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Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil

RESENHA

ROCHA, Marlos Bessa Mendes. Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Brasília: Ed. Plano; Campinas: Autores Associados, 2004, 200p.

A análise do pensamento educacional na relação com a cultura política, empreendida por Marlos B. M. Rocha em sua tese de doutorado, a partir de uma leitura dos autores clássicos, coloca-nos em mãos, agora publicada, uma das mais originais e instigantes contribuições ao entendimento da educação brasileira.

O texto realmente concretiza a intenção de contribuir com um "instrumental de reflexão [...] para uma percepção contemporânea de ideologias educacionais que perpassam o discurso político-educacional de nossos dias. Não apenas no intuito de que as questões daquele debate ainda nos marquem (embora isso possa ser verdadeiro), mas na dimensão mais funda, hermenêutica, de que a genealogia de todos os discursos, por mais distanciados que sejam no tempo, sempre terá algo a nos dizer" (p. 12).

Se o tema se situa no Brasil republicano, para mais bem desenvolvê-lo, o autor também nos oferece – como contraponto – o fazer político e o pensar a educação no período monárquico. Nem poderia ser diferente já que "Só o confronto dessas práticas políticas, [tanto do Império como da República] pode levar à percepção dos seus sentidos diferenciados [...] São diferenças estruturais porque redefinem o corpo que compõe a nação, e a natureza do poder" (p. 10).

À importância do tema soma-se a contribuição a um debate que nunca é trivial. Menos pela abordagem específica da "vertente pela qual o trabalho se torna de cunho histórico-sociológico", e que se manifesta por "contrastar momentos históricos distintos para perceber os traços que os especificam. Portanto, o trabalho formula-se como hipótese interpretativa desses contextos, em vez de uma demonstrabilidade historiográfica pela exaustão de certas fontes" (p. 2).

A questão do método em Marlos Rocha não é um discurso separado, mas um fazer permanentemente refletido e continuamente explicado no percurso de desvendamento do significado das idéias dos autores que analisa. Mas ele não deixa de explicitar, desde a apresentação, que sua abordagem se faz pela adoção do método histórico e sociológico compreensivo, em oposição ao individualismo metodológico. "Compreensivo, porém, num entendimento de que o sentido da ação do indivíduo é uma produção social, embora não meramente reflexa, porque se trata também de uma construção do contexto histórico, se não como institucionalidade consolidada, como contraponto a ela" (p. 2).

É imperioso ainda mencionar a relevância do texto em si, como discurso argumentativo sim, mas no qual o cuidado com a precisão da formulação encontra seu vigor e brilho naquela qualidade que Paulo Freire festejava como a "boniteza de linguagem". O autor produz um texto não apenas claro e transparente, mas preocupado em partilhar, com cada um de seus leitores, seu trajeto hermenêutico. Faz assim que sejamos, com ele, leitores de seus autores, fazendo nossas suas dúvidas, suas convicções de entendimento, suas dificuldades de interpretação, suas divergências com outros intérpretes. Tudo isso colocado sem rupturas na "narrativa" do pensamento dos autores, mas como elemento integrado e imprescindível que apóia e dá consistência às concepções apreendidas. O texto, portanto, é obediente à intenção de oferecer-nos um instrumento útil de percepção. Afinal, o que Marlos Rocha se propôs foi revelar para o nosso caminhar "o solo constitutivo de nossas convicções contemporâneas" (p. 185). E o fez entregando-nos plenamente o seu próprio processo de construir percepções.

Uma das mais difíceis tarefas, ao resenhar esta obra, foi a de sintetizar seu conteúdo. Certamente, também nela, há conceitos e argumentos fundamentais e complementares. Entretanto, tal é a importância de sua articulação na arquitetura demonstrativa, que se tem a sensação de nada poder dispensar, sem perder o todo.

É verdade que o autor nos ajuda, na Apresentação e na Introdução (p. 1-12), a apreender seu norte teórico-metodológico (uma história da cultura para além da história das idéias; um "trabalho de cunho histórico-sociológico" como hipótese interpretativa de contextos que se contrastam, em que se situam os autores; um enfrentamento explícito da "difícil dialética entre o indivíduo e a sociedade"; a percepção dos autores como "expressões indiciárias" de seus contextos, mas no sentido de "portadores de estratégias de realização histórica em andamento ou em contraposição às vigentes..."). Mas não se pode deixar de lembrar que, no decorrer de suas análises interpretativas, ele nos diz o que, porque e como realiza seu trabalho.

Assim, apenas para exemplificar, antes de iniciar a leitura de Alberto Torres e Oliveira Vianna, ao referir-nos que seu indicador de uma nova categoria é a expressão de um novo campo valorativo, informa que não vai trabalhar amplamente as formulações dos autores, "apenas encontrar traços que denotem a nova afiliação de valores [...] um novo entendimento do campo político que expressaria novas estratégias de enfrentamento de questões" (p. 44). E prossegue: "Busco a significação de suas obras de pensamento no contexto da história da cultura, no caso da cultura política na qual elas se inserem" (idem, ibidem). E, ainda: "Buscar significação histórica no sentido de uma história da cultura política é perceber o que os ideários efetivamente trouxeram de contribuição em termos das alternativas históricas que se colocaram em certo contexto" (p. 70). Mas, sobretudo, Marlos Rocha explicita seu núcleo metodológico de análise ao iniciar a leitura de Alberto Salles. Ele nos diz com clareza da insuficiência do modelo historiográfico da história das idéias para seus propósitos e nos revela a necessidade de perceber que os autores, por mais que vinculem seu pensamento aos contextos histórico-culturais, também se apropriam de conceitos que os antecedem. E essa apropriação "pode mudar o sentido original do conceito, porém numa dinâmica conceitual possibilitada pelo próprio conceito [...] o conceito possui uma virtualidade hermenêutica que faz com que o seu processo de apropriação não possa ser arbitrário. É nesse sentido que se faz necessária uma história da cultura distinta de uma história das idéias" (p. 74). Esta, o autor vê como meramente reprodutiva do conceito. Já a história da cultura compromete-se com a dinâmica do conceito, para além da explicitação dos contextos diferenciados onde os conceitos atuam, ela "precisa se dar conta do alargamento de suas possibilidades" (idem, ibidem).

A hipótese de trabalho do autor é que – como Carneiro Leão anotara em 1920 – embora gerações anteriores tiveram a lamentar a não concretização de um projeto educacional para o Brasil, esta educação de que as diversas gerações falaram não tem o mesmo significado. "O tema educacional recobre épocas diversas e assume significado diferenciado, segundo os contextos históricos em que são referidos". Seu propósito é "resgatar os sentidos diversos e contrapostos" a partir dos "discursos políticos de figuras de destaque no pensamento social brasileiro" (p. 6). Assim é que vai freqüentar as obras de Tavares Bastos (p. 25-27), Rui Barbosa (p. 65-72), Alberto Salles (p. 72-82), Alberto Torres (p. 44-50), Oliveira Vianna (p. 50-55), Vicente Licínio Cardoso (p. 95-106), Fernando de Azevedo (p. 106-131) e Anísio Teixeira (p. 166-171). É assim também que dedicará à Associação Brasileira de Educação (ABE) – espaço marcante de encontro e confronto de tendências e personalidades diversas e divergentes sobre a questão educacional – uma especial atenção (p. 137-147). E, no desenvolvimento de sua análise, vai estabelecer uma interlocução intensa e crítica (jamais tensa!) com outros pesquisadores que também se debruçaram sobre os mesmos tempos, ou os mesmos temas ou os mesmos pensadores. O que se pretende captar é "a prática da política, vale dizer o fazer político das situações de poder, bem como dos discursos que se lhes contrapõem" (p. 7-8) para com ele relacionar o tema educacional.

No primeiro capítulo – A cultura política republicana, o contraponto monárquico e a geração dos críticos republicanos – a ênfase é posta na análise da matriz republicana do fazer político, que se delineia a partir do desafio da construção da nação, desdobrando-se nas idéias de incorporação do povo à nação e da insuficiência do povo para o exercício da cidadania. A questão educacional na República vai relacionar-se com uma reflexão sobre estas idéias, pois seriam frágeis os "processos decisórios sustentados em um povo sem instrução" (p. 14). No Império, apesar de uma prática política caracterizada pela fragilidade da representação do povo, a idéia da insuficiência do povo surge. O que se busca – inclusive através de reformas eleitorais – é a verdade da representação.

O primeiro modelo político republicano (Campos Salles, p. 28-44) apresenta três aspectos: a) predomínio de uma ordem social fundamentada nas relações de interesse dos atores dominantes (quem tem poder se faz representar) – paradoxalmente o modelo republicano descompromete-se com a dimensão do público, que no Império estava presente na busca da "verdadeira" representação (p. 34); b) a titularidade de direitos é atribuída aos poderosos das províncias – apontado como a negação do contratualismo de Adam Smith; c) política pública é concebida como tendo caráter técnico-administrativo, isenta de paixões e interesses – "a única [característica] que coloca uma certa intermediação entre interesses privados e poder público".

Depois de discutir as características do modelo, Marlos Rocha recupera algumas características da Velha República e manifesta que, diante delas, o pacto oligárquico é uma transigência diante da impossibilidade de qualquer facção que assuma o poder estabelecer-se por si mesma: "Não há reconhecimento do outro [...] como um ator de direito [...] porque aquele campo de cultura política não foi capaz de produzir uma dimensão pública do poder que o tornasse legitimamente compartilhado" (p. 43).

A análise do pensamento de Alberto Torres e Oliveira Vianna (p. 44-55) servem ao autor para identificar as alternativas ao modelo Campos Salles. Alberto Torres, apesar da maneira autoritária com que concebe a política, expressa outra concepção de nação que não se fundamenta estritamente no poder. A base da política é, para ele, é o interesse inconteste de seu povo, de sua terra, de sua nacionalidade. "A política da nação já não se faz por ato de vontade de atores dominantes, mas como expressão das exigências fundamentais de seu povo, de sua cultura, de seu território" (p. 48-49). Oliveira Vianna também sinaliza para uma nova possibilidade de modelo político republicano, respondendo à questão da incorporação do povo à nação tanto por uma percepção de "deficiência na formação histórica de nossa população" quanto por uma "denúncia contra a ausência dessa questão na política republicana" (p. 52).

Ao final do primeiro capítulo, Marlos Rocha formula a questão educacional na República apontando para a perseverança de um traço relacionado à idéia de insuficiência a ser superada por uma preparação e não como "incorporação de direitos para o exercício cidadão como fora compreendido pelos antigos liberais do Império" (p. 57).

E, assim, mais do que convidar, o autor nos instiga a caminhar com ele na busca de maiores esclarecimentos, no capítulo dois, dedicado à ilustração brasileira e à geração dos críticos republicanos. A política de expansão da escolaridade, já presente no período imperial – como preocupação das elites e do próprio Imperador – parece ter relação com as políticas de representação da nação diante do poder, "entretanto, pouco se faz para efetivá-las" (p. 59). O Império considerava menos a incorporação do povo à nação, assim como "não produziu o conceito de insuficiência do povo porque resolvia a questão da representação através do Poder Moderador e se preocupava com uma representação que captasse a verdade do povo (p. 60). Ao suprimir o poder do soberano, a República vai substituí-lo pelas elites do poder e as elites intelectuais "seja de forma retórica, seja como referência efetiva de políticas" (p. 59-60). A questão da representação passa a ter diferentes conotações, inclusive porque a herança política do Império de restrição do corpo eleitoral está fundamentada no entendimento dele como "conjunto de atores dotados de direitos básicos de intervenção na vida pública" (p. 60).

Marlos Rocha dedica-se, então, a recuperar a questão da representatividade na Monarquia investigando o surgimento do critério de educação como justificativa da exclusão eleitoral e sua passagem para a República – fundamentada em nova matriz – pela análise da reforma eleitoral de 1881 (p. 61-64), da "ilustração brasileira" na diversidade do pensamento de Rui Barbosa e João Alberto Salles (p. 65-82), da geração (gerações) de críticos republicanos nascida com a República desde Oliveira Vianna (retomado aqui) e Tavares Bastos (p. 82-94), passando pelo fulcro da sistematização articuladora de Vicente Licínio Cardoso (p. 95-106), para concluir essa etapa de análise com a reforma educacional no Distrito Federal, promovida por Fernando de Azevedo, expressão objetiva da "junção do criticismo republicano paulista com a geração dos críticos republicanos" (p. 106-131).

Baseada nos princípios de integração da escola na comunidade, da escola única e da escola do trabalho em cooperação, a reforma educacional do Distrito Federal tem – para além do que o próprio Fernando de Azevedo e outros autores lhe atribuíram como influência em outras reforma regionais e no pensamento educacional no pós-1930 – uma novidade revolucionária. Segundo o autor, embora também outras reformas sejam portadoras dos princípios da ação transformadora, esta traz um propósito "de incorporação do educando, de sua família e do meio social na ação transformadora". Explicitado no princípio de integração da escola na comunidade, "agora se pede que a educação atue sobre a sociedade e a transforme, no intuito de adequá-la a uma modernidade filosófica, comprometida com o valor da igualdade; uma modernidade material, consubstanciada na produção industrial moderna; e uma modernidade moral, segundo os princípios de cooperação e solidariedade" (p. 122-123).

Por isso a formulação de Fernando de Azevedo é interpretada como uma mudança na "imagem de povo, já não mais devedora da matriz constituída com a República, que criou o paradoxo republicano de um povo que precisa ser incluído, para a legitimação do poder, mas ao qual é imputada a insuficiência cívica". Paradoxo que, mesmo na ruptura com o primeiro modelo, permanece na geração dos críticos republicanos. "Azevedo rompe com ele ao resgatar o sentido de um povo capaz de participar" (p. 130).

Neste sentido é que se impõe, a cada leitor, a necessidade de prosseguir, com Marlos Rocha, na análise de um "ator social e educacional novo no cenário político e educacional brasileiro": os pioneiros da educação, que "apontaram [...] para uma alternativa de modernidade nacional fora dos padrões até então formulados [...] expressão de um movimento político-educacional e cultural que, a partir da reforma do Distrito Federal, acentua-se na nova direção" (p. 131).

O capítulo três, sem dúvida alguma, é o mais marcantemente polêmico, no qual o autor mobiliza argumentos para promover uma nova leitura de autores e eventos que evidenciem a nova matriz de modernidade republicana. A partir de uma acurada análise da ABE, como espaço de militância de intelectuais comprometidos com a educação (p. 137-147), ainda que filiados a diferentes e divergentes correntes de pensamento, Marlos Rocha evidencia a importância da IV Conferência Nacional de Educação (realizada no Rio de Janeiro, em dezembro de 1931) e, nela, as indicações políticas e conceituais do "episódio Nóbrega da Cunha" (p. 150-156). Revisitando, a seguir, o pensamento de Fernando de Azevedo, aponta a caracterização da "educação democrática sob a perspectiva da igualdade" e identifica no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova os consensos e tensões de um grupo que, não sem esforço, vai construindo a matriz nova de modernidade (p. 156-166).

Mais numa intersecção do que em um paralelismo com o pensado por Fernando de Azevedo, o autor resgata o pensamento de Anísio Teixeira como expressão da "educação democrática vista sob a perspectiva da liberdade", focalizando o texto de 1931, no qual são analisadas as propostas de reforma da educação Francisco Campos, e que Anísio anexará – com anotações à margem – aos "considerandos sobre o projeto de lei de diretrizes e bases a ser encaminhado ao Congresso Nacional", em 1946, sob o título de Comentários à Lei de Bases e Diretrizes, que se encontra no CPDOC/FGV (p. 166-171).

Nesse trabalho minucioso de atenção ao texto e ao contexto, em sua interação geradora de conceitos, sem deixar escapar as relações com a cultura política expressa no fazer político de diferentes momentos, constrói-se, na obra de Marlos Rocha, a descoberta da modernidade dos "pioneiros". Dizendo-nos de sua convicção sobre o caráter apenas indicativo dos documentos trabalhados, ele dá o passo seguinte para "buscar a significação do ator educacional" e, remetendo aos contextos das disputas e embates dos renovadores com os outros atores: os católicos e a política de ensino do governo federal.

Se o seu resultado concreto foi a derrota dos renovadores (a demissão de Anísio Teixeira em 1935 é objetiva expressão disso), não se pode desprezar que "há um sentido mais profundo presente na natureza do projeto de modernidade do qual os renovadores são portadores e no qual são mais bem-sucedidos. Trata-se de um campo de possibilidades históricas mais abrangente, que até certo ponto escapa à consciência personificada dos atores, bem como ultrapassa os resultados daquele contexto de lutas" (p. 171). Tanto o projeto governamental, quanto o projeto católico são dualistas e centralistas e, diante dessas forças amplamente majoritárias, "o único trunfo dos renovadores era a sua sintonia histórica com as profundas, mas genéricas, aspirações de transformação social e política, sentidas pela sociedade brasileira, especialmente em seus centros urbanos" (p. 172). A modernidade dos "pioneiros" vai expressar-se "no ideário da gestão de Anísio Teixeira no Distrito Federal", onde a compreensão da política como vontade, qualificada mas não determinada pela formulação sociológica, vincula inexoravelmente "à práxis política a dimensão da liberdade" (p. 182).

E, ao ver surgir de seu esforço de diligente pesquisador a nova matriz de modernidade, Marlos Rocha – ainda comedido na teorização de seus referenciais metodológicos – expressa sua convicção de que "a história intelectual contribui, dessa forma, trabalhando as rupturas conceituais que se estabelecem com base nas disputas sociais e políticas, para o resgate do que se poderia chamar de sentido sintético da novidade, vale dizer, o sentido de um ideário que, possuindo um campo de significação abrangente, extrapola a consciência personificada dos agentes que a implementam" e "determina a virtualidade do projeto moderno" (idem, ibidem).

O percurso feito pelo autor não o leva nem nos autoriza a dele apreender menos do que ele realmente conseguiu: em primeiro lugar, o enfrentamento da complexidade da modernidade que se manifesta na ordem social de uma sociedade aberta; em segundo lugar, a percepção de que "o debate clássico da educação brasileira" propicia "possibilidades de entendimento e alternativas de políticas de educação que podem ser fortemente questionadoras das modernidades propostas" (p. 189).

A leitura do livro de Marlos Rocha faz com que avancemos na competência específica do pesquisador, que é se interrogar pela interrogação à realidade. Ao fazer esse movimento no campo da sociedade humana e, mais especificamente, no campo educacional, uma dinâmica vertiginosa de relações, em múltiplas dimensões de tempo e espaço, se impõe como desafio. Diante deste desafio, o que surpreende no autor é sua atitude de enfrentamento. Respeita a complexidade, sistematizando a partir dela a metodologia para aproximar-se, mantendo a distância que permita relacionar o que apreende, como modo de apreender melhor. Nesse sentido, questiona cada aspecto do seu objeto, cada abordagem anterior do mesmo ou semelhante objeto, os modelos de análise usados por outros, sendo rigoroso na justificativa de suas escolhas de instrumental metodológico.

Mas, sobretudo, a obra dá conta de uma temática fundamental: a gênese e formulação de políticas públicas do campo educacional. A constatação da vinculação das matrizes de referência ao seu tempo e circunstância, e as possibilidades de reconstituir sua "permanência" na transição de diferentes tempos e realidades como constitutiva de rupturas e novidades, fazem do trabalho de Marlos, uma leitura obrigatória e compensadora. Além de autor do estudo sobre Matrizes da modernidade republicana, Marlos Rocha é um cronista generoso do processo de investigação histórico-sociológica que empreendeu.

Estaria incompleta esta nossa leitura do livro de Marlos se não abordássemos algumas questões que a obra suscita. Uma das mais importantes lições do autor está em sua sistemática de interrogar-se criticamente sobre os textos e sobre as interpretações do pensamento dos autores abordados, feitas pelos que os leram antes dele.

Clarice Nunes, no prefácio, levanta algumas questões provocativas como a da recusa de Marlos Rocha em relação à história das idéias (p. X), e a que se refere à afirmativa de que os sentidos estão nos próprios textos (p. XI). Ela encontra a forma de ajudar-nos como leitores, repetindo para nós o que diz para si e para seus colegas pesquisadores: "nós, pesquisadores, estabelecemos uma trama de referência que nos prepara para reagir aos textos de determinadas maneiras e não de outras. Talvez seja inevitável criarmos distorções. Tudo depende da proporção que elas assumem" (p. XII).

Ao leitor, portanto, é fundamental apropriar-se do processo de escolhas do autor. Inclusive para perceber que – e tomo a liberdade de parafrasear Clarice –, ao lado dos pesquisadores, deixamo-nos levar pelo mesmo risco de manifestar aprovação aos autores "quando eles parecem ter aspirado nossas próprias aspirações" (idem).

Encontrei na crônica de processo investigativo, que está inserida no texto interpretativo de Marlos, informações suficientes sobre essas escolhas. Talvez falte o aprofundamento de uma reflexão teórica sistematizada, que ele mesmo é o primeiro a apontar na sua apresentação, insinuando uma promessa de fazê-lo em outros trabalhos (p. 3). E, para justificar esta opção, já lembrara antes Evaldo Cabral de Mello que aconselha o historiador iniciante no sentido de "acautelar-se para que a reflexão epistemológica não se torne francamente inibidora da percepção histórica" (p. 1).

Talvez nós que, como Clarice Nunes, sabemos não ser Marlos Rocha um iniciante na historiografia da educação brasileira, sintamos falta da explicitação mais ampla de sua reflexão teórica, como um enriquecimento desse campo. O autor já nos havia trazido uma significativa contribuição com sua Educação conformada: a política pública de educação no Brasil – 1930/1945, publicado em 2000 pela Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora. Agora, trazendo a referência de Chartier, Dumont e Veyne, que contribuíram com suas reflexões na discussão atual da teoria da história, ele mesmo provoca nossa expectativa sobre sua própria análise teórica.

Parece útil, ainda, retomar as questões que envolvem as interpretações de Marlos Rocha sobre os textos dos autores que pavimentam sua construção das Matrizes, sobretudo detendo-nos sobre o pensamento educacional que se constrói no espaço da ABE, catalizadora das tensões de entendimentos e projetos de sociedade, no momento de ruptura concreta do quadro político pelo movimento de 1930.

Essas questões evidenciam uma linha interpretativa que nem sempre exprime concordância com outras leituras, anteriormente feitas, por outros pesquisadores e até pelos próprios autores, lendo-se uns aos outros. Fernando de Azevedo lê Anísio Teixeira e vice-versa. O primeiro escreve o Manifesto que o outro assina, tendo-o lido como um texto que reflete posições que, compatibilizando-se com seu modo de pensar, recebem seu apoio. Essa leitura mútua vai acontecer não só naquele momento de 1932, mas também no final da década de 1950, quando o outro manifesto se impõe aos educadores "outra vez convocados".

Em seu prefácio, Clarice Nunes considera, com toda razão, "este livro leitura obrigatória para professores e pesquisadores de história da educação brasileira" (p. XIII). Estou convencido de que seria muito bom se todos os que estão envolvidos com a educação brasileira, seu planejamento e gestão, sua execução e sua avaliação pudessem lê-lo, em atitude dialogante. Não apenas com o autor (e os autores de quem ele se faz atento leitor), mas com a realidade presente, construída de fazeres de uma cultura política nem sempre transparente em suas propostas educacionais. Talvez se pudesse ter, uma vez mais, a consciência das múltiplas possibilidades de identificar, na diversidade, a unidade conspiratória de repropor, para além das imposições internas e externas dos interesses menores que a humanização, a educação que nos convém. Uma política "re-publicana" de afirmação do povo como senhor e beneficiário da coisa pública.

Francisco José da Silveira Lobo Neto

Professor adjunto da Faculdade da Educação da Universidade Federal Fluminense e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação dessa mesma universidade

E-mail: siloneto@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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