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Corpo afetado: uma experiência de autorrastreamento com uma tecnologia vestível

Affected body: a self-tracking experience with a wearable technology

Cuerpo afectado: una experiencia de autoseguimiento con una tecnología vestible

RESUMO

Este artigo explora a produção de significados sobre prática de dados na cultura digital a partir de uma experiência de autorrastreamento de exercícios físicos. O objetivo é problematizar a emergência de um corpo que afetou e foi afetado por uma tecnologia vestível durante uma experiência de autorrastreamento. Metodologicamente, o trabalho seguiu o formato de um relato ator-rede pautado por uma vivência de autorrastreamento. Em sua composição analítica-descritiva, o texto articula elementos da Teoria Ator-Rede e conceitos que enredam estudos de autorrastreamento como prática de dados. Foi possível identificar mobilizadores do “faz-fazer” produzido nas múltiplas afetações de um corpo híbrido, performativo e sensível às diferenças registradas no mundo.

Palavras-chave:
Corpo afetado; Autorrastreamento; Tecnologia vestível; Educação Física

ABSTRACT

This article explores the production of meanings about data practices in digital culture based on an experience of self-tracking physical exercises. The aim is to problematize the emergence of a body that affected and was affected by a wearable technology during a self-tracking experience. Methodologically, the work followed the format of an actor-network report guided by an experience of self-tracking. In its analytical-descriptive composition, the text articulates elements of the Actor-Network Theory and concepts that entangle self-tracking studies as a data practice. It was possible to identify mobilizers of the “making-do” produced in the multiple affectations of a hybrid body, performative and sensitive to the differences registered in the world.

Keywords:
Affected body; Self-tracking; Wearable technology; Physical Education

RESUMEN

Este artículo explora la producción de significados sobre práctica de datos en la cultura digital a partir de una experiencia de autoseguimiento de ejercicios físicos. El objetivo es problematizar la emergencia de un cuerpo que afectó y fue afectado por una tecnología vestible durante una experiencia de autoseguimiento. Metodológicamente, el trabajo siguió el formato de un informe actor-red pautado por una experiencia de autoseguimiento. En su composición analítico-descriptiva, el texto articula elementos de la Teoría del Actor-Red y conceptos que enredan estudios de autoseguimiento como práctica de datos. Fue posible identificar movilizadores del ‘hace-hacer’ producido en las múltiples afectaciones de un cuerpo híbrido, performativo y sensible a las diferencias registradas en el mundo.

Palabras-clave:
Cuerpo afectado; Autoseguimiento; Tecnología vestible; Educación Física

RASTROS INICIAIS

O trabalho aqui apresentado integra a pesquisa1 1 Certificado de Apresentação para Apreciação Ética, protocolado e aprovado na Plataforma Brasil sob o número 45393621.3.0000.5151. O trabalho conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) por intermédio de seu Edital nº 001/2022 – DEMANDA UNIVERSAL, Processo APQ-00755-22. intitulada “Autorrastreamento e plataformização: produção de significados sobre práticas de dados na cultura digital”, a qual investiga práticas de autorrastreamento2 2 Tradução adotada para self-tracking. de exercícios físicos imbricadas às tecnologias digitais (TD). O objetivo deste artigo é o de problematizar a emergência de um corpo que afetou e foi afetado ao vestir uma TD durante uma experiência de autorrastreamento digital (AD). Para discutir “corpo afetado”, este texto articula conceitos de trabalhos de Latour (2008Latour B. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: Nunes JA, Roque R, editores. Objectos impuros: experiências em Estudos Sociais sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamentos; 2008. p. 39-61., 2015Latour B. Faturas/Fraturas: da noção de rede à noção de vínculo. Ilha Revista de Antropologia. 2015 Dez [cited 2021 Mai 27];17(2):123-146. Disponível em: https://cutt.ly/NwsFlFYp.
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) e elementos da Teoria Ator-Rede (TAR) (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012.) a estudos que discutem AD como uma prática de dados (Lupton, 2013Lupton D. Quantifying the body: monitoring and measuring health in the age of health technologies. Crit Public Health. 2013;23(4):393-403. http://dx.doi.org/10.1080/09581596.2013.794931.
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, 2014aLupton D. Self-tracking cultures: towards a sociology of personal informatics. In: Proceedings of the 26th Australian Computer-Human Interaction Conference on Designing Futures: the Future of Design; 2014 dez 2-5; Sydney. Anais. Sydney: ACM; 2014a. p. 77-86. http://dx.doi.org/10.1145/2686612.2686623.
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, cLupton D. You are your data: self-tracking practices and concepts of data. In: Selke S, editor. Lifelogging: theoretical approaches and case studies about self-tracking. Wiesbaden: Springer Fachmedien Wiesbaden; 2014c. p. 1-18., 2016aLupton D. Personal data practices in the age of lively data. In: Daniels J, Gregory K, Cottom TM, editores. Digital sociologies. Bristol: Policy Press; 2016a. p. 339-54. http://dx.doi.org/10.2307/j.ctt1t89cfr.27.
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, bLupton D. The quantified self: a sociology of self-tracking. Cambridge: Polity; 2016b.) na cultura contemporânea.

Inicialmente, é indispensável explicitar ao leitor que a discussão promovida neste artigo ganhou condições de existência a partir de uma experiência pessoal de autorrastreamento com uma tecnologia vestível. O propósito dessa automobilização é o de, vividamente, afetar e permitir-se ser afetado por um dispositivo digital de autorrastreamento e, a partir disso, compor um texto cuja “[...] ideia é simplesmente trazer para o primeiro plano o próprio ato de compor relatos” (Latour, 2012, pLatour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012.. 180).

Este texto assume a TAR como guia teórico-metodológico, mas não tem a pretensão de formalizar uma introdução a tal Teoria. Contudo, é importante registrar – ainda que brevemente – que a TAR considera a conformação do social a partir de entidades que se associam e performam realidades (Lima, 2022Lima MR. Performance: operador teórico no campo da Educação a partir da Teoria Ator-Rede. Linhas Crít. 2022;28:e43415. http://dx.doi.org/10.26512/lc28202243415.
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). Em outros termos, o “social” passa a ser encarado a partir da relação entre humanos e não humanos – tratados como actantes ou atores no léxico da TAR –, o que caracteriza a instauração de uma rede sociomaterial. Nesse constructo, a TAR propõe como base de operação empírica o mapeamento de entidades heterogêneas em associação, com o propósito de serem identificados agenciamentos e as transformações produzidas. Também é relevante registrar que a TAR traz para um mesmo plano ontológico humanos e não humanos, exigindo análises simétricas entre os actantes. Entretanto, vale lembrar que essa “[...] simetria não é ética (coisas valem o mesmo que humanos), mas analítica (coisas nos fazem fazer coisas e têm implicações importantes)” (Lemos, 2014, pLemos A. Mídia, tecnologia e educação: atores, redes, objetos e espaço. In: Linhares RN, Porto C, Freire V, editores. Mídia e educação: espaços e (co)relações de conhecimentos. Aracaju: EdUNIT; 2014. p. 11-28.. 6).

Metodologicamente, o artigo tem formato de um “relato ator-rede” e, portanto, considera, em sua narrativa, actantes que desempenharam papéis significativos. Um “relato ator-rede” descreve as “inter-ações” e as relações entre diversos participantes de um arranjo sociomaterial, destacando como eles se influenciam mutuamente e contribuem para a construção de uma realidade. Em síntese, um “relato ator-rede” ajuda a mapear e compreender o tempo-espaço de associações entre humanos e não humanos, bem como a performatividade (Lima, 2022Lima MR. Performance: operador teórico no campo da Educação a partir da Teoria Ator-Rede. Linhas Crít. 2022;28:e43415. http://dx.doi.org/10.26512/lc28202243415.
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) dali emergente.

Embora minha relação com tecnologias vestíveis seja de longa data, o relato apresentado neste trabalho considerou o período de seis meses para sua composição. Tal intervalo de tempo se iniciou logo após a recepção de um novo smartwatch, o qual deu condição de existência à realidade investigada. Os registros de observação que serviram como base para a narrativa construída foram anotados em um caderno de campo e envolveram o uso diário do smartwatch para as mais distintas atividades.

Ao longo do processo analítico-descritivo que compõe este estudo, conceitos da TAR são detalhados e articulados a outros elementos que enredaram minha experiência de AD. Por integrar a assembleia sociomaterial estudada, optei pelo uso da primeira pessoa do discurso para compor uma tessitura textual que valoriza percepções e afetações produzidas na experiência.

ENREDANDO O CORPO EM ASSOCIAÇÕES NA CULTURA DIGITAL

Antes de “falar do corpo”, é preciso situar esse constructo em um tempo-espaço de relacionamentos. Latour (2012)Latour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012. nos ajuda a compreender “social” a partir de uma visão que evoca associações, sempre situadas e heterogêneas. Isso equivale a dizer que, para (nos) compreendermos (no)/o mundo, é necessário encarar a realidade como produto de nossas relações com a materialidade não humana. Assim sendo, é preponderante nos reconhecermos como seres “híbridos de natureza e cultura” (Latour, 1994, pLatour B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34; 1994.. 16), afinal “[...] não se pode compreender a ação humana, e não se pode compreender a constituição de coletivos, sem levar em conta a materialidade, as tecnologias e os não-humanos” (Callon, 2008, pCallon M. Entrevista com Michel Callon: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias. 2008;19(19):302-21. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222008000100013.
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. 307). Tudo isso encontra aderência à concepção de que nos entrelaçamos às TD em nosso cotidiano, o que modifica nossos modos de ser e de produzir subjetividades (Lupton, 2017Lupton D. Digital bodies. In: Silk ML, Andrews DL, Thorpe H, editores. Routledge handbook of physical cultural studies. New York: Routledge; 2017. p. 200-8. http://dx.doi.org/10.4324/9781315745664-21.
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).

Como seres híbridos na contemporaneidade é inegável que nosso modus vivendi se operacionaliza mediante muitas “inter-ações” que empreendemos com as/a partir das TD, o que tipifica uma cultura digital (Lemos, 2020Lemos A. Epistemologia da comunicação, neomaterialismo e cultura digital. Galáxia. 2020;43(43):54-66. http://dx.doi.org/10.1590/1982-25532020143970.
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). Processualmente, desde o fim do século XX, os vínculos entre humanos e TD vêm instaurando novas formas de produção, comunicação, socialização, o que alterou e segue alterando significativamente o cotidiano. Mobilidade, conectividade, velocidade de acesso à informação, facilidade de vinculação/produção de conteúdos, interatividade são características que passaram a tipificar as atividades mediadas com o/no digital.

Dessa forma, é plausível aceitar que, embora enraizada em aspectos estruturais e funcionais de dispositivos eletrônicos, a cultura contemporânea se manifesta por intermédio do entrelaçamento entre a sociedade e as tecnologias digitais, provocando uma redefinição de valores, crenças, modos de expressão e práticas socioculturais. Considerando que a adoção social das tecnologias digitais na atualidade é abrangente, o adjetivo “digital” na expressão “cultura digital” acaba por funcionar como um marcador temporal.

Assim, pensar o corpo na atualidade envolve um esforço para reconhecê-lo em articulação com o “digital”, afetando-o e por ele sendo afetado. Respeitando o recorte de interesse de minha temática de investigação, é importante especificar que, na experiência que vivenciei, me associei a uma tecnologia vestível, também dita wearable. Essa categoria de TD integra

[...] peças de vestuário com sensores dedicados à extração e registro de informação sobre múltiplos aspectos corporais. Também apoiados no discurso de vida saudável, conhecimento e controle de si, esses objetos se apresentam como aliados no gerenciamento dos cuidados com o corpo, na otimização de tarefas e na percepção ampliada sobre os hábitos e padrões de atividade física mediante análises algorítmicas (Bitencourt, 2021, pBitencourt E. Smartbodies: plataformas digitais, tecnologias vestíveis e corpos remodelados. Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG; 2021.. 30).

A definição anterior evidencia diferentes aspectos que merecem atenção para se pensar sobre as múltiplas mediações que se instauram na associação humano-wearable. Para o caso de minha experiência, o que passou a ser monitorado foram aspectos de minha fisiologia como: batimentos cardíacos, esforço em exercícios físicos, gasto calórico, nível de sono e estresse etc.

Ao voltarmos à definição de Bitencourt (2021)Bitencourt E. Smartbodies: plataformas digitais, tecnologias vestíveis e corpos remodelados. Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG; 2021., notei ainda outras implicações que integram o monitoramento corporal por tecnologias vestíveis. Para facilitar o gerenciamento de cuidados com o corpo e ampliar as percepções sobre ele, é necessário prover o acesso às informações captadas pelos sensores da tecnologia vestível. Isso é viabilizado por uma interface gerencial em uma plataforma digital, a qual possui sistemas de armazenamento e tratamento de dados pessoais para ela transferidos. Notadamente, a associação humano-wearable se entrelaça em um arranjo sociomaterial mais amplo – “[...] desenvolvedores de software e hardware de computador, fabricantes e varejistas, codificadores de software, algoritmos, servidores de computador e arquivos, a nuvem de computação, sites, plataformas e mídias sociais [...]” (Lupton, 2014a, pLupton D. Self-tracking cultures: towards a sociology of personal informatics. In: Proceedings of the 26th Australian Computer-Human Interaction Conference on Designing Futures: the Future of Design; 2014 dez 2-5; Sydney. Anais. Sydney: ACM; 2014a. p. 77-86. http://dx.doi.org/10.1145/2686612.2686623.
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. 80, tradução nossa) – os quais co-produziram afetações em minha experiência de AD.

AUTORRASTREAMENTO COMO PRÁTICA DE DADOS NA CULTURA DIGITAL

Meu objetivo de falar do “corpo afetado” também exige a delimitação de uma base de sua observação, o que aconteceu a partir de uma experiência de AD de exercícios físicos com uma tecnologia vestível. Inicialmente, cabe dizer que autorrastreamento objetiva “[...] monitorar e registrar regularmente, e muitas vezes medir, elementos de comportamentos individuais ou de funções corporais [...]”, podendo ser assumido como “[...] práticas nas quais as pessoas coletam informações sobre si mesmas de forma consciente e proposital, as quais são analisadas e consideradas em suas condutas de vida” (Lupton, 2016b, pLupton D. The quantified self: a sociology of self-tracking. Cambridge: Polity; 2016b.. 7, tradução nossa).

Dessa maneira, dedicarmo-nos a autorrastreamento não é algo novo, porém o surgimento de dispositivos digitais voltados a essa finalidade expandiu esse tipo de procedimento. Esse fato se justifica, em parte, porque essas tecnologias automatizam o monitoramento do corpo e da vida em tempo real, fornecem métricas para análise e propiciam a partilha desses dados em rede por contarem com acesso à internet (Lupton, 2014aLupton D. Self-tracking cultures: towards a sociology of personal informatics. In: Proceedings of the 26th Australian Computer-Human Interaction Conference on Designing Futures: the Future of Design; 2014 dez 2-5; Sydney. Anais. Sydney: ACM; 2014a. p. 77-86. http://dx.doi.org/10.1145/2686612.2686623.
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). Nota-se, portanto, que as tecnologias vestíveis passam a ser “[...] intérpretes do corpo” (Lupton, 2013, pLupton D. Quantifying the body: monitoring and measuring health in the age of health technologies. Crit Public Health. 2013;23(4):393-403. http://dx.doi.org/10.1080/09581596.2013.794931.
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. 86, tradução nossa). Assim, ao tratarmos de autorrastreamento na cultura contemporânea, estamos diante de um dos processos que integram a “dataficação” (Mayer-Schönberger e Cukier, 2013Mayer-Schönberger V, Cukier K. Big data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt; 2013.), que consiste na transformação das ações de usuários de tecnologias digitais em dados quantificáveis passíveis de rastreamento e de análise preditiva.

Todas as nossas “inter-ações” mediadas por TD, inclusive as vestíveis, têm como ponto de passagem obrigatório as conhecidas plataformas digitais3 3 Infraestrutura digital baseada em software e hardware que medeia e molda interações entre usuários finais e os setores comercial e público. Uma plataforma digital estrutura uma sistemática coleta de dados de seus usuários, empreendendo tratamento algorítmico, monetização e circulação (Poell et al., 2020). (Google e Facebook, por exemplo) que realizam ampla coleta, armazenamento e tratamento de dados digitais de seus usuários (Lemos, 2020Lemos A. Epistemologia da comunicação, neomaterialismo e cultura digital. Galáxia. 2020;43(43):54-66. http://dx.doi.org/10.1590/1982-25532020143970.
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, 2021Lemos A. Dataficação da vida. Civitas Rev Ciênc Soc. 2021;21:193-202.). Essa “[...] penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais das plataformas digitais em diferentes setores econômicos e esferas da vida” diz respeito à outra característica da cultura digital conhecida como “plataformização” (Poell et al., 2020, pPoell T, Nieborg D, Van Dijck J. Plataformização. Front Estud Midiáticos. 2020;22:2-10.. 5).

Com viés de controle e vigilância sob os usuários, dados sobre seus corpos, saúde, educação, finanças, exercícios físicos, navegações na internet, compras, gostos culturais etc. são quantificados e plataformizados para serem processados de maneira a traduzirem seus modos de vida com objetivo de exploração econômica (Zuboff, 2021Zuboff S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca; 2021.). A dataficação da vida (Lemos, 2021Lemos A. Dataficação da vida. Civitas Rev Ciênc Soc. 2021;21:193-202.) e a plataformização da sociedade (Van Dijck et al., 2018Van Dijck J, Poell T, Wall MD. The Platform Society: public values in a connective world. Londres: Oxford Press; 2018. http://dx.doi.org/10.1093/oso/9780190889760.001.0001.
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) afetam profundamente nossas formas de ser, estar, atuar e compreender o mundo contemporâneo, pois passamos a ser reconhecidos como sujeitos produtores de dados digitais (Lupton, 2016aLupton D. Personal data practices in the age of lively data. In: Daniels J, Gregory K, Cottom TM, editores. Digital sociologies. Bristol: Policy Press; 2016a. p. 339-54. http://dx.doi.org/10.2307/j.ctt1t89cfr.27.
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) forjados na hibridização humano-TD.

Diante desse panorama, pode-se dizer que o autorrastreamento com tecnologias vestíveis encerra uma prática de dados pessoais (Lupton, 2016aLupton D. Personal data practices in the age of lively data. In: Daniels J, Gregory K, Cottom TM, editores. Digital sociologies. Bristol: Policy Press; 2016a. p. 339-54. http://dx.doi.org/10.2307/j.ctt1t89cfr.27.
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) que descreve formas pelas quais as pessoas coletam, produzem significados e se envolvem com dados digitais. Em seu conjunto, essas práticas de autorrastreamento com tecnologias vestíveis acabam por expressar uma “cultura de autorrastreamento” (Lupton, 2016bLupton D. The quantified self: a sociology of self-tracking. Cambridge: Polity; 2016b.), a qual envolve, entre outros aspectos: a) busca de autoconhecimento a partir de dados quantitativos; b) crença em dados objetivos; c) uso de TD para monitorar o corpo e suas expressões; e d) ampla rede de atores que têm acesso e controle de dados digitais pessoais plataformizados.

PARA “FALAR DO CORPO” AUTORRASTREADO POR TECNOLOGIAS VESTÍVEIS

Após situar autorrastreamento com tecnologias vestíveis como uma prática de dados na cultura contemporânea, é chegado o momento de “falar do corpo”. Para tanto, considero que “[...] ter um corpo é aprender a ser afectado, ou seja, ‘efectuado’, movido, posto em movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas. Quem não se envolve nesta aprendizagem fica insensível, mudo, morto” (Latour, 2008, pLatour B. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: Nunes JA, Roque R, editores. Objectos impuros: experiências em Estudos Sociais sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamentos; 2008. p. 39-61.. 39).

Sensível, eloquente e vívido, coloquei-me em cinese – inclusive com a elaboração deste artigo e de minha pesquisa – para (re)pensar e falar do corpo a partir de um processo de seu autorrastreamento com uma tecnologia vestível. Essa mobilização exigiu abertura de espírito para vestir uma TD, afetá-la e permitir-me ser afeado por ela. Essa dinâmica de múltiplas afetações configurou-se, exatamente, a partir do reconhecimento de que uma ação é sempre assumida (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012.) e, assim sendo, que os não humanos nos “fazem-fazer” (Latour, 2015Latour B. Faturas/Fraturas: da noção de rede à noção de vínculo. Ilha Revista de Antropologia. 2015 Dez [cited 2021 Mai 27];17(2):123-146. Disponível em: https://cutt.ly/NwsFlFYp.
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; Lupton, 2017Lupton D. Digital bodies. In: Silk ML, Andrews DL, Thorpe H, editores. Routledge handbook of physical cultural studies. New York: Routledge; 2017. p. 200-8. http://dx.doi.org/10.4324/9781315745664-21.
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). Em outros dizeres, é preciso admitir que nosso agir nunca está apartado de um mundo de coisas e que estas viabilizam e transformam o curso de nossas ações.

Entretanto, não se trata de assumir um determinismo dos não humanos sobre os humanos. A TAR “[...] não alega, sem base, que os objetos fazem coisas ‘no lugar’ dos atores humanos: diz apenas que nenhuma ciência do social pode existir se a questão de o quê e quem participa da ação não for logo de início plenamente explorada [...]” (Latour, 2012, pLatour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012.. 109). Assim, articulei-me a uma tecnologia vestível em uma prática de autorrastreamento e – integrado a um arranjo heterogêneo – afetei e identifiquei-me afetado na experiência. Aqui, a noção de “articulação” encontra compreensão no reconhecimento de diferenças que me fizeram aprender e registrar distintos aspectos que compuseram minha experiência de AD (“corpo sensível”).

Mais uma vez, o “corpo híbrido” evidencia aquilo que já foi registrado anteriormente: em nossa cultura, ficam nítidas nossas relações com dispositivos eletrônicos nas mais diversas dimensões da vida. Nessa perspectiva, destaco o viés cultural de qualquer tecnologia (Pinto, 2005Pinto ÁV. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto; 2005.), uma vez que as tecnologias integram e medeiam a formação de significados, reconfiguram práticas sociais e introduzem novos conceitos.

AFETANDO E SENDO AFETADO: UM RELATO ATOR-REDE DE UMA VIVÊNCIA DE AUTORRASTREAMENTO DIGITAL

Ankaa4 4 Nome fictício adotado neste texto para se referir à tecnologia vestível utilizada na experiência, no caso um smartwatch, evitando uma desnecessária exposição publicitária do modelo/fabricante. chegou pelo serviço postal e, superada a “expectativa”, o meu primeiro movimento de aproximação envolveu inspeção e conferência. Depois de assegurada a conformidade da aquisição ao modelo comprado, o sentimento experimentado foi de “curiosidade” e “admiração”: eu estava de posse de um objeto esteticamente muito bem desenhado e acabado. Ankaa é poliglota e, ao ser acionada, iniciou um diálogo amigável em sua tela digital, passando a me fazer perguntas que envolviam um protocolo de boas-vindas, visando customização: 1) da preferência de idioma; 2) da configuração da rede de acesso à internet; 3) do emparelhamento bluetooth com um celular Android; 4) da instalação de um aplicativo no smartphone para ampliação da visualização de dados; e 5) do cadastro em uma plataforma de sua fabricante etc.

Nosso primeiro contato aconteceu ainda de maneira distanciada, pois só depois de finalizada a etapa inicial de configuração é que estabeleci um elo mais íntimo com Ankaa, vestindo-a. Um jogo de “múltiplas afetações” se desdobrou a partir de nossa associação (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012.), e a sequência de nossa aproximação rendeu dicas sobre outras funcionalidades habilitadas, como as possibilidades de integração com servidores de streaming de música e a indicação de uma carteira financeira digital. Ignorei esses convites e, pouco depois, Ankaa me alertou em sua tela acerca de uma mensagem recebida em um comunicador instantâneo.

Ankaa também fez a leitura de nossa localização e forneceu indicação de altitude, pressão atmosférica e temperatura locais, além de informar a hora do pôr do sol. Já em um campo mais íntimo, identificou e sinalizou meus batimentos cardíacos e os compromissos cadastrados na minha agenda on-line. E as métricas não cessaram aí: em conexão com a plataforma de sua fabricante, incorporou meus dados de sexo, idade, peso e altura. Com essas informações e considerando o início de nossa relação, Ankaa passou a se empenhar em melhor me compreender por intermédio de seus sensores para, em tempo, apresentar meu nível de estresse, energia para exercícios físicos, nível de oxigênio no sangue e qualidade do sono. Tudo isso me levou a “repensar meu corpo”, que passava a “[...] ser representado como um repositório de dados identificáveis, armazenáveis e processáveis, constituído por fluxos e circulações de dados” (Lupton, 2014a, pLupton D. Self-tracking cultures: towards a sociology of personal informatics. In: Proceedings of the 26th Australian Computer-Human Interaction Conference on Designing Futures: the Future of Design; 2014 dez 2-5; Sydney. Anais. Sydney: ACM; 2014a. p. 77-86. http://dx.doi.org/10.1145/2686612.2686623.
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. 86, tradução nossa). Sim, eu experienciava o início de um processo de dataficação de meu corpo (Lemos, 2021Lemos A. Dataficação da vida. Civitas Rev Ciênc Soc. 2021;21:193-202.; Mayer-Schönberger e Cukier, 2013Mayer-Schönberger V, Cukier K. Big data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt; 2013.; Segata e Rifiotis, 2021Segata J, Rifiotis T. Digitalização e dataficação da vida. Civitas Rev Ciênc Soc. 2021;21:186-92.) e da plataformização de meus dados pessoais (Poell et al., 2020Poell T, Nieborg D, Van Dijck J. Plataformização. Front Estud Midiáticos. 2020;22:2-10.; Van Dijck et al., 2018Van Dijck J, Poell T, Wall MD. The Platform Society: public values in a connective world. Londres: Oxford Press; 2018. http://dx.doi.org/10.1093/oso/9780190889760.001.0001.
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) a partir das medições de Ankaa.

Para dar sequência a este relato ator-rede, creio ser relevante o registro de que gosto de ter uma vida fisicamente ativa: isso equivale a dizer que tenho uma rotina disciplinada de exercícios físicos que envolvem fortalecimento muscular e sua alternância com ciclismo, corrida e natação. Essa faceta de minha personalidade é relevante, pois essas atividades são objetos de interesse dos sensores que Ankaa possui e usa para captar “biodados” em formato digital. Embora, em outros tempos, eu tenha tido contato com outros dispositivos eletrônicos de monitorização de exercícios físicos, nunca havia tido acesso à tamanha diversificação de informações sobre minha fisiologia e sobre meus exercícios tal qual providas por Ankaa.

Com isso em mente, posso dizer que a relação com Ankaa envolveu/envolve “afinidade”, “cumplicidade”, “investimento de tempo”, “interesse científico” e um “ato voluntário” de se permitir à experiência de AD. Digo isso porque o começo de nossas “inter-ações” durante os exercícios foi “conturbado” e exigiu “adaptações”. Essas afetações podem ser exemplificadas pelas mudanças que fui obrigado a fazer durante os treinos de fortalecimento, pois tive de passar a indicar à Ankaa as alternâncias entre séries. Essas “modificações de meu fazer” não se deram de maneira linear, exigindo progressiva apropriação da interface de Ankaa. Contudo, superadas as dificuldades iniciais e estabelecida uma nova configuração da rotina de exercícios, os resultados rastreados foram surpreendentes (Figura 1).

Figura 1
Dados de autorrastreamento relativos a um treino de força.

A Figura 1 exibe os músculos (não) trabalhados durante um de meus treinos de fortalecimento segundo os sensores de Ankaa. Além disso, são apresentados dados sobre a duração do treino, frequência cardíaca média e gasto calórico. Complementarmente, em outras telas da interface, passei a ter acesso à contagem automatizada das repetições de cada série realizada, ao efeito do treino em meu condicionamento físico, a uma estimativa de tempo de repouso necessário à recuperação para novos treinos etc. É inevitável admitir que a sensibilidade dos sensores de Ankaa e a eficiência de seu mapeamento dos movimentos dos exercícios traduzidos em imagens, textos e gráficos me proporcionaram uma sensação de “encantamento”.

Esse recorte particular de minha vivência notabiliza uma rede de actantes que deu contorno de existência à realidade produzida (Lima, 2022Lima MR. Performance: operador teórico no campo da Educação a partir da Teoria Ator-Rede. Linhas Crít. 2022;28:e43415. http://dx.doi.org/10.26512/lc28202243415.
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) a partir de minha associação com Ankaa. Muito além do “corpo híbrido” instaurado, foram arregimentados apenas para a composição da Figura 1: servidores e outros ativos de rede, smartphone, algoritmos, interfaces, plataforma digital etc., o que reforça uma assembleia sociomaterial em que “[...] recursos de design, emoções, corpos, personalidades e dados estão emaranhados na experiência de autorrastreamento digitalizado” (Lupton, 2014a, pLupton D. Self-tracking cultures: towards a sociology of personal informatics. In: Proceedings of the 26th Australian Computer-Human Interaction Conference on Designing Futures: the Future of Design; 2014 dez 2-5; Sydney. Anais. Sydney: ACM; 2014a. p. 77-86. http://dx.doi.org/10.1145/2686612.2686623.
http://dx.doi.org/10.1145/2686612.268662...
. 82, tradução nossa).

Parte do “encantamento” pessoal experimentado decorreu do acesso facilitado aos dados do AD – produzidos em tempo real – em forma de métricas quantitativas. Aqui também é preciso admitir a instalação de uma prática de dados pessoais (Lupton, 2016aLupton D. Personal data practices in the age of lively data. In: Daniels J, Gregory K, Cottom TM, editores. Digital sociologies. Bristol: Policy Press; 2016a. p. 339-54. http://dx.doi.org/10.2307/j.ctt1t89cfr.27.
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) que se vale da biometria, alimentando uma “crença na objetividade da quantificação” como via para compreensão de aspectos de si e de outros, o que é assumido como um dos princípios de um “dataísmo” (Van Dijck, 2014Van Dijck J. Datafication, dataism and dataveillance: big data between scientific paradigm and ideology. Surveill Soc. 2014;12(2):197-208. http://dx.doi.org/10.24908/ss.v12i2.4776.
http://dx.doi.org/10.24908/ss.v12i2.4776...
). O que se efetiva é um processo de “delegação” (Lemos, 2013Lemos A. A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Annablume; 2013.), pois a prática de dados recorre à assistência de um dispositivo eletrônico para estender capacidades de registros e ampliar formas de compreensão e de memória da informação (Lupton, 2014aLupton D. Self-tracking cultures: towards a sociology of personal informatics. In: Proceedings of the 26th Australian Computer-Human Interaction Conference on Designing Futures: the Future of Design; 2014 dez 2-5; Sydney. Anais. Sydney: ACM; 2014a. p. 77-86. http://dx.doi.org/10.1145/2686612.2686623.
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).

Algo importante a ser recuperado – também a partir da experiência – é que a dinâmica das afetações foi/é simétrica: se fui afetado ao vestir Ankaa, igualmente a afetei. Nesse sentido, constatei que

[...] os corpos também moldam as tecnologias. Os novos dispositivos móveis e vestíveis são carregados ou usados junto ao corpo, tornando-se uma prótese corporal, uma extensão do corpo. Quando as pessoas manuseiam ou tocam tecnologias, podem deixar marcas de seus corpos [...]. O software também é transformado pelo uso. [...]. Imagens, descrições e marcadores dos corpos dos usuários são inseridos nas memórias de seus dispositivos digitais [...]. Dispositivos e softwares digitais tornaram-se repositórios de individualidade e corporificação (Lupton, 2017, pLupton D. Digital bodies. In: Silk ML, Andrews DL, Thorpe H, editores. Routledge handbook of physical cultural studies. New York: Routledge; 2017. p. 200-8. http://dx.doi.org/10.4324/9781315745664-21.
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. 203, tradução nossa).

Essas considerações5 5 Para a tradução foi considerado o texto original “[…] bodies also shape technologies. The new mobile and wearable devices are carried or worn on the body, becoming a body prosthetic, an extension of the body […]” Lupton (2017, p. 203). Embora a autora faça referência às tecnologias móveis e vestíveis como “próteses corporais”, neste artigo, considerei a ideia da formação do híbrido “humano-tecnologia vestível” como objeto de interesse. de Lupton (2017)Lupton D. Digital bodies. In: Silk ML, Andrews DL, Thorpe H, editores. Routledge handbook of physical cultural studies. New York: Routledge; 2017. p. 200-8. http://dx.doi.org/10.4324/9781315745664-21.
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remeteram-me a outros momentos de “inter-ação” com Ankaa. Um deles remonta a um treino de corrida quando, ainda me exercitando, fui alertado quanto ao meu desempenho. As métricas registradas naquele momento envolviam distância, tempo de corrida, velocidade de deslocamento, batimentos cardíacos e compuseram uma indicação – em cores vivas – de meu nível de preparo físico. Ao considerar parâmetros pré-estabelecidos para minha idade e peso, logo após o treino Ankaa decidiu rever e atualizar minhas zonas de frequência cardíaca de forma a prover registros em conformidade ao meu estágio de condicionamento. Nessa associação, Ankaa foi afetada.

Vislumbrar, analisar e pensar sobre os biodados digitais plataformizados propiciou-me um misto de “prazer” e “responsabilização”: para além da consciência dos logros de um bom condicionamento físico, tornaram-se igualmente muito nítidas as limitações físicas relativas à idade, à inabilidade/impossibilidade de efetivação de certos movimentos, ao tempo de inatividade etc.

Rememoro que vivi um momento de lesão muscular e tive de suspender os exercícios físicos. Aquele episódio também foi identificado por Ankaa e repercutiu não somente em meu corpo, mas também no declínio das biométricas rastreadas. Inevitavelmente, aquele tempo foi acompanhado de um sentimento de que eu “perdia algo importante” – a rotina de movimento – e fui tomado por uma “cobrança” a qual eu não podia arcar, pois seguia orientações médicas.

Curiosamente, Ankaa não compreendeu aquele momento de nossa associação! Além das biométricas empobrecidas, de maneira insensível seguiam os alertas em forma de mensagens e vibrações no pulso: “– Movimente-se!”, dizia ela. O uso do verbo no imperativo para as mensagens me gerou “desconforto”. A ocasião de tensão na relação com Ankaa reforçou a perspectiva de que o dado quantificado não pode/deve ser assumido como neutro. Para além da euforia/do encantamento da quantificação, é crucial levar em conta que

[...] o significado dos dados autorrastreados pode ser difícil de interpretar; os dados pessoais podem ser tanto desempoderadores quanto empoderadores; as condições em que os dados são produzidos podem influenciar sua validade; os contextos em que os dados são gerados são vitais para a compreensão de seus significados; [...] dados pessoais quantificados podem ser reducionistas [...] (Lupton, 2014c, pLupton D. You are your data: self-tracking practices and concepts of data. In: Selke S, editor. Lifelogging: theoretical approaches and case studies about self-tracking. Wiesbaden: Springer Fachmedien Wiesbaden; 2014c. p. 1-18.. 8, tradução nossa).

Ainda assim e de forma intencional, o aspecto motivacional foi ampla e continuamente explorado e implementado por Ankaa e seu fabricante via plataforma de dados. Para reforçar o “faz-fazer” (Latour, 2015Latour B. Faturas/Fraturas: da noção de rede à noção de vínculo. Ilha Revista de Antropologia. 2015 Dez [cited 2021 Mai 27];17(2):123-146. Disponível em: https://cutt.ly/NwsFlFYp.
https://cutt.ly/NwsFlFYp...
) inerente ao combate ao sedentarismo, o programa de ação que suporta o AD de Ankka se ancora em um sistema de estímulos que envolve metas, desafios e pontuação. Assim, a cada conquista eram disponibilizadas insígnias, as quais são inventariadas como medalhas na interface da plataforma e permitiam comparação/competição com outros usuários.

Experimentar tais nuances do AD e da plataformização dos biodados me dispertou “indagações” referentes à “dataficação de meu corpo”, entre as quais destaco: a) Por que tanto incentivo para produzir biodados plataformizados?; b) Quem detém a real propriedade sobre os dados de AD uma vez que esses são armazenados na nuvem?; c) Para que fins – além dos imediatamente privados – a quantificação do corpo se destina?; e d) Quais implicações decorrem das práticas de dados dos coletivos de autorrastreadores digitais? Essas questões podem sugerir sintomas de “controvérsias” que, pela óptica ator-rede, são situações em que “atores” não podem se ignorar mutuamente frente às polêmicas em que se encontram inseridos (Venturini, 2010Venturini T. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory. Public Underst Sci. 2010;19(3):258-73. http://dx.doi.org/10.1177/0963662509102694.
http://dx.doi.org/10.1177/09636625091026...
). No que tange ao AD de exercícios físicos, as problematizações anteriores passaram a configurar como questões de interesse (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012.) de minha investigação, abrindo uma nova frente de pesquisa voltada à compreensão dos significados que as empresas proprietárias de plataformas on-line atribuem aos dados digitais de seus usuários.

Essas problematizações tornam evidentes que os significados do AD não encerram uma prática individualista, abrangendo valores coletivamente construídos (Lupton, 2014aLupton D. Self-tracking cultures: towards a sociology of personal informatics. In: Proceedings of the 26th Australian Computer-Human Interaction Conference on Designing Futures: the Future of Design; 2014 dez 2-5; Sydney. Anais. Sydney: ACM; 2014a. p. 77-86. http://dx.doi.org/10.1145/2686612.2686623.
http://dx.doi.org/10.1145/2686612.268662...
). Com base nesse entendimento, é preciso estar ciente de que são

[...] dados acumulados de dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo que estão usando dispositivos digitais para se engajar no autorrastreamento de suas rotinas, comportamentos e práticas cotidianas. [...] [Nessa configuração] esses dados pessoais podem ser agregados e usados por desenvolvedores para propósitos corporativos [...]. [Isso elucida quanto às] tendências mais amplas na coleta de informações pessoais em formas digitalizadas e na apropriação e mercantilização desses dados como parte da economia do conhecimento digital (Lupton, 2014c, pLupton D. You are your data: self-tracking practices and concepts of data. In: Selke S, editor. Lifelogging: theoretical approaches and case studies about self-tracking. Wiesbaden: Springer Fachmedien Wiesbaden; 2014c. p. 1-18.. 3, tradução nossa).

Como já salientado, esse momento de minha experiência com Ankaa colocou em circulação questões que problematizam o quanto o processo de AD é multifacetado, envolvendo agendas que transcendem o foro privado e que confluem para interesses de uso de dados com fins comerciais. Em outros termos, as afetações produzidas envolvem um conflito de interesse – pouquíssimo transparente para o usuário – que confere um significado às práticas de AD como geradoras de biocapital digital (Lupton, 2014bLupton D. Self-tracking modes: reflexive self-monitoring and data practices. In: Imminent Citizenships: Personhood and Identity Politics in the Informatic Age; 2014 ago 27; Camberra. Workshop. Rochester: SSRN; 2014b. p. 1-19. https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2483549.
https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2483549...
).

SÍNTESE DAS AFETAÇÕES SIMÉTRICAS

Inicialmente, é preciso reforçar que trabalhar com a perspectiva sociomaterial proposta pela TAR é desafiador, pois exige esforço e direcionamento de energias para encontrar caminhos que ao serem mapeados permitam descrever realidades seguindo o concurso associativo de humanos e não humanos. Minha experiência de AD permitiu identificar um corpo que, sendo sensível, afetou e foi afetado ao vestir uma TD. Neste relato, busquei ser sensível ao contexto e trazer à discussão mobilizadores do “faz-fazer” produzido nas múltiplas afetações de um corpo híbrido, sensível e performativo.

A partir do que experienciei na vivência com Ankaa e dos estudos que empreendi para a construção deste artigo, percebi “corpo afetado” como uma “[...] instância mediadora que se afeta como um todo nas interações com o mundo” (Melo, 2011, pMelo MFAQ. Discutindo a aprendizagem sob a perspectiva da teoria ator-rede. Educ Rev. 2011;(39):177-90. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40602011000100012.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40602011...
. 177). Essa compreensão revelou que minha condição de existência se delineia na associação com os outros e com as coisas, o que justifica a formação de um “corpo híbrido” e “sensível” às trocas que estabelece em sua rede de conexões (Latour, 1994Latour B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34; 1994., 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA; 2012.). Em suma, as dinâmicas de articulação e mobilização do “corpo afetado” acabam por produzir um “corpo performativo” e que instaura realidades multifacetadas a partir das práticas em que se encontra enredado (Lima, 2022Lima MR. Performance: operador teórico no campo da Educação a partir da Teoria Ator-Rede. Linhas Crít. 2022;28:e43415. http://dx.doi.org/10.26512/lc28202243415.
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). Um trabalho de síntese das afetações experienciadas é apresentado no Quadro 1.

Quadro 1
Síntese das afetações da experiência de autorrastreamento.

Por fim, cabe o registro de que minha associação com uma tecnologia vestível colocou em curso uma bioinfopedagogia que afetou minha inteligibilidade, me fez sensível ao registro de nuances do mundo e instaurou uma realidade promotora de (reconfigur)ações no meu modo de (co)existir e, não menos, no de Ankaa e de toda a rede sociomaterial associada.

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), pelo financiamento da pesquisa. À Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) pelo apoio à publicação deste artigo.

  • 1
    Certificado de Apresentação para Apreciação Ética, protocolado e aprovado na Plataforma Brasil sob o número 45393621.3.0000.5151. O trabalho conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) por intermédio de seu Edital nº 001/2022 – DEMANDA UNIVERSAL, Processo APQ-00755-22.
  • 2
    Tradução adotada para self-tracking.
  • 3
    Infraestrutura digital baseada em software e hardware que medeia e molda interações entre usuários finais e os setores comercial e público. Uma plataforma digital estrutura uma sistemática coleta de dados de seus usuários, empreendendo tratamento algorítmico, monetização e circulação (Poell et al., 2020Poell T, Nieborg D, Van Dijck J. Plataformização. Front Estud Midiáticos. 2020;22:2-10.).
  • 4
    Nome fictício adotado neste texto para se referir à tecnologia vestível utilizada na experiência, no caso um smartwatch, evitando uma desnecessária exposição publicitária do modelo/fabricante.
  • 5
    Para a tradução foi considerado o texto original “[…] bodies also shape technologies. The new mobile and wearable devices are carried or worn on the body, becoming a body prosthetic, an extension of the body […]” Lupton (2017, pLupton D. Digital bodies. In: Silk ML, Andrews DL, Thorpe H, editores. Routledge handbook of physical cultural studies. New York: Routledge; 2017. p. 200-8. http://dx.doi.org/10.4324/9781315745664-21.
    http://dx.doi.org/10.4324/9781315745664-...
    . 203). Embora a autora faça referência às tecnologias móveis e vestíveis como “próteses corporais”, neste artigo, considerei a ideia da formação do híbrido “humano-tecnologia vestível” como objeto de interesse.
  • FINANCIAMENTO

    O trabalho conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) por intermédio de seu Edital Nº 001/2022 - DEMANDA UNIVERSAL (Processo APQ-00755-22).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2023
  • Aceito
    23 Set 2023
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