com ocorrências de situações práticas e cotidianas de um empreendimento específico, as quais propiciassem elementos significativos da abordagem qualitativa, pela essência e significado que as pessoas atribuem para cada situação na construção e interação social ( Creswell & Poth, 2016Creswell, J. W., Poth, C. N. (2016). Qualitative inquiry and research design: choosing among five approaches (4a ed.). Thousand Oaks: Sage. ). Assim, selecionamos o caso de forma não aleatória e intencional ( Stake, 1995)Stake, R. E. (1995). The art of case study research. Thousand Oaks: Sage. , atendendo ao critério de organização local (critério de localização geográfica), que possui lógica de gestão alternativa ou coletivista, com relevância cultural e a facilidade de acesso aos dados ( Denzin & Lincoln, 2011)Denzin, N. K., Lincoln, Y. S. (Eds.) (2011). The Sage handbook of qualitative research (4a ed.). Thousand Oaks: Sage. .

Nossa intenção em investigar como acontecem as ações autônomas e strategizing no contexto de uma organização alternativa ou coletivista nos levou a buscar organizações locais que possuíssem fortes ligações com a sociedade em que está inserida. Além disso, buscamos instituições que, de alguma maneira, fossem fontes de sustento dessa comunidade e que não fossem jovens (como start-ups ), mas que tivessem resistido ao tempo e sobrevivido a diversos cenários e contingenciamentos (ambientais, econômicos, políticos, jurídicos e sociais). Em razão disso, decidimos selecionar uma organização que, além de atender ao critério “organização coletivista”, sua localização permitiu as idas e vindas dos pesquisadores ao campo.

Assim, chegamos ao Coletivo de Pescadores Artesanais de Tainha (CPAT) da praia do Campeche, localizado na Ilha de Florianópolis, em Santa Catarina. Os coletivos de pescadores artesanais são organizações centenárias que resistiram ao tempo, ou seja, embora não tenham pretensões de crescimento e lucro, percebem que seu produto final não é somente o peixe, mas, sim, a preservação da cultura e tradição local, transmitidas de geração a geração. Os coletivos de pescadores artesanais são reconhecidos pela presença de valores e saberes históricos pautados na tradição e cultura. Para otimizar essa seleção, usamos como filtro o título de patrimônio imaterial de Santa Catarina, importante registro que certifica o caráter histórico, cultural e tradicional. Até o fechamento desta pesquisa, apenas duas comunidades já haviam conquistado esse título.

Ambas as comunidades atendiam nossos interesses de pesquisa, entretanto, pela proximidade e facilidade de acesso, selecionamos a comunidade pesqueira da praia do Campeche. A pesca artesanal da tainha é uma atividade profissional que resistiu ao tempo e conseguiu preservar a sua cultura e tradição, transmitida de geração a geração.

Nossa pesquisa utilizou técnicas próprias do método etnográfico, adotando uma metodologia de “inspiração” etnográfica. As técnicas utilizadas para a coleta de dados foram as enumeradas a seguir: (a) Entrevistas semiestruturadas com os principais participantes do coletivo de pescadores. Foi selecionado um grupo de entrevistados que representasse o CPAT e não apenas um rancho de pesca. Selecionamos as principais práticas da pesca artesanal da Tainha dentro da dinâmica dos ranchos de pesca artesanal e buscamos, aleatoriamente, o mínimo de um praticante para cada prática selecionada (percebemos rapidamente que o pescador é um sujeito que adora conversar informalmente, mas não se sente à vontade ao ser entrevistado), com os entrevistados distribuídos entre os três ranchos de pesca: rancho do Chico Doca, rancho do “Nem” e rancho do Seu Getúlio. Os entrevistados foram identificados pelas iniciais de seus nomes: o ex-patrão (M), o proprietário da parelha (L), o camarada (R), o patrão (N) e o remeiro (E). As entrevistas ocorreram durante a temporada de pesca nos meses de maio e junho de 2019 e tiveram a duração de trinta minutos em média; (b) Análise de documentos disponíveis em sites dos órgãos oficiais, bem como vídeos e fotos feitos pelos pesquisadores no rancho de pesca e na praia do Campeche, livros sobre a história do Campeche e fotos coletadas com os pescadores; e (c) Observação não participante, que ocorreu durante o mesmo período das entrevistas e na época da safra da tainha (de maio a julho). As observações foram anotadas e gravadas em áudio e vídeo para posterior análise conjunta.

Como previsto, a aproximação com o coletivo não foi difícil, as observações ocorreram em situações reais de pesca e as conversas informais com os pescadores foram importantes para compreender a dinâmica do rancho. Entretanto, as técnicas de entrevistas e as gravações tiveram que ser revistas e adaptadas ao ambiente e às pessoas entrevistadas. Devido ao perfil dos pescadores, verificamos que o agendamento prévio das entrevistas e a realização em ambientes apropriados acusticamente, com aparelhos específicos para gravações, seria inviável. A solução foi ir a campo munidos de aparelhos smartphones e entrevistar os pescadores em seu próprio ambiente de trabalho, na beira da praia ou dentro do rancho de pesca, apesar dos ruídos e interrupções. Dessa forma, conseguimos também observar o cotidiano dos pescadores, bem como registrar em vídeo todas as atividades de suas rotinas. A gravação foi o diferencial, pois facilitou a comunicação e permitiu que os entrevistados se sentissem mais à vontade para dialogar. Após cada entrevista realizada, procedemos com a transcrição manual e o arquivamento junto aos demais materiais coletados para a pesquisa, como vídeos, artigos de jornais e revistas eletrônicas.

A análise dos dados ocorreu por meio da técnica Pattern Matching ( Trochim, 1989Trochim, W. M. K. (1989). Outcome pattern matching and program theory. Evaluation and Program Planning, 12(4), 355-366. doi:10.1016/0149-7189(89)90052-9
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), que possibilita a comparação do referencial teórico compilado com os dados observados na prática, resultantes das entrevistas, análise de documentos e observação não participante.

De acordo com Trochim (1989)Trochim, W. M. K. (1989). Outcome pattern matching and program theory. Evaluation and Program Planning, 12(4), 355-366. doi:10.1016/0149-7189(89)90052-9
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, padrão ( pattern ) é um arranjo de objetos ou entidades. O termo arranjo é usado para representar o caráter não aleatório do padrão e do seu potencial descritivo. Nesse sentido, a técnica de análise por correspondência de padrões ( Figura 1 ) envolve a tentativa de encontrar, nos arranjos sociais entre sujeitos e objetos da pesquisa, elementos que possam ser relacionados com os padrões teóricos para melhor compreender os fenômenos a partir de um processo abdutivo entre a teoria existente e os dados disponíveis no campo.

Figura 1
Estrutura comparativa de padrões

Para as análises foram considerados, a partir da revisão da literatura e reflexões teóricas, os elementos constitutivos do estudo (ECE) (praticantes, atividades práticas e ações autônomas), conforme Kerlinger (1979)Kerlinger, F. N. (1979). Metodologia da pesquisa em ciências sociais. São Paulo, SP: Edusp. . Esses elementos formaram a base para a etapa em que revisamos as anotações feitas no campo e as transcrições das entrevistas, identificando as partes que tinham significância teórica, de modo a facilitar a análise qualitativa dos dados.

Os ECE foram utilizados para facilitar o processo de coleta e análise qualitativa dos dados, possibilitando, ainda, o processo abdutivo de reflexão com a proposição teórica. Considerando que o fazer estratégico sempre passa pela dimensão de práxis, entendemos que a relação entre ações autônomas e o conceito de práxis ocorre por meio do fazer estratégico e pelas práticas emergentes cotidianas, em que (a) as ações autônomas estão conectadas ao fazer estratégico por meio da práxis e podem emergir das práticas cotidianas dos praticantes, seguindo a racionalidade predominante na organização; e que (b) em organizações que não seguem a lógica do mercado, as ações autônomas desejadas e incorporadas à estratégia tendem a ser menos instrumental, ou seja, não estão condicionadas a performance ou desempenho econômico ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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), visando responder à questão de pesquisa ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Elementos constitutivos do estudo (ECE) e fatores operacionais (FO)

Após as definições dos ECE e FO dos elementos presentes neste estudo, passaremos para a apresentação e discussão dos resultados obtidos no campo.

Análise e discussão dos resultados

Apresentaremos o histórico e a descrição do CPAT com o intuito de contextualizar o objeto de pesquisa; e, na sequência, a análise e discussão do caso a partir das entrevistas com o coletivo do CPAT, das observações e dos documentos propiciados, de forma integrativa.

O Campeche é uma comunidade costeira, com 11,5 quilômetros de praia e com uma ilha de mesmo nome, localizada no sul da Ilha de Florianópolis, Santa Catarina, colonizada por uma pequena comunidade de pescadores e agricultores descendentes dos primeiros açorianos que chegaram àquela região no século XVII ( Ferreira, 2018Ferreira, S. L. (2018, 8 de março). 270 anos da presença açoriana em Santa Catarina. Ides. Recuperado de https://bit.ly/34QJjm2
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), trazendo e desenvolvendo as atividades de pesca artesanal e de agricultura familiar de subsistência.

Desde sua origem, a comunidade do Campeche passou por dois grandes momentos históricos: em 1874, com a instalação do cabo telefônico submarino, que atravessava o oceano Atlântico de Londres ao Rio de Janeiro, passando por Florianópolis, tendo a praia do Campeche como ponto de chegada; e com a instalação do primeiro aeroporto de Santa Catarina e o primeiro aeroporto internacional do Sul do Brasil, o Compagnie Générale Aéropostale , em 1920 ( Daniel, 2018Daniel, H. A. (2018). Campeche: um lugar no sul da ilha. Florianópolis, SC: Insular. ).

O impacto desses dois eventos para a economia da comunidade não foi suficiente para um desenvolvimento significativo, e os nativos dessa região mantiveram a cultura e as tradições preservadas durante muito tempo. A agricultura familiar de subsistência, com destaque para a produção de farinha de mandioca, assim como a pesca artesanal, principalmente a pesca da tainha, continuaram a ser as principais fontes de renda dos moradores nativos até meados do século XX ( Daniel, 2018Daniel, H. A. (2018). Campeche: um lugar no sul da ilha. Florianópolis, SC: Insular. ).

Ferreira e Dias (2019)Ferreira, M. C., Dias, M. (2019). A pesca artesanal da tainha em Bombinhas. Cultura Bombinhas. Recuperado de https://bit.ly/3wkh76E
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afirmam, com base no relato feito em 1577 pelo aventureiro alemão Hans Staden (1525-1579), que a pesca da tainha é uma tradição de origem indígena (os Carijós pertencentes à nação Tupi-Guarani foram os primeiros povos dessa região); portanto, a pesca da tainha e as “canoas de um pau” já existiam quando os colonizadores açorianos chegaram.

A pesca artesanal da tainha, desenvolvida pelo Coletivo de Pesca Artesanal da Tainha (CPAT), é uma arte passada de geração para geração. O ex-patrão (M)1(já aposentado da atividade), com 92 anos de idade na fase de entrevistas, iniciou-se na pesca artesanal aos treze anos, junto de seus irmãos. De acordo com seu relato, era uma atividade que garantia sua subsistência, porém, nunca conheceu alguém que tenha ficado rico com essa ocupação. Segundo ele, era comum ficar devendo no comércio local, “ era mais por gosto, de gostar, de prazer, os dinheiros da rede, do peixe que matou na rede, quando se fazia mil reais pra pagar o fiado pra manter a rede, já estava devendo dois [mil reais]” (Entrevistado M, 2019).

Em outro relato, o ex-patrão (M) deixa claro a mudança dos interesses ligados à pesca artesanal por parte de seus praticantes ao afirmar que “ antigamente se vivia da pesca, dali tirava o sustento da família, hoje em dia todo mundo tem seu emprego, trabalha em outras coisas, ninguém depende mais só do peixe ” (Entrevistado M, 2019). Quando questionado sobre como a pesca artesanal permanece viva na comunidade e sobre a renovação de seus atores por meio da criação da escola de remo, no seu relato, de forma simples, contou que esse movimento não surgiu por uma expectativa de ganhos financeiros ou por falta de alternativas de desenvolvimento da comunidade, e acrescenta: “. . . é bom . . . é bom . . . porque incentiva os rapazes, né? Mas eles já tão sabendo onde é que tão, futuro não tem, é só pra aprender o serviço, é só isso, pra manter a tradição . . . pra futuro não ” (Entrevistado M, 2019). A expressão “não tem futuro” é recorrente no relato do entrevistado e, nesse contexto, representa uma comparação entre a profissão de pescador artesanal com outras profissões, insinuando que as atividades de pesca artesanal não oferecem aos seus praticantes status ou benefícios financeiros significativos, dito de outra maneira, é uma expressão usada para dizer que trabalhar na atividade não vai deixá-los ricos.

Entretanto, a satisfação em participar da pesca artesanal parece superar as dificuldades de uma profissão pouco rentável. O entrevistado, ex-patrão M, conta que sentia prazer e orgulho em exercer sua atividade, e acredita que esses são os sentimentos que motivam os jovens a aprender a profissão de pescador: “ Eles estão pensando só em aprender mesmo, pra manter [a tradição da pesca artesanal] , não sei se eles acham bonito ou é por gosto. Eu achava bonito, quando estava aprendendo ficava até meio inchado, de prosa, né? [risos]” (Entrevistado M, 2019).

A pesca artesanal no CPAT do Campeche se mantém viva atualmente devido ao interesse coletivo em preservar a cultura e tradição locais. É importante destacar que, nos relatos dos entrevistados e durante as observações, percebemos o prazer que eles sentem ao realizar as práticas cotidianas da pesca, sobretudo no momento da captura dos peixes, chamado de cerco.

O coletivo é formado em sua maioria por moradores da região, muitos deles filhos e netos de pescadores. O conhecimento sobre a pesca da tainha é transmitido de uma geração para outra. A embarcação lançada ao mar é a canoa a remo, tradicionalmente esculpida no tronco de árvores centenárias por artesãos nativos da região. As atividades da pesca, do tipo arrasto de praia, contam ainda com a participação voluntária e espontânea da comunidade. Todos os indivíduos que desempenham uma atividade no coletivo de pesca recebem em troca de sua mão de obra uma quantidade (fração) de peixe, que é calculada em função da quantidade de tainhas capturadas no dia, portanto, não há garantias de ganhos diários.

A interação entre os pescadores do CPAT é bastante particular. A parelha é o nome pelo qual os pescadores chamam o núcleo de pesca dentro de um coletivo, que engloba o rancho, as canoas e os atores que interagem exclusivamente naquele núcleo. O rancho é o local situado na beira da praia, onde as canoas, as redes de pesca, os materiais e as ferramentas de manutenção são guardados, bem como onde os pescadores encontram estrutura de apoio (cozinha, banheiro e área de repouso). O rancho também é um local de convívio dos pescadores, onde fazem suas refeições, conversam, repousam e se divertem. Em suma, a parelha é a estrutura organizacional que serve de base para que os pescadores de um coletivo de pesca desempenhem suas atividades. A parelha não possui preocupação com marca ou imagem e, geralmente, possui mais de uma denominação, sendo muito comum atribuir a ela o nome de pessoas que são (ou foram) muito respeitadas dentro daquele núcleo, cujo sentimento de pertencimento é muito significativo. Atualmente, estão em atividade na praia do Campeche três parelhas: Rancho de Pesca do Chico Doca, Rancho do Nem e Rancho do Seu Getúlio.

A pesca artesanal da tainha foi retirada da normativa que regulamenta a pesca da tainha no país. Em 2019, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) orientou que o estado (Santa Catarina) renove as permissões de pesca ( Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina, 2019Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina (2019, 19 de junho). Institucional: histórico. Fepesc. Recuperado de https://bit.ly/36aeyJB
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). A pesca industrial da tainha intensificou-se a partir do ano de 2000, em virtude do declínio da disponibilidade do recurso sardinha, da valorização do mercado internacional e da exportação das ovas de tainha, contribuindo para que a tainha, em 2004, fosse classificada pelo Ministério do Meio Ambiente como espécie sobreexplotada, ou seja, as condições de sua captura (pesca em quantidade elevada e no período de reprodução) põem em risco o seu futuro ( Centro de Pesquisa e Gestão dos Recursos Pesqueiros do Litoral Sudeste e Sul, 2008Centro de Pesquisa e Gestão dos Recursos Pesqueiros do Litoral Sudeste e Sul (2008). Processo de ordenamento pesqueiro do recurso “tainha” para o Sudeste e Sul do Brasil. Itajaí, SC: Autor. ).

A pesca artesanal possui importância socioeconômica e cultural para as comunidades litorâneas, gera empregos diretos e indiretos, movimenta o setor turístico e potencializa as relações sociais e a identidade cultural, além de representar uma resistência diante da “diminuição da importância dos pesqueiros tradicionais explorados pela frota longínqua” ( Santos et al., 2012Santos, M. P. N., Seixas, S., Aggio, R. B. M., Hanazaki, N., Costa, M., Schiavetti, A., . . . Azeiteiro, U. M. (2012). A pesca enquanto atividade humana: Pesca artesanal e sustentabilidade. Revista de Gestão Costeira Integrada, 12(4), 405-427. doi:10.5894/rgci385
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, p. 416). Suas características são mais adequadas para a preservação dos recursos haliêuticos, por isso tem importante contribuição para o desenvolvimento sustentado do setor.

Resta afirmar que, embora não tenha sido foco desta pesquisa apontar elementos que caracterizem a resistência dos coletivos de pescadores artesanais em prol da pesca artesanal e seu modo de vida, a complexidade da realidade social permite que esses elementos se conectem a outros fatores que caracterizam as ações autônomas e strategizing no coletivo estudado, e tentar isolá-los seria aceitar o risco de perder informações importantes dos fenômenos encontrados.

Durante a pesquisa, encontramos traços de resistência em diversas ações relacionadas, como no associativismo, na criação de escolas de remeiros, na promoção de eventos, na criação de um espaço cultural, na parceria com instituições de ensino superior para a criação de projetos que valorizem a cultura da pesca artesanal e a inclua no roteiro turístico do município, na publicação de livros e conteúdos para trazer visibilidade ao coletivo e à pesca artesanal e na busca pelo reconhecimento formal de suas tradições com a conquista do título de patrimônio cultural.

Essas são algumas ações que caracterizam a resistência da atividade pesqueira local e que representam a luta e os conflitos que o coletivo enfrenta pela manutenção do modo de vida dos pescadores artesanais, que vivenciam a tensão entre o crescimento urbano (e a pesca industrial como consequência) e a preservação de sua cultura.

ECE1 – Caracterização dos praticantes (S’)

Para facilitar a análise dos dados, definimos os praticantes como sujeitos (S’) que executam microações (A), que delineiam as práticas (P) e que compõem o cotidiano do CPAT. Sob a ótica da SasP , esses praticantes são os atores da estratégia, ou seja, os estrategistas que realizam suas práticas ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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), construindo o fazer estratégico e moldando a práxis por meio de quem são, como agem e quais recursos usam. Segundo Jarzabkowski (2005)Jarzabkowski, P. (2005). Strategy as practice: an activity-based approach. Thousand Oaks: Sage. , os praticantes são os atores que, inseridos ou não na organização, fazem o trabalho de delinear e executar as estratégias.

O vigia (S1) é quem sinaliza a presença da tainha e sugere quando e onde o cerco deve ocorrer. A sua vivência e o seu conhecimento tácito permitem presumir a quantidade de peixes existentes no cardume avistado.

O remeiro (S2) é a pessoa que manuseia o remo; geralmente a canoa possui quatro remeiros responsáveis por direcionar e manter o curso da embarcação. O remo é a principal característica da pesca artesanal, conforme relato do remeiro (E): “ A pesca é artesanal por causa do remo, se fosse a motor deixava de ser artesanal ” (Entrevistado E, 2019). É praticada por uma pessoa da comunidade que adquiriu experiência no decorrer dos anos com a rotina da pesca. Atualmente, há uma renovação por meio do curso de remo, para manter a tradição. Nos relatos do patrão (N), é possível verificar essa situação: “ Em 2015 a gente criou a escola de remo, porque a gente sentiu uma grande necessidade de falta de remeiro, . . . eles [remeiros mais idosos] não passaram o conhecimento que eles tinham para os demais ” (Entrevistado N, 2019).

O patrão (S3) é a figura responsável pelas principais decisões que envolvem o cerco da tainha. É quem comanda a canoa e suas decisões são respeitadas por todos. Sua autoridade vem da sua experiência com a pesca e é sustentada por princípios e valores tradicionais compartilhados pela comunidade, que se reflete dentro do coletivo de pescadores. Os entrevistados M, N e L, respectivamente, relatam sobre as funções do patrão: “ É quem comanda a canoa ” (Entrevistado M, 2019); “ O patrão é todo aquele que comanda a pesca, responsável para que tudo ‘saia certo’, dentro da canoa é o principal comandante da embarcação ” (Entrevistado N, 2019); “ Ele que coordena, toda a responsabilidade da embarcação é dele ” (Entrevistado L, 2019).

O chumbereiro (S4) é o responsável operacional por lançar a rede no mar, em geral um pescador experiente. Ele lança ao mar os lastros da rede (pequenos sacos de couro cheios de areia). Deve executar sua atividade tendo o cuidado para que a rede não saia dobrada ou enrolada. Auxilia o patrão na condução da canoa, oferecendo uma visão da popa e avisando sobre possíveis perigos do mar. Segundo o patrão (N): “ Na entrada da canoa, quando tu tá cercando, o remeiro tem mais visão que o patrão do mar que vem atrás, então, a palavra do remeiro e do chumbereiro é muito válida, a gente trabalha num conjunto ” (Entrevistado N, 2019).

O camarada (S5) exerce uma função de apoio à pesca artesanal. Ele auxilia a puxar a canoa e colocá-la na água, isso inclui organizar as estivas na areia para transportar a canoa, desmalhar a rede, carregar os peixes e realizar pequenas manutenções. O camarada auxilia na pesca com regularidade, estando presente durante toda a safra. O camarada R apresenta as funções do camarada: “. . . eu ajudo a puxar, ajudo a botar a canoa na água . . . o camarada é o cara que tá mais ajudando aqui, né? É sempre assim, entendeu? Quem está sempre aqui [na praia] com a turma ” (Entrevistado R, 2019).

Os ajudantes (S6) não fazem parte do staff do rancho e o patrão não tem controle sobre eles. São as pessoas que, estando na praia durante o cerco, ajudam os pescadores a puxar a rede em troca de uma tainha. Essas pessoas são tanto os moradores da comunidade quanto turistas que passam férias na praia.

Assim, a partir da descrição das funções de cada integrante da equipe, passamos a apresentar as práticas identificadas no cotidiano do coletivo de pescadores, relacionando-as com os respectivos praticantes, de forma a identificar as ações autônomas e o strategizing no contexto da pesca artesanal da tainha.

ECE2 – Atividades práticas no cotidiano do coletivo de pescadores

A cadeia produtiva da pesca artesanal é composta por diversas etapas. Inicia-se nos fornecedores de componentes e insumos como embarcações, redes e petrechos, e passa pela captura, processamento, intermediação (atravessador), comercialização e consumidor final (Menezes, Serva, & Ronconi, 2016). Para a pesquisa, nos concentramos nas práticas que envolvem a captura, pois são as atividades desenvolvidas diretamente pelos pescadores.

Definimos como Fase 1 a primeira prática (P1), a rotina diária inicial da pesca da tainha, a que os pescadores chamam de “abrir o rancho”, sendo essa prática o resultado das ações (A) de verificar as condições de pesca (A1.1), descer a canoa (A1.2) e verificar os materiais para a pesca (A1.3), como ilustra a Figura 2 .

Figura 2
Strategizing na Fase 1

A verificação das condições de pesca (A1.1) não se dá por formalidades, mas depende exclusivamente da experiência do patrão, ou seja, a prática decorrente da decisão de como estão as condições para pesca depende da vivência e do conhecimento tácito acumulado do pescador/praticante ( Jarzabkowski et al., 2007Jarzabkowski, P., Balogun, J., Seidl, D. (2007). Strategizing: the challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 ). Do mesmo modo ocorre a escolha dos próprios vigias, como é possível verificar no relato do proprietário (L): “ Eles, quando chegam de manhã aqui [na praia], olham [o mar], já têm noção, ‘ó, o mar não tem condições!’, aí voltam para casa ou ficam aqui no rancho . . . para depois voltar para casa ” (Entrevistado L, 2019). Esse relato evidencia a construção social da realidade e a manutenção simbólica desse conhecimento, fundamentais para a continuidade da prática.

De acordo com o proprietário (L), as condições de pesca favoráveis estão relacionadas à ondulação do mar (mar manso), correntezas, vento. Segundo ele, o sol e a chuva não interferem muito, mas a temperatura, sim, para a tainha poder “encostar”, vir para a costa.

Quem toma a decisão em relação às condições de pesca é o patrão. Caso as condições observadas não sejam favoráveis à pesca, ou seja, diante de mar revolto, ondas altas, com poucos intervalos entre as séries de ondas (chamado pelos pescadores de jazigo, momento de calmaria, quando não quebram ondas e a canoa consegue atravessar a zona de rebentação), a canoa permanece guardada dentro do rancho, servindo também como uma espécie de comunicação com a comunidade, ou seja, fica claro a todos que chegarem à praia que neste dia não haverá cerco. Nesse momento, fica evidente a relação de poder entre o patrão e os demais pescadores, o que, embora seja culturalmente aceito pelo coletivo, atribui muito peso à prática sobre a práxis neste episódio; e, dessa forma, não há espaço para que possam emergir novas estratégias ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

A ação de descer a canoa (A1.2) acontece logo com os primeiros raios de sol, quando se abrem as portas do rancho. Em seguida, os camaradas posicionam as estivas na areia em intervalos regulares de cerca de 1,5 metro entre elas, formando uma espécie de trilho de madeira até o local para posicionar a canoa. Sob um comando sonoro, todos se posicionam nas laterais da canoa e aguardam outro comando para começarem a empurrar a canoa ao mesmo tempo.

Arrastar uma canoa pela areia da praia depende de várias pessoas devido ao seu peso, por isso aguarda-se a presença de uma quantidade suficiente de camaradas para executar a tarefa. Segundo Jarzabkowski et al. (2007)Jarzabkowski, P., Balogun, J., Seidl, D. (2007). Strategizing: the challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 , a estratégia é construída por meio das ações, interações e negociações dos diversos atores da organização e das suas práticas, como pode ser evidenciado nos relatos dos entrevistados E e L, respectivamente:

Aí tem que botar a canoa pra baixo. Ficar na posição pra preparar, que a hora que avistar o peixe tem que sair. Já aconteceu de chegar aqui e não ter gente suficiente pra tocar e o peixe vim passando e é aquela correria danada! (Entrevistado E, 2019)

Quando o mar está agitado a gente nem bota a canoa pra fora do rancho. De repente é pouca gente, o pessoal vai embora e a gente depois tem que botar para dentro, então é difícil . . . (Entrevistado L, 2019)

Retirar a canoa de dentro do rancho e posicioná-la à beira d’água sinaliza que as condições marítimas são favoráveis à pesca e ao possível cerco. O gesto simples representa uma resistência ao uso de tecnologias da informação, mantendo viva uma forma de comunicação tradicional. Essa situação se configura como hábito e modo de agir socialmente definidos por meio do qual o fluxo da atividade estratégica acontece ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

A ação de “descer a canoa” ou “colocar a canoa para fora” ocorre dentro da atividade de pesca artesanal, que permite diminuir o tempo de reação ou resposta no momento em que o cardume é avistado e a canoa é colocada na água para realizar o cerco. A canoa fica de prontidão, equipada e posicionada para a qualquer momento iniciar a ação.

Já a ação de verificar os materiais para pesca (A1.3) acontece enquanto alguns pescadores ficam observando o mar e na espera pelo aceno dos vigias. Diversos materiais são imprescindíveis para a pesca artesanal da tainha: a canoa, com os reparos feitos no próprio rancho por um pescador experiente na arte de marcenaria, que deve estar permanentemente em ótimas condições de navegação; os remos, que são imediatamente substituídos ao sofrerem danos durante a pesca (elemento que caracteriza essa atividade); as redes de pesca, que exigem manutenção constante devido à sua fragilidade; além das ferramentas e utensílios para manutenção.

A partir das observações às rotinas dos pescadores, identificamos que, em diversos momentos ao longo do dia, enquanto o cerco ainda não acontecia, as redes eram reparadas por um grupo de pescadores. Juntos, buscavam buracos na rede para fazer a costura. Após o conserto, as redes eram acomodadas cuidadosamente no fundo da embarcação de modo a facilitar seu lançamento ao mar.

A Fase 2 ou prática de cerco ao peixe (P2) é composta pelas ações: (A2.1) sinal do vigia; (A2.2) boiar a canoa; (A2.3) lançar a rede; (A2.4) entrar a canoa; (A.2.5) puxar a rede; e (A2.6) desmalhar o peixe, como ilustra a Figura 3 .

Figura 3
Strategizing na Fase 2

O sinal do vigia (A2.1) dá início ao cerco, anunciando a presença do cardume de tainha, geralmente abanando um casaco. O patrão recebe o sinal e avalia as condições para se iniciar o cerco (mar, vento, correnteza, equipamentos suficientes, tripulação completa, que, além do patrão, possui quatro remadores e um chumbereiro).

Podemos dividir a comunicação em dois tipos: a tradicional (sem uso de tecnologias da informação) e a moderna. A moderna é baseada no uso de radiocomunicadores e celulares com aplicativos de redes sociais. Mas, na praia, ainda é muito eficiente o uso de sinais (exceto sonoros, pois espantam as tainhas). No relato do proprietário L, podemos evidenciar como acontece:

Aí o olheiro que vai dizer:Olha, tá passando peixe aqui. Quanto maior a quantidade de peixe, [a água] vai mudando a coloração . . . Eles têm um celular, eles comunicam:Ó, tá passando peixe!ouAqui tem peixe parado!. Aí o patrão vai lá e vê se tem condições, se vale a pena levar a canoa pra fazer o cerco lá. Ou ele faz o sistema de . . . aceno . . . conforme eles vão acenando, a gente vai [acompanhando o cardume], procura saber [visualmente] se a quantidade de peixe é boa ou não . (Entrevistado L, 2019)

Durante a entrevista com o patrão de uma parelha, observamos que começou uma movimentação na outra parelha, a canoa “boiou”. Enquanto ela se deslocava para efetuar o lanço, a praia, que estava semideserta, em poucos instantes ficou repleta de ajudantes, curiosos, fotógrafos profissionais e amadores. Ficou evidente que a notícia do cerco se espalhou com muita rapidez. Percebemos que o uso da tecnologia da informação estava presente naquele momento. Mas, antes disso, o patrão soube que havia um cardume (que estava a quilômetros de distância) por meio de um sinal do vigia. De onde ele estava, conseguia avistar uma pessoa abanando um casaco escuro, esse era o código de que havia peixe suficiente para tomar a decisão de deslocar a canoa.

Após o sinal visual, o patrão decidiu iniciar a operação do cerco, ou boiar a canoa (A2.2) (expressão utilizada pelos pescadores para designar a saída da canoa da terra para o mar). O patrão reuniu os tripulantes e partiu para iniciar o processo de captura do peixe. Esse é um dos momentos de maior tensão do cerco, pois a canoa precisa atravessar a rebentação das ondas, situação que exige muito da experiência do patrão para aproveitar o momento de calmaria das ondas. Essa prática depende da vivência e do conhecimento tácito acumulado do pescador/praticante ( Jarzabkowski et al., 2007Jarzabkowski, P., Balogun, J., Seidl, D. (2007). Strategizing: the challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 ).

Com a canoa já em mar aberto e se deslocando paralelamente à praia, é preciso que o patrão aviste o peixe e dê a ordem para realizar o cerco no momento exato e com o movimento correto, sob o risco de perder o cardume. Acontece, então, a ação de lançar a rede (A2.3), bloqueando a frente do cardume, no sentido contrário ao movimento do peixe. Dessa forma, o cerco se fecha. Com a canoa em movimento, o chumbereiro vai soltando a rede no mar, lançando o chumbo pela borda da canoa e de maneira contínua e regular para evitar que a rede saia “embrulhada” de dentro da canoa. O patrão auxilia nessa atividade lançando a parte da rede onde estão as cortiças (flutuadores ou boias). Percebemos que o próprio movimento da canoa ajudou no lançamento da rede, portanto, o chumbereiro e o patrão não fazem muito esforço para lançar a rede no mar, dependem do “aparelho” e da onda para completar o movimento com êxito ( Werle & Seidl, 2015Werle, F., Seidl, D. (2015). The layered materiality of strategizing: Epistemic objects and the interplay between material artefacts in the exploration of strategic topics. British Journal of Management, 26(1), S67-S89. doi:10.1111/1467-8551.12080 ).

A ação de entrar a canoa (A2.4) diz respeito à volta da canoa para a areia. É mais um momento de tensão, pois a canoa enfrenta novamente a rebentação das ondas. Nesse momento, a ajuda dos remadores é fundamental, visto que eles estarão de frente para as ondas. Esse é o arremate do cerco e deve ser relativamente rápido para que dê tempo de a corda chegar na areia e os camaradas e ajudantes começarem a puxar para que o peixe não fuja pela ponta que ainda não está fechada com a rede. Existe o risco de a canoa “correr” na onda e virar ou adernar.

Após a entrada da canoa, chega o momento de puxar a rede (A2.5). Esse é o principal momento de interação entre comunidade e pescadores, que se unem em um esforço conjunto para retirar a rede do mar. Nesse instante, é comum ver crianças e idosos, turistas e curiosos entre os pescadores ajudando a puxar a rede. Todas as pessoas que, inseridas ou não no coletivo de pesca, fazem o trabalho de executar as práticas estratégicas são denominados praticantes da estratégia ( Jarzabkowski, 2005Jarzabkowski, P. (2005). Strategy as practice: an activity-based approach. Thousand Oaks: Sage. ). A rede é puxada por duas frentes e em cada ponta um grupo de pessoas puxa com as próprias mãos a corda até a chegada completa da rede na praia. Algumas pessoas utilizam o puxador, uma espécie de cinto feito com um pedaço de mangueira de incêndio cortada e uma corda um pouco maior passada por dentro; o camarada veste o puxador na altura da sua cintura e enrola a ponta da corda no cabo da rede.

A partir da observação não participante, percebemos que havia na praia, durante esse cerco, a presença de turistas curiosos com a movimentação de pescadores, canoas e redes, que se somavam ao grupo de ajudantes e, de forma espontânea, ajudavam os pescadores em seu trabalho.

Por fim, a ação de desmalhar o peixe (A2.6) é o momento em que as pessoas começam a se mobilizar para iniciar o desmalhe e empilhar a rede em um monte na areia da praia, sob o olhar atento do patrão da canoa, vigias e camaradas mais antigos. Essa ação requer habilidade para conseguir retirar o peixe sem danificar a rede (alguns inexperientes podem arrebentar o fio) e “machucar” o peixe. Logo após a retirada de todas as tainhas, a rede precisa ser acomodada novamente dentro da canoa, assim como o cabo (corda), e deixa-se tudo pronto para o próximo cerco.

Durante o processo, o patrão e o chumbereiro posicionam-se dentro da canoa com uma outra pessoa que dobra a rede. Eles recebem a rede “desembrulhada” das mãos de outros pescadores, que estão posicionados numa das laterais da canoa. Um grupo fica enfileirado segurando o chumbo e outro grupo também enfileirado segurando a cortiça, um quarto grupo fica responsável por aproximar o restante da rede, que se encontra totalmente revirada, enrolada e espalhada pela praia. Com um movimento similar ao de baldeação de água, a rede vai passando de mão em mão e cada um vai esticando um pouco, sacudindo e desenrolando até ela chegar totalmente limpa e dobrada em zigue-zague no fundo da canoa, para facilitar na hora de lançar. Esse processo é caracterizado pela interação e participação da parelha e da comunidade – praticantes internos e externos ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

ECE3 – Ações autônomas e strategizing no cotidiano da pesca (AA)

As ações autônomas estão conectadas com a perspectiva emergente da estratégia ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
https://doi.org/10.1016/S0024-6301(00)00...
), emergindo da práxis alinhada à prática cotidiana do praticante ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
https://doi.org/10.1177/0170840606064101...
). Andersen conceitua as ações autônomas como ações emergentes e não planejadas, que podem moldar ou criar a estratégia de uma organização. Esse conceito converge com a abordagem strategizing quando considera que a estratégia de uma organização acontece em conjunto com as ações autônomas dos praticantes.

Andersen (2000)Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
https://doi.org/10.1016/S0024-6301(00)00...
afirma que as ações autônomas estão conectadas ao desempenho econômico e financeiro das organizações, com o poder de influenciar a performance da instituição. Portanto, está subjacente ao conceito de ações autônomas uma racionalidade técnica e instrumental que considera como ações autônomas aquelas que, dentro da lógica de mercado, propiciem alguma vantagem competitiva. A absorção das estratégias emergentes, ou das ações autônomas, pela estratégia deliberada parece estar condicionada a sua capacidade de elevar o desempenho organizacional e sua performance econômica diante do mercado.

Na prática, é possível que as ações autônomas também se relacionem com o fazer estratégico, mesmo sem alterações nos objetivos estratégicos da organização. Suspeitamos que as ações autônomas possam estar imbricadas com o interesse da organização em manter vivas suas raízes com o passado, sobretudo em contextos nos quais a força da organização esteja vinculada a um modo de produção tradicional, cujas práticas presentes nos remetam ao passado e tragam consigo um sentido de coletividade, tradição e cultura.

A pesca artesanal na região da grande Florianópolis é uma atividade que traz muitos desses elementos que estamos estudando. De acordo com as pesquisas de Menezes (2011)Menezes, E. C. O. (2011). Cooperativismo e desenvolvimento territorial sustentável: orientações estratégicas e alternativas de geração de trabalho e renda das comunidades pesqueiras da Grande Florianópolis – Santa Catarina (Relatório de Pós-doutorado em Administração). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC. , “a pesca artesanal é uma atividade tradicional imbricada nas comunidades e no nível territorial” (p. 252). A principal característica dessa atividade é sua forte herança histórica na sociedade; suas práticas cotidianas estão carregadas de experiência e sabedoria popular, crenças e racionalidades ético-valorativas, perpetuadas ainda que sob tensão constante da lógica de mercado.

Nesse tipo de atividade, manter a tradição é uma regra implícita. Por exemplo, na opinião dos pescadores do CPAT, a utilização de embarcação motorizada descaracteriza a pesca artesanal, embora o conceito de pesca artesanal não faça essa distinção. Menezes (2011)Menezes, E. C. O. (2011). Cooperativismo e desenvolvimento territorial sustentável: orientações estratégicas e alternativas de geração de trabalho e renda das comunidades pesqueiras da Grande Florianópolis – Santa Catarina (Relatório de Pós-doutorado em Administração). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC. , por sua vez, deixa claro que é preciso reconhecer que a modalidade pesca artesanal é uma atividade realizada “única e exclusivamente pelo trabalho manual do pescador. Essa atividade está baseada, geralmente, em conhecimentos transmitidos aos pescadores pelos seus ancestrais, pelos mais velhos da comunidade” (p. 126).

A pesca artesanal ocorre sem o advento de qualquer suporte tecnológico moderno, portanto, as práticas cotidianas não se alteram significativamente e poucas situações do dia a dia são inesperadas, isto é, as mudanças no sistema de pescaria acontecem lentamente ao longo dos anos ( Menezes, 2011Menezes, E. C. O. (2011). Cooperativismo e desenvolvimento territorial sustentável: orientações estratégicas e alternativas de geração de trabalho e renda das comunidades pesqueiras da Grande Florianópolis – Santa Catarina (Relatório de Pós-doutorado em Administração). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC. ). Justamente por não depender de recursos tecnológicos e inovadores, o CPAT sobrevive ao tempo. Essa organização tradicionalista não persegue os padrões atuais de uma organização empresarial que visa ao lucro como resultado. Suas ações estão orientadas para a preservação da tradição e heranças locais. Dessa forma, os pescadores buscam manter viva uma cultura que se perpetua há muitos anos na comunidade.

Observamos que, embora exista o comércio de peixe no extremo da cadeia produtiva, não há evidências que apontem que os pescadores do CPAT realizem a atividade de pesca artesanal movidos pelos ganhos financeiros. De acordo com as entrevistas, os relatos dos pescadores apontam o contrário, o que nos leva a supor que existem outras motivações, como o prazer gerado pela atividade de pescaria, a preservação da cultura e tradição da pesca artesanal ou, até mesmo, o interesse em transmitir para as próximas gerações as práticas da pesca artesanal.

As pesquisas de Menezes (2011)Menezes, E. C. O. (2011). Cooperativismo e desenvolvimento territorial sustentável: orientações estratégicas e alternativas de geração de trabalho e renda das comunidades pesqueiras da Grande Florianópolis – Santa Catarina (Relatório de Pós-doutorado em Administração). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC. e Menezes et al. (2016)Menezes, E. C. O., Serva, M. R., Ronconi, L. F. A. (2016). Governança dos recursos de uso comum e desenvolvimento territorial sustentável: análise dos arranjos institucionais da pesca na grande Florianópolis. Revista de Gestão Social e Ambiental, 10(1), 22-40. doi:10.5773/rgsa.v10i1.1109 afirmam que, embora exista uma tensão entre racionalidades presente na pesca artesanal (instrumental, substantiva e ambiental), para todos os pescadores artesanais pesquisados o trabalho de pesca é bom e traz liberdade. Em nossa pesquisa percebemos o mesmo padrão nos relatos dos entrevistados. Apontamos o relato do patrão M, um ancião de 92 anos, para representar o sentimento do coletivo:

Eu tenho uma paixão por isso aí [ambiente da pesca], é a vida da gente, né? Minha vida toda foi na praia, a gente chega na praia . . . não só eu como qualquer pessoa, sai de casa assim meio zangado, contigo próprio, né? Chega ali na praia, vê aquele lindo mar, aquilo ali quando a pessoa volta, já volta diferente, aquilo tudo que levou pra lá, tudo se esquece lá, entendeu? Aquilo ali é uma vida! Pra mim é! Pra mim é uma vida . (Entrevistado M, 2019)

Dessa forma, ao analisar a SasP nesse coletivo, consideramos que sua lógica de gestão difere das empresas convencionais, visto que o CPAT deseja preservar a tradição e cultura da pesca artesanal de tainha naquela comunidade. Portanto, consideramos o fazer estratégico, nesse caso, como um conjunto de ações que ocorrem para manter viva a cultura da pesca artesanal.

Nos demais relatos, percebemos que as ações dos outros integrantes também não são condicionadas aos objetivos econômicos e financeiros oriundos da pesca, até porque muitos possuem outras profissões e a pesca artesanal da tainha é possível apenas três meses ao ano. Entre os relatos, destacamos: “ a gente não ganha dinheiro com isso ”, “ estou aqui porque gosto, cresci pescando tainha ”, “ tainha não dá futuro ”. Com base nos discursos dos entrevistados, entendemos que, embora o objetivo do CPAT seja capturar o máximo de peixes que sua estrutura artesanal comporta, encontra-se subjacente em sua estratégia um elemento importante que condiciona suas ações: preservar a tradição.

A literatura sobre ações autônomas e estratégias organizacionais nos condiciona a buscar eventos e episódios que destaquem as ações emergentes dos gestores abaixo da alta administração que tenham implicações estratégicas, ou seja, promovendo sua alteração. Essa forma de análise, porém, foi pensada para estudar organizações empresariais orientadas pelo mercado, cujo ambiente é dinâmico no que tange à inovação constante.

Nesse caso, nos deparamos com situações em que as ações autônomas ocorrem para manter a situação em que se encontra o coletivo de pesca. Ações inovadoras são desestimuladas por colocarem em risco a estratégia (de manter a tradição), ainda que melhorem os resultados. Algumas ações seriam até simples de se implementar e aumentariam significativamente a produtividade, como aumentar o volume de carga das embarcações, aumentar a capacidade das redes, inserir equipamentos eletrônicos marítimos (radares, sondas e GPS), realizar contratos de mão de obra especializada, uso de guinchos, motores e veículos para auxiliar nas atividades em praia etc.

Acreditamos que tais ações e práticas são desencorajadas devido ao seu potencial de retirar o caráter artesanal da atividade de pesca, principal atributo que rendeu a esse coletivo o título de patrimônio imaterial de Santa Catarina. Ainda, por meio das observações e entrevistas, percebemos que há uma cultura de autoridade definida com base em valores tradicionais (respeito e sabedoria), sobretudo relacionados à experiência. É possível que essa característica também contribua para a manutenção das características originárias da pesca artesanal no CPAT.

Nesse sentido, percebemos que as estratégias emergentes e ações autônomas existem no coletivo, porém, estão atreladas não à ideia de mudança da estratégia, mas, sim, à ideia de respeito à cultura e manutenção da forma tradicional de pesca artesanal. Como vimos anteriormente, as práticas e ações ainda guardam semelhança com os modos de produção primitivo, sobretudo com a distribuição de parte da produção entre os praticantes e comunidade, e apenas com uma fração comercializada.

Considerando as ações autônomas observadas que convergiram com os conceitos de strategizing , foram identificados cinco episódios principais (E1 a E5), que se destacaram por contribuir significativamente para o fazer estratégico estabelecido.

O primeiro episódio (E1) surge da observação de uma ação corajosa de um remeiro. O mar da praia do Campeche é considerado por muitos pescadores como “nervoso”, ou seja, perigoso para banhistas e embarcações. Também não é raro encontrar nessa praia condições de mar muito diferentes, por exemplo, na frente do rancho (e devido à proteção natural da ilha) o mar pode estar calmo e com ondas pequenas, e a menos de um quilômetro dali o mar pode estar agitado e com ondas altas. Nesses casos, a canoa consegue entrar no mar devido a sua posição estratégica na praia, mas, dependendo do local em que ocorrerá o cerco, a travessia da arrebentação pode significar colocar a tripulação da canoa em risco.

Pela lógica de mercado, a solução passaria pela aquisição e uso de embarcações modernas, motorizadas e mais dinâmicas, que inclusive já são utilizadas para transporte de turistas para a Ilha do Campeche, entretanto, essa estratégia é descartada pelo coletivo, pois as canoas tradicionais a remo dão um significado importante à pesca artesanal.

Entretanto, observamos, durante a realização de uma captura de peixe, que o coletivo encontrou uma solução peculiar para não descaracterizar a pesca artesanal. Uma vez no mar, a canoa precisa retornar à praia para “fechar o cerco”, ou seja, entregar a outra ponta da rede para os puxadores (camaradas). Nesse momento, o patrão percebeu que seria muito arriscado enfrentar as ondas naquele ponto da praia, então, um remeiro se prontificou para levar a corda (cabo da rede) a nado até a praia. Devido a essa ação, o cerco e a pesca ocorreram com sucesso. Durante a entrevista com esse remeiro, ele nos relatou que: “ nem sempre foi assim, pois antigamente nenhum remeiro sabia nadar ”. Atualmente, o rancho procura manter permanentemente um remeiro com essa habilidade entre os tripulantes, sempre munido de um par de nadadeiras.

Observamos aqui uma correspondência com Andersen (2000)Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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, que afirma que as ações autônomas podem fornecer à organização uma melhor compreensão das condições em mudança e ajudar a identificar novas maneiras de adaptar as atividades da empresa. Assim, devido a uma ação autônoma de um remeiro, o coletivo adaptou sua prática para não precisar abortar o cerco e, consequentemente, perder o cardume, que nesses casos acaba sendo capturado por barcos motorizados e redes anilhadas. Não é obrigação do remeiro desempenhar essa ação, ela é feita de forma voluntária, como basicamente tudo dentro da pescaria artesanal. Tal ação favorece o desempenho organizacional, porém não compromete as práticas tradicionais de pesca artesanal e a manutenção das suas características fundamentais.

Nosso segundo episódio (E2) está diretamente relacionado à transmissão da arte da pescaria para as novas gerações. O coletivo de pescadores do Campeche, consciente da dificuldade de renovação de pescadores artesanais e da inexistência de centros de treinamento que preparassem o jovem para a profissão, resolveu criar por conta própria uma “escola” para repassar seus conhecimentos e estimular, dentro da comunidade, o engajamento dos jovens na pesca artesanal.

Como a principal carência de mão de obra especializada era a função de remeiro, o ensino começou por essa prática, que é uma das atividades mais importantes e de maior responsabilidade na pesca artesanal (lembrando que é por meio dela que surge a figura do patrão), pois exige, além de conhecimento, experiência em navegação e preparo físico. Por essa razão, não era prudente inserir jovens inexperientes na atividade de remeiro sem antes prepará-los para os desafios dessa prática.

Foi pela iniciativa de um remeiro experiente e preocupado com a extinção da atividade por falta de renovação de mão de obra (patrão N) que se decidiu reunir um grupo de jovens camaradas interessados em aprender a remar. Com recursos próprios e a ajuda do próprio rancho, patrão N colocou a canoa em um reboque e transportou-a para a Lagoa da Conceição (localidade próxima), pois considerou um local seguro. Ali, ele mesmo repassou aos novatos a teoria e a prática na arte de remar. A ação deu certo e se desenvolveu com o apoio de empresários locais. Criou-se, então, o projeto “Escola de remeiros do Campeche”, uma ação coletiva com o objetivo de transmitir o ofício de pescador para os jovens da comunidade.

O terceiro episódio (E3) também está relacionado com a dificuldade de transmitir a tradição para novas gerações e a manutenção da tradição da pesca artesanal não apenas na praia do Campeche, mas também nas comunidades vizinhas. A escassez de remeiros na atividade de pesca não era exclusividade do CPAT, fato constatado pelo próprio patrão (N) quando recebeu um telefonema de um colega desabafando sobre sua preocupação pela falta de remeiros. Ele era patrão de um rancho de pesca na Praia dos Açores, que havia avistado um cardume grande de tainhas, a canoa estava toda preparada, porém, não havia remeiros. Imediatamente o patrão (N), que estava com mão de obra sobrando, reuniu um grupo de remeiros de sua parelha e conduziu-os com seu próprio veículo para auxiliar os colegas da praia dos Açores. A ação resultou numa pescaria de sucesso e o peixe capturado foi dividido entre os dois ranchos.

A escola de remeiros do Campeche é uma estratégia criada a partir de uma ação autônoma para suprir a carência de mão de obra especializada local numa prática importante para a sobrevivência do coletivo. Porém, essa estratégia permitiu outra ação autônoma: ajudar outros coletivos. Essa ação autônoma evoluiu e mostrou-se uma estratégia interessante para ajudar a manter viva a tradição da pesca artesanal na região de Florianópolis, pois descobriu-se que seria possível “emprestar” remadores para outras comunidades pesqueiras.

O quarto episódio (E4) talvez seja o que tem maior relação com a manutenção da cultura, tradição. Ele é responsável pela reaproximação da comunidade com o coletivo de pesca, trouxe maior visibilidade e motivou crianças, jovens e adultos a participarem da atividade pesqueira. Um dos pescadores mais conhecidos do Campeche, também músico (além de um grande entusiasta cultural e um líder comunitário), decidiu usar o rancho de pesca de sua família para dar aulas gratuitas de música para a comunidade durante a entressafra da tainha.

Essa ação autônoma foi o início do movimento de construção de um centro cultural dentro do próprio coletivo de pesca, que funciona até hoje dentro do mesmo rancho de pesca onde são oferecidas, além das aulas de música, aulas de manutenção e confecção de redes, culinária típica, ensino da história e da arte da pesca artesanal no Campeche. O movimento cresceu e Seu Getúlio, como era conhecido na comunidade, realizou outras ações importantes para o coletivo de pescadores, como a idealização e fundação da Associação de pescadores do Campeche (ASPAC), em 1998. Seu Getúlio faleceu em 2018, mas suas ações foram amplamente incorporadas pelo coletivo de pescadores. Elas tornaram o rancho em que trabalhou e viveu conhecido como “locomotiva cultural” ( Bispo, 2018Bispo, F. (2018, 31 de janeiro). O legado cultural e social de Seu Getúlio para comunidade do Campeche. ND+. Recuperado de https://bit.ly/3u59zBX
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).

A associação APASC foi ainda um importante catalisador para a criação do projeto Tekoá Pirá (tradução não literal do guarani: pescando na aldeia), ação idealizada pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), voltado para o desenvolvimento do turismo de base comunitária e salvaguarda da pesca da tainha na praia do Campeche. Esse importante projeto tem ainda como foco o modo de vida histórico da Ilha de Florianópolis e suas comunidades tradicionais. Suas ações levaram ao registro da pesca como patrimônio cultural de Santa Catarina, publicação de livros sobre a pesca, realização de roteiros culturais nos ranchos de pesca e aprovação de projeto para realizar a cartografia social do território tradicional da pesca da tainha com recursos do prêmio Elisabete Anderle de estímulo à cultura 2020 (Instituto Federal de Santa Catarina, 2020).

Andersen (2000)Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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afirma que a capacidade dos líderes de tomar decisões autônomas permite que a organização seja sensível às mudanças ambientais e amplia sua capacidade de adaptação e transformação, principalmente em ambientes dinâmicos e complexos. Entretanto, percebemos que, no contexto estudado, as ações autônomas estão ajudando a organização a preservar sua cultura e manter suas tradições, bem como suas características, valores e princípios.

No quinto episódio (E5), reconhecemos as ações decorrentes da participação dos turistas nas práticas da pesca artesanal como ações autônomas em relação à própria tradição da pesca artesanal a partir de dois conceitos teóricos. O primeiro trata-se do conceito de autonomous actions ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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), que se refere às ações espontâneas realizadas pelos atores organizacionais com uma relativa independência. O segundo conceito reconhece que os praticantes do fazer estratégico, ainda que na qualidade de agentes externos à organização ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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), integram o strategizing , uma vez que executam práticas estratégicas que ocorrem no interior da instituição.

Durante a pesquisa, chamou nossa atenção a satisfação dos turistas e visitantes em ter a oportunidade de interagir com a pesca artesanal da tainha, demonstrado também pelos incessantes registros fotográficos e filmagens durante a sua participação nas tarefas dos pescadores, bem como no momento em que os peixes aparecem na rede. Pelas conversas e observações realizadas, percebemos que as ações dos turistas em ajudar os pescadores a puxar e guardar a rede, desmalhar e carregar o peixe, empurrar a canoa e as estivas eram espontâneas e não orientadas diretamente pelos costumes ou tradições da pesca artesanal da tainha.

O “estar presente” quando a pesca está acontecendo é para os turistas uma circunstância inesperada, uma oportunidade de assistir ao lanço da tainha e poder participar de algumas práticas dessa pescaria. Eles agem sem a garantia de auferir lucro ou ganhar algo em troca (embora seja comum os pescadores reservarem uma pequena fração do montante de peixe capturado para distribuir entre as crianças e as mulheres pela ajuda recebida, como uma espécie de cortesia), tampouco possuem quaisquer obrigações com a organização. Consideramos, portanto, os episódios relacionados com a ajuda espontânea dos turistas como ações autônomas que se relacionam com o strategizing .

O efeito do encadeamento dessas ações autônomas para a estratégia da organização é muito amplo e difícil de mensurar, mas se pensarmos na importância dessas práticas para modalidades de turismo cultural e sustentável (ainda que tenha um caráter de imprevisibilidade, pois a realização dessas ações depende diretamente das condições de pesca, além de diversos outros fatores), não podemos ignorar que esses tipos de episódios podem ajudar a justificar e fortalecer ainda mais o discurso e a prática de preservação da tradição da pesca artesanal, considerado aqui como objetivo subjacente da organização pesquisada.

Por fim, acreditamos que pesquisar na prática como as ações autônomas se relacionam com o fazer estratégia permite compreender a dinâmica complexa das construções estratégicas, a exemplo deste caso estudado por nós.

Retomando a questão de pesquisa

Retomando a questão de pesquisa inicial “Como as ações autônomas emergem do processo de strategizing em contextos organizacionais alternativos?” e a proposição de que (a) as ações autônomas estão conectadas ao fazer estratégico por meio da práxis e influenciam as práticas cotidianas dos praticantes ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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), entendemos que as ações autônomas emergem no processo de strategizing , no caso do CPAT, a partir das vivências cotidianas coletivas, no intuito de manter viva a tradição da pesca artesanal da tainha nessa comunidade, assim como contribuem para o desenvolvimento regional já estabelecido com o turismo local.

O desafio deste estudo foi trabalhar os conceitos de ação autônoma ( Andersen, 2004Andersen, T. J. (2004). Integrating the strategy formation process: an international perspective. European Management Journal, 22(3), 263-272. doi:10.1016/j.emj.2004.04.008
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) e strategizing ( Whittington, 1996Whittington, R. (1996). Strategy as practice. Long Range Planning, 29(5), 731-735. doi:10.1016/0024-6301(96)00068-4
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) num tipo de organização que não possui um planejamento estratégico formal, utilizando os conceitos de estratégia dinâmica e em constante movimento, derivando os resultados de estudos teórico-empíricos em organizações empresariais com políticas de planejamento estratégico bem definidas.

Ao buscar responder à questão de pesquisa, tivemos que nos interrogar inicialmente se é possível que strategizing ocorra em qualquer tipo de organização, até mesmo naquelas que não estão preocupadas com a estratégia e sequer a planejam. Procuramos, então, analisar o CPAT a partir da perspectiva da SasP e, nesse sentido, identificamos que a estratégia corresponde às atividades que as pessoas fazem, que podem ocorrer tanto por motivações internas quanto virem de fora das organizações e com efeitos que permeiam sociedades inteiras ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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). O entendimento da estratégia a partir do fazer estratégico do cotidiano de pesca analisado pode contribuir para o fortalecimento do avanço do conhecimento sobre a perspectiva da estratégia desde o nível das microatividades, ou seja, a estratégia como uma prática social ( sociological view ) que diverge da lógica da estratégia clássica advinda do mainstream.

As práticas do coletivo de pescadores seguem um ritual e uma rotina instaurada com base nos valores tradicionais institucionalizados pela comunidade, que pouco se alteraram com o passar dos anos. Assim, as ações autônomas que emergem do strategizing , nas práticas dessa organização, garantem a sobrevivência da identidade do coletivo. Entendemos que o fazer estratégico do CPAT se insere nas práticas do trabalho cotidiano a partir do nível das microatividades, evidenciando o potencial das rotinas dinâmicas ( Iasbech & Lavarda, 2018Iasbech, P.; Lavarda, R. A. B. (2018). Strategy and practices: a qualitative study of a Brazilian public healthcare system of telemedicine. International Journal of Public Sector Management, 31(3), 347-371. doi:10.1108/IJPSM-12-2016-0207 ).

Ao contrário da pesca industrial, que parece se apoiar em inovações tecnológicas para aumentar a produtividade e os lucros, as ações autônomas e o strategizing em coletivos de pesca artesanal seguem uma lógica diferente, ou seja, são orientadas por princípios e valores tradicionais, compartilhados pela comunidade local e, em geral, ajudam a reforçar a tradição da pesca artesanal.

Assim, o CPAT é uma organização que não se preocupa com ferramentas estratégicas, como o planejamento estratégico formal, tão comum no universo empresarial, entretanto, muitas de suas ações estratégicas são deliberadas pelo nível hierárquico superior, ainda que informal, e seu principal objetivo gira em torno de coletar peixes de forma inteiramente artesanal, sem perder suas raízes, tradições e cultura. Sendo assim, o fazer estratégico não está relacionado ao lucro econômico ou financeiro, mas, sim, com preservar a tradição centenária da pesca artesanal da tainha e ainda colaborar com a preservação da cultura local. Essa atividade converge com a vocação turística da cidade de Florianópolis, que é uma de suas principais fontes de receita.

Assim, chegamos à segunda proposição teórica: (b) “em organizações que não seguem a lógica do mercado, as ações autônomas desejadas e incorporadas à estratégia tendem a ser menos instrumental, ou seja, não estão condicionadas ao desempenho econômico e financeiro” ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

Constatamos inconsistências na literatura sobre ações autônomas e estratégias emergentes quando se vinculam aos resultados organizacionais. Primeiro, valorizam-se as ações dos gerentes intermediários ( middle managers ), porém, ignoram-se as ações dos atores dos níveis operacionais. Percebemos, durante a pesquisa, que as ações autônomas e emergentes podem se desenvolver em qualquer nível organizacional. Segundo Andersen (2000)Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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, a existência de ações autônomas nas organizações está condicionada ao seu potencial de racionalizar processos, melhorar performance no mercado e aumentar o desempenho econômico, condição que restringe as ações autônomas. Fica implícito que tais abordagens favorecem análises em ambientes organizacionais que obedecem às leis de mercado (dinâmicos e competitivos), nos quais existe uma necessidade constante de se alterar a estratégia, incorporando-se novas tecnologias e processos inovadores de produção. Nossa pesquisa identificou que, em contextos alternativos, as ações autônomas podem ocorrer não somente pela lógica instrumental, mas também guiada por outras racionalidades que se orientam pela tradição e cultura, senso de coletividade, cooperação e trabalho em grupo.

Nas organizações coletivistas, por exemplo, em que tradição e trajetória cultural se apresentam como a pedra angular de sua existência e esses elementos encontram-se ameaçados pelas transformações do ambiente externo (sejam crescimento urbano desordenado, ameaça ao meio ambiente, avanço das indústrias e das tecnologias), o movimento para preservar a sua própria cultura e tradição não é só uma estratégia importante, mas fundamental para a própria sobrevivência do coletivo.

Esta pesquisa, que realizamos a partir da perspectiva da estratégia como prática social em um contexto organizacional orientado por questões que superam os objetivos econômicos e de desempenho, apontou que as ações autônomas e ações estratégicas emergentes estão imbricadas em princípios e valores culturais e tradicionais de forma compartilhada, podendo também se conectar com a estratégia organizacional em um esforço de resistência para preservar suas formas primitivas de organização, estrutura e produção artesanal.

A partir do trabalho de pesquisa realizado em campo, acreditamos que as ações autônomas emergem do strategizing , que, guiadas pela racionalidade predominante (substantiva e ambiental), podem se apresentar como eventuais ou serem incorporadas à estratégia principal, desde que reforcem a estratégia de manter a essência do coletivo.

Considerações finais

O objetivo desta pesquisa foi compreender como as ações autônomas emergem do processo de strategizing em contextos organizacionais alternativos. O objeto estudado foi o cotidiano da pesca artesanal da tainha na Ilha de Florianópolis-SC. Para atingir o propósito deste estudo, foram coletados dados a partir de entrevistas, documentos e observações in loco , durante a safra da tainha, de maio a julho de 2019. Em conjunto com a coleta de dados, foram feitas comparações e contrastes com a teoria e o contexto do coletivo de pescadores, voltando-se constantemente a campo para entender, a partir dessas observações, como as ações emergentes individuais surgiram, moldando e criando ações do fazer estratégico ( Andersen, 2000Andersen, T. J. (2000). Strategic planning, autonomous actions and corporate performance. Long Range Planning, 33(2), 184-200. doi:10.1016/S0024-6301(00)00028-5
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; Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

A descrição e análise das práticas estratégicas em organizações alternativas, coletivistas, cujas ações não se orientam exclusivamente pela lógica de mercado e nas quais os valores como cultura e tradição fazem parte do processo decisório, nos permitem ainda observar as possíveis contribuições, tensões e restrições dessas práticas para a formação de estratégias organizacionais.

Os resultados encontrados apontaram para a existência de ações e comportamentos estratégicos autônomos, sendo estimulados e desenvolvidos pelos diversos níveis da organização do coletivo de pesca. Esses achados corroboram a afirmação de que as ações autônomas estão conectadas com a perspectiva emergente da estratégia, emergindo da práxis que está alinhada à prática cotidiana do praticante, ou seja, ao modo peculiar, específico e situado desse coletivo na pesca artesanal.

As contribuições teóricas deste estudo se centram na possibilidade de extensão dos conceitos de ação autônoma e strategizing em organizações que não seguem a lógica de mercado e que não possuem nenhuma política de planejamento estratégico ou mesmo uma estratégia formal. A literatura sobre estratégia ignora ou, pelo menos, é precária em processos de formação da estratégia em organizações alternativas. Dessa forma, esta pesquisa avança no sentido de auxiliar a compreender a lógica que não se enquadra no universo do business ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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).

Constatamos que a literatura vigente sobre ações autônomas e estratégias emergentes apresenta pressupostos vinculados aos resultados organizacionais; e, portanto, a existência dessas ações está condicionada ao potencial de incorporação e modificação da estratégia organizacional dentro de uma racionalidade instrumental, com fins utilitaristas, que visam a maior rentabilidade e lucro. Nesse sentido, tais pressupostos favorecem análises em ambientes organizacionais que se orientam e obedecem às leis de mercado (dinâmicos e competitivos), nas quais existe uma necessidade constante de se alterar a estratégia, incorporando novas tecnologias e processos inovadores de produção. Entretanto, esses pressupostos dificultam as pesquisas em contextos alternativos, em que predominam outras racionalidades.

Outra contribuição teórica deste estudo é decorrente do entendimento de que decisões estratégicas podem emergir alheias ao conhecimento da alta direção. Elas podem ser resultantes de ações autônomas conectadas com o fazer estratégia por meio da práxis de seus agentes, considerando que o fazer estratégia ocorre no dia a dia como uma prática social em que as ações, interações e negociações dos praticantes contribuem para os resultados estratégicos ( Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies, 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101
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). Assim, espontaneidade na resolução de situações novas ou mesmo cotidianas, desenvolvida por atores organizacionais com relativa independência do nível superior, pode ser geradora de aprendizado e tem o potencial de moldar a estratégia organizacional.

As contribuições práticas para a vivência do CPAT e para outras organizações similares dizem respeito à percepção e relevância de que seu principal objetivo como coletividade é a manutenção de sua essência cultural e tradicional. Outra contribuição se refere ao entendimento de que dentro de suas práticas, ainda que centenárias, existem ações autônomas que convergem para o atingimento desse objetivo, podendo ser estimuladas e reconhecidas, o que possibilita o fortalecimento do coletivo e da comunidade em que estão inseridos e contribui, ainda, para a gestão dessas práticas e para o desenvolvimento sustentado do setor em âmbito local e regional ( Santos et al., 2012Santos, M. P. N., Seixas, S., Aggio, R. B. M., Hanazaki, N., Costa, M., Schiavetti, A., . . . Azeiteiro, U. M. (2012). A pesca enquanto atividade humana: Pesca artesanal e sustentabilidade. Revista de Gestão Costeira Integrada, 12(4), 405-427. doi:10.5894/rgci385
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).

As dificuldades em compreender as falas dos entrevistados, carregadas por uma linguagem própria dos pescadores, nos demandaram uma atenção maior no momento de realizar as análises, por vezes tendo de rever as gravações, corrigir a transcrição e voltar ao campo para poder fazer uma interpretação correta dos relatos. Entretanto, não consideramos isso uma limitação da pesquisa, mas sim a própria riqueza do trabalho: são registros que ajudam a preservar um pouco da cultura popular, local e territorial.

O curto período de duração da safra da tainha (três meses) não permitiu um convívio maior com o coletivo e nos fez questionar sobre como seriam as práticas do coletivo CPAT durante a entressafra. O curto período de pesca pode ser indício para a realização de futuros estudos comparativos em perspectiva longitudinal.

Os poucos estudos de SasP nesse tipo de organização limitam a ampliação do debate a respeito dos elementos encontrados e que divergem da literatura estudada. Assim, como futuras possibilidades de estudo, sugerimos a realização de pesquisas comparativas, buscando explorar tendências, aproximações e distanciamentos com outros contextos, mas com organização de mesma natureza.

Entendemos que a continuação desta investigação é relevante, utilizando-se mais consistentemente o método etnográfico, a fim de captar com profundidade as práxis desse tipo de organização coletiva. Sugere-se, ainda, aprofundar o estudo em outras organizações que sigam lógicas diferentes das tradicionais, como as associações, com a finalidade de realizar um estudo comparativo que possa contribuir para um melhor entendimento da gestão estratégica alternativa ou do strategizing em organizações alternativas a partir da lógica substantiva.

Agradecimentos

Os autores agradecem a todos os entrevistados, em especial aos familiares do Seu Miguel, ex- patrão do rancho do Chico Doca, que infelizmente faleceu antes da publicação deste artigo. Destacamos que, mesmo com a saúde debilitada e dificuldades para falar, ele nos recebeu em sua casa, de modo acolhedor; e o entrevistamos em seu antigo engenho de farinha. Ali, nos concedeu mais de uma hora de entrevista, repleta de detalhes históricos da tradição e cultura da comunidade, deixando registrado em áudio um pouco de sua paixão pela pesca da tainha, bem como sua trajetória de vida. Mantivemos no artigo seus relatos pela riqueza de detalhes para esta pesquisa e como homenagem póstuma.

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  • Financiamento: Este trabalho teve o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
Editora Associada: Letícia Dias Fantinel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2020
  • Aceito
    12 Jan 2022
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