Acessibilidade / Reportar erro

Escritos sobre a pintura

DOSSIÊ: ENTRE IMAGENS E TEXTOS

Escritos sobre a pintura

Wang Wei

1

Em qualquer um que pinte uma paisagem, a ressonância interior precede o pincel. Do tamanho de um torso são as montanhas; de um pé, as árvores; de um polegar, os cavalos; de uma linha, os homens. Longe, os homens não têm olhos; longe, as árvores não têm galhos; longe, as montanhas não têm rochedos e são confusas como as sobrancelhas; longe, as águas não têm ondulações, harmonizam-se, ao alto, com o nevoeiro. Tal é o procedimento.

As montanhas são enlaçadas pelas nuvens. As rochas e os rochedos abruptos regurgitam vertentes. Os terraços e os pavilhões em andares são rodeados por árvores. As rochas são vistas em três faces; os caminhos, conforme suas duas extremidades; as árvores, em função de suas copas; as águas, pelo pisotear do vento. Tal é a regra.

2

Para qualquer um que pinte uma paisagem, pico vertiginoso é aquele que desponta acima da uniformidade dos cumes; cadeia, aquilo que liga mutuamente as escarpas e os picos; proeminência cavernosa é o que possuem as furnas; escarpa é aquilo que se projeta abruptamente; rocha dominante, aquela pedra que pende inclinada; colina, aquilo que forma redondez; rio, aquilo que é via de comunicação. O caminho apertado entre duas montanhas recebe por nome ravina; a água apertada entre duas montanhas recebe por nome torrente. Aquilo que se assemelha a uma cadeia e tem uma certa altura recebe por nome colinas. Aquilo que se estende uniformemente a perder de vista recebe por nome vertente.

Quem se apóia nisso procede grosseiramente segundo a aparência da paisagem.

3

Quem olha com penetração considera primeiro a manifestação dos sopros. Em seguida distingue o puro e o confuso. Determina as saudações dos hóspedes e do mestre. Ordena a atitude majestosa entre a multidão de cumes. Muito arrasta à confusão, pouco provoca o relaxamento. Que desapareçam o muito e o pouco. É o caso de separar o longínquo do próximo. Não é preciso que as montanhas longínquas estejam em relação com as montanhas próximas, nem que as águas longínquas liguem-se às águas próximas.

Nas dobras à meia altura das montanhas, moradas e templos podem aí ser colocados. Entre as vertentes escarpadas e as elevações de terra, pontes podem ser lançadas. Onde há caminho, estão árvores e florestas. Onde se interrompe a borda alta, está o antigo embarcadouro. Onde as águas se dividem, fumegam as árvores. Onde as águas se estendem, viaja a vela. Onde a floresta se densifica, aparece a habitação.

4

Velam sobre os cumes as árvores antigas, suas raízes interrompidas e enlaçadas aos cipós. Honram o fluxo de sua presença as beiradas altas rochosas. Elas se inclinam extraordinariamente, a água marcou-as de cicatrizes.

Para alguém que pinta árvores e florestas, o que está longe é espaçado e uniforme; o que está perto, alto e apertado. Aquelas que trazem folhas têm os ramos tenros e flexíveis; aquelas que estão desnudas têm os ramos rijos e robustos. As cascas dos pinheiros parecem escamas, as do cedro enrolam-se ao redor do tronco. Aquela que brota sobre a terra tem as raízes que se alongam e os caules retos; aquela que brota sobre os rochedos, fechada como um punho, curva-se solitária. As árvores antigas têm numerosos nós, se bem que metade mortos.

No frio, a floresta se adensa, generosamente estendida; está, no entanto, sombria, destacada do mundo.

5

Quando cai a chuva não se distingue nem céu nem terra, nem leste nem oeste. Quando venta sem chuva vêem-se somente os galhos das árvores. Quando chove sem vento as copas das árvores inclinam-se sob a pressão. Os passantes usam guarda-chuvas e chapéus de palha; os velhos pescadores, mantos de junco. Após a chuva, é o clarear; então as nuvens se recolhem, o céu é de azurita onde finas brumas voltejam quase imperceptíveis. As montanhas realçam-se em untuoso verde-esmeralda. Perto, o sol inclina seu esplendor.

É a luz da manhã, e as mil montanhas desejam a iluminação. Enquanto as brumas e os vapores diminuem, vaga é a luz em seu declínio, agitados e confusos os sopros e as cores.

A luz da tarde e o sol vermelho tocam as montanhas. As velas estão recolhidas perto das ilhotas sobre o rio. A caminho, os passantes apressam-se. As portas em folhas estão entreabertas.

É a luz da primavera, e as brumas entrelaçam-se às fumaças. Desde que elas nascem, esticam-se em branca simplicidade. A água como azul tinge-se. Azul-verde torna-se gradualmente a cor das montanhas.

É a luz do verão, e as árvores antigas escondem o céu. Verde, a água está sem ondas. As cascatas trespassam as nuvens. Perto da água está o quiosque afastado.

É a luz do outono, e o céu parece a água por sua cor. Impenetráveis e sombrias estão as florestas, as ilhas de caniços com suas praias de areia.

É a luz do inverno, e a terra empresta da neve a sua brancura. O lenhador leva feixes de lenha sobre suas costas. Um barco de pesca apóia-se no barranco escarpado, onde a água é pouco profunda e a areia, achatada.

Quem pinta uma paisagem deverá conformar-se às quatro estações.

Alguns afirmam que a fumaça deve envolver; que as brumas devem englobar; outros, que as protuberâncias e cavernas participam das nuvens; outros, que o céu de outono se ilumina para embelezá-las; outros, que sobre os outeiros funerários se vêem estrelas quebradas; outros, enfim, que sobre os caminhos desertos os homens se perdem. Afirmações dessa espécie são o que chamamos de julgamento sobre a pintura.

Não é preciso que os cumes sejam idênticos, nem que as copas das árvores se assemelhem.

Para as montanhas, as árvores são a vestimenta; para as árvores, as montanhas são a ossatura. Nas árvores, é impossível que alguma complicação se manifeste. É essencial que seja percebida a graciosa beleza das montanhas. Nas montanhas, é impossível que aconteça alguma desordem. É imperativo que apareça o vigor das árvores.

Aquele que possui um tal poder de pintar a paisagem pode ser chamado mão que nomeia.

O segredo da pintura

1

Ora, no centro do caminho da pintura a água e a tinta agem soberanamente. Elas apropriam o caráter do que é espontâneo, arrematam a obra daquilo que cria e transforma, fazem surgir tudo aquilo que se encontra próximo, traçam a luz sobre cem mil lugares, do leste ao oeste, do sul ao norte, ajustam-se ao que está diante dos olhos na primavera, no verão, no outono e no inverno.

Para que a vida surja sob o pincel, há que esparramar a água nas proporções convenientes, é preciso recusar-se às montanhas vagas; em seguida, é necessário colocar bifurcações, evitar os caminhos ininterrompidos.

O pico mestre erguer-se-á, como deve, no ponto mais alto, obrigará as montanhas, suas convidadas, a se precipitarem ao seu encontro. Em suas dobras turbilhonantes estarão os mosteiros, enquanto sobre a terra firme, à margem da água, as casas serão dispostas. Aldeias e lugarejos estarão visíveis. Numerosas árvores constituirão uma floresta verdadeira. Os galhos envolverão os troncos.

A montanha escarpada formará um todo com a água que se escoará em cascatas, enquanto as fontes não se expandirão na confusão.

Um embarcadouro criará um sentimento de solidão melancólica; os homens andando aí colocar- se-ão conforme suas distâncias. Balançando, uma barca avançará com o remo até a ponte, esta de acordo com as alturas; o barquinho será perceptível com o pescador e a linha.

Penduradas e sem obstáculo, suspensas no meio de escarpas vertiginosas encontrar-se-ão árvores extraordinárias. Onde paredes abruptas, abismos assustadores surgirão, pelas veredas será impossível passar.

2

Os cimos longínquos e as nuvens manterão uma união mútua. O céu a distância, de mesma cor que a água, trocará com ela sua claridade. As montanhas enganchadas encadearão o panorama. Longeando o fluxo que sairá do ponto mais alto de seu centro, um caminho ligará as escarpas, adaptando-se ao relevo com passarelas que levarão tranqüilamente às terras planas, às casas em andares e aos terreiros.

Inclinados conforme as alturas, os salgueiros refletirão a luz sobre os lugares habitados.

Cada montanha terá seu templo e seu miradouro.

Elegantes, harmoniosas, maravilhosas sequóias ressaltarão as casas assobradadas e os pavilhões.

A luz das distâncias englobará os vapores. Picos impressionantes aferroarão as nuvens.

3

A placa de uma venda de vinho estará pendurada no caminho alto e distante. A vela do hóspede futuro estará abaixada até encontrar a água. Na base das montanhas longínquas abrir-se-á necessariamente uma passagem. As árvores próximas estarão de acordo com aquilo que se lança e se recolhe.

A mão favorecida pelo pincel e pela tinta traça em profusão; ela tem todo o tempo para vagabundear, divertindo-se com as três obscuridades. Os anos e as lunações afastam-se na eternidade. Quem se consagra a escrutar as trevas e o ínfimo, quem ilumina o misterioso não se acha nas palavras muito numerosas. Ele é hábil em estudar, obedecendo ainda ao compasso e ao esquadro.

O telhado do pagode participará do céu; será dispensável ver a grande sala em sua base. Tudo será, parece, presença ou retração tanto no alto como no baixo.

4

Os cones de palha, as elevações de terra só aparecerão pela metade. As cabanas, os quiosques de bambu só deixarão adivinhar uma cornija, uma face de parede.

A montanha dividir-se-á em oito superfícies, as pedras terão três ângulos.

As nuvens que flanarem não deverão parecer cogumelos.

Os personagens não ultrapassarão um punho aproximadamente; os pinheiros e os cedros que aparecerão no primeiro plano terão dois pés de altura.

Wang Wei – Écrits sur la Peinture, traduction & posface de Jean-François Rollin. Paris: Ed. Chandeigne, 1997. Tradução de Milton José de Almeida.

Drawings by Utagawa Kuniyoshi, SDU Publishers, The Hague, 1988. p. 92.

Ilustração: A Ilha de Enoshima, pintura de Utagawa (Igusa) Kuniyoshi, 1797 – 1861.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
UNICAMP - Faculdade de Educação Av Bertrand Russel, 801, 13083-865 - Campinas SP/ Brasil, Tel.: (55 19) 3521-6707 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: proposic@unicamp.br