Resumo
Nosso objetivo, neste artigo, é investigar significados, afetos, dilemas e possibilidades de sujeitos educacionais em relação às avaliações externas. Por meio de entrevistas com esses sujeitos, em uma travessia de encontros, produzimos uma leitura plausível, em aproximações com atitudes decolonais de cenas, situações, efeitos e desdobramentos com avaliações externas em territórios escolares. Estes, em grande parte, são organizados a partir de lógicas e narrativas educacionais mercantilistas, nas quais as avaliações externas operam como uma estratégia político-econômico-pedagógica de reprodução e manutenção. Diante de nosso cenário, em uma política inventiva de estar e produzir com esses sujeitos educacionais em partilhas, construímos algumas facetas de uma avaliação como prática de (re)existência. Uma insurgência política em uma tentativa de subverter e faiscar com o que acontece nos entres de estudantes, professores e um sistema-escola.
Escola; Colonialidade do ser e do saber; Decolonialidade; Avaliações em larga escala
Abstract
The main of this paper is to investigate the meanings, affections, dilemmas, and possibilities of educational subjects in relation to external assessments. Through interviews with these subjects in a series of encounters, we produced a plausible reading, in approximations with decolonial attitudes, of scenes, situations, effects, and developments with external evaluations in school territories. These, to a large extent, are organized based on mercantilist educational logic and narratives, in which external assessments operate as a political-economic-pedagogical strategy of reproduction and maintenance. Given our scenario, in an inventive policy of being and producing with these educational subjects in sharing, we built some facets of an assessment as a practice of (re)existence. A political insurgency in an attempt to subvert and spark what happens between students, teachers, and a school system.
School; Coloniality of being and knowledge; Decoloniality; Large-scale assessments
1 Introdução
Com essa imagem, que também pode acontecer como um afeto ou um convite, produzimos/inventamos algo em um sistema-escola entrelaçado em estudantes, professores; conteúdos, controles, fracassos, narrativas da falta; também em risos, alegrias, aprendizagens, encontros; outros tambéns como buscas incessantes pelos tão desejados índices, por professores e diretores, em avaliações externas. Um sistema-escola com e em referências e mais referências, sem muito espaço para um (alguns) si mesmo.
Mas, o que acontece dentro dos muros de um sistema-escola a partir de cenas, situações, efeitos e desdobramentos de avaliações externas? Quando sujeitos estudantes, professores, a diretora e pesquisadores se colocam a falar e a sentir com essa temática, a partilhar suas vivências, afetos e conhecimentos a respeito de avaliações externas, quais outros entres é possível produzir/inventar? Que algo pode ser esse, produzido/inventado?
Sistema-escolas atualmente são organizadas a partir de lógicas educacionais mercantilistas (Freitas, 2018; Ravitch, 2011). A velha máxima, escola como direito e não como mercadoria, que deve sempre ser repetida e buscada a todo custo, carece de sustentações em nossos dias. Muros de escolas de educação infantil já são pintados com frases: Esta escola é a melhor do estado no ENEM (claro, que os estudantes não fazem ideia do que seja essa sigla); outdoors em vários cantos de cidades brasileiras, com fotos de jovens explicitando em seus braços nomes de universidades e os cursos aos quais foram aprovados, aumentam a cada ano (claro que os cursos de elites e as universidades renomadas têm um destaque); práticas político-educacionais geridas e organizadas a partir de importações de métodos que focam na eficiência e na meritocracia, são implementados cada vez mais em escolas; bônus salariais como décimo quarto salário estão cada vez mais presentes em sistemas estaduais de educação, como uma estratégia de bonificação aos professores e diretores que alcançarem metas estabelecidas. Essas, entre outras estratégias político-econômico-pedagógicas, constituem sistema-escolas cada vez mais alinhados a um capitalismo de plataforma, em uma sedutora e indigesta estratégia em transformar pessoas físicas em pessoas jurídicas.
Nossa atitude em delimitar uma discussão com a noção de sistema-escola é na direção de explicar diferentes narrativas, em distintas intensidades, que atravessam territórios de escolas brasileiras. Uma escola se inventa diante de sua localização geográfica, da renda salarial dos pais dos alunos, da quantidade de professores concursados e contratados, da coletividade construída entre professores, técnicos pedagógicos, merendeiras, porteiros e todos outros profissionais que habitam uma escola. Se os alunos utilizam transporte público, como ônibus, se seus pais os levam e buscam da escola de carro, se eles apenas caminham de suas casas até chegar à escola. Uma escola se inventa entre afetos, significados, cores, ambientes acolhedores com estrutura para criar laços com alunos. A feira de ciência, o interclasse, as festas típicas de cada região. Uma escola também se inventa em conteúdos escolares, avaliações de aprendizagens, planejamentos anuais, formações continuadas de professores e com as temidas (desejadas e reprimidas) avaliações externas. Neste breve delineamento, temos que uma escola é mais do que alunos, professores e conteúdos disciplinares. Uma escola não é um território onde supostamente apenas se ensina e aprende conteúdos. Neste sentido é que ampliamos nossas discussões na direção de um sistema-escola, um território emergente e emergencial, sempre contingente e atravessado por demandas e problemáticas de uma sociedade.
Nesses sistema-escolas, as avaliações externas operam como um tentáculo de um capitalismo de plataforma, uma estratégia político-econômico-pedagógica que prolifera e se instaura em diferentes espaços escolares, desde às produções dos estudantes até as tabulações e ranqueamentos nacionais e internacionais, muito explicitadas em canais jornalísticos do mainstream. Como afirmam Silva e Ortigão (2022, p. 116), em relação ao Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (PISA), ele “representa uma estratégia política neoliberal que visa a contribuir para formação de capital humano na lógica do mercado, em detrimento de uma ação que possa favorecer efetivamente a educação como princípio de justiça social”.
Neoliberalismo “apresenta-se como manifestação de um discurso político e de princípios econômicos fortemente vinculados às regras de funcionamento do mercado que norteiam o modo de vida dos indivíduos em diversas esferas sociais” (Silva; Ortigão, 2022, p. 116). Em termos de políticas educacionais, na contramão do pensamento fronteiriço, são pensadas sem levar em consideração as diferentes formas de vida, a diversidade cultural, mas reforçando as características e o poder neoliberal. Nesta organização, há uma reprodução do interesse capitalista e colonialista para a formação humana, comprometendo a visão crítica de mundo. Nas ideias de Duarte (2013) a escola, ao invés de operar com a possibilidade dos estudantes terem acesso às verdades, com a formação humana, ela tem sido organizada de modo a prepará-los de acordo com as demandas neoliberais, com a valorização dos conteúdos previamente estabelecidos, no desenvolvimento de competências e habilidades, que serão, supostamente, úteis nas avaliações externas, no termômetro da qualidade do ensino.
E se...
E se escola não fosse escola apenas da aprendizagem? E se as carteiras não fossem enfileiradas? Se o professor não ficasse à frente da sala de aula? Se os estudantes falassem mais? Se os professores e os estudantes não estivessem lotados de referências? Se as avaliações externas não atuassem como indutoras de currículos e deixassem de ditar o que o professor deve fazer em sua sala de aula? E se elas não se constituíssem como uma estratégia neoliberal? E se...
Neste contexto e dando prosseguimento ao E se..., investigamos significados, afetos, dilemas e possibilidades de sujeitos educacionais em relação às avaliações externas. Nossa travessia aconteceu em um sistema-escola pública na cidade de Apucarana, no estado do Paraná. Nela, produzimos encontros com estudantes, professores, a diretora da escola e professores outros que realizam pesquisas a respeito da avaliação em terrenos da educação matemática. Esta escola não é apenas um território físico e material, pois se constitui também como uma referência para nossas produções. A partir de entrevistas com esses sujeitos, compomos lógicas, narrativas e facetas em meio às cenas, situações, efeitos e atravessamentos com avaliações externas. Não se trata de um sujeito pesquisador e os seus dados (objetos) produzidos, ainda na binaridade colonial de sujeito e objeto. Trata-se de uma travessia que acontece em encontros: sujeitos educacionais que se encontram diante de um (ou vários) sistema-escolas, reais ou imagináveis, que acontecem em um suposto presente ou que se inventam em passados ou futuros outros.
2 Os sistema-escolas como projetos da modernidade
Walter Mignolo (2008) argumenta que a modernidade é uma narrativa complexa carregada de traços eurocêntricos, a qual viola formas de ser e estar no mundo, propagando a expansão hegemônica e os discursos dominantes, lineares e racionais. Essas formas de violências epistemológicas colocam os povos subalternos em posição de objetos e constituem a pauta oculta da modernidade, a colonialidade, esta que equivale a uma matriz ou padrão colonial de poder.
Em relação aos termos, subalterno é “aquele que depende de outrem, uma pessoa subordinada a outra, ou ainda, refere-se à perspectiva de pessoas de regiões e grupos” (Figueiredo, 2010) marginalizados, que estão fora do poder da estrutura hegemônica, sujeito que não tem história e que não pode falar, ou seja, a condição de subalternidade está atrelada à condição do silenciamento (Spivak, 2010).
Com Anibal Quijano (2000) entendemos a colonialidade como algo que transcende particularidades e que mantém as lógicas das relações do colonialismo histórico, que não desaparece com o fim da experiência colonial, com a independência. Acerca de suas dimensões, Anibal Quijano (1992) propõe a colonialidade do poder, do saber e do ser.
A colonialidade do poder se movimenta por meio das estruturas de dominação que foram estabelecidas durante os períodos de colonização e que moldam e classificam as relações sociais colocando a Europa no centro do poder e marginalizando os sujeitos que ocupam lugares outros para além desse centro do sistema-mundo.
Com relação a colonialidade do poder, Anibal Quijano (2000, p. 285) entende como
[...] um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, esferas e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala social.
Assim sendo, entende-se que na colonialidade do poder as relações de produção e a distribuição de recursos na ordem mundial capitalista são organizadas segundo uma hierarquia racial constituída para este fim específico.
A colonialidade do ser se manifesta com os moldes das subjetividades e com a hierarquização das identidades, que reforçam estruturas binárias de poder, desvalorizando as identidades de alguns sujeitos, daqueles que não ocupam o centro. Nesta direção, corpos são destituídos por meio de formas de opressão em termos de raça, gênero, classe, territorialidade, sexualidade, da exclusão e inferiorização da corporalidade negra, indígena, feminina. Segundo Maldonado-Torres (2007, p. 136) “la actitud imperial promueve una actitud fundamentalmente genocida con respecto a sujetos colonizados y racializados. Ella se encarga de identificar a sujetos coloniales y racializados como dispensables”.
A colonialidade do saber refere-se às verdades universais que são legitimadas pela sociedade do conhecimento, ou seja, é uma específica perspectiva de conhecimento, de saberes europeus, que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes (Quijano, 2005). Manifesta-se em uma tentativa de garantia da “subalternização de conhecimentos na chamada ‘sociedade global’ e na chamada ‘sociedade do conhecimento’, que professam ‘verdades universais’ e que tem-se mostrado metodicamente organizados e sistemáticos, o que tem provocando a exclusão de epistemologias outras” (Tamayo, 2017, p. 45).
Com ideias de Catharine Walsh (2008) a colonialidade do ser coloca professoras e professores a um status social subalterno, no qual suas identidades profissionais são fragilizadas, seu fazer docente é reduzido a um enfoque técnico e implícito, e a autoridade sobre os saberes de referência para essa atuação é outorgada a atores externos a seus próprios espaços profissionais. De acordo com Anibal Quijano (1992), a colonialidade do poder está intimamente ligada com a colonialidade do ser e do saber, ou seja, as hierarquias de poder acontecem não apenas nas estruturas sociais e políticas, mas também na produção e disseminação do conhecimento e na construção das identidades individuais e coletivas.
Com desconfiança, em meio aos sistema-escolas constituídos pela e na colonialidade, somos atravessados com inquietações como:
Que sala de aula de matemática acontece?
Que avaliações externas acontecem?
Quem habita esses espaços escolares: sujeitos ou objetos?
Que vozes são legitimadas nesses espaços escolares?
Que matemática ...?
Que sala de aula ...?
Que escola ...?
Que ...? O que ... ? Como ... ?
Assumindo uma atitude decolonial, não desarmando ou desfazendo o colonial – como se isso fosse possível – mas atuando “em seus arredores, em suas fissuras, em suas rachaduras, como lugares de produção de possibilidades” (Giraldo, Fernandes, 2019, p. 470), sendo sobreviventes à Covid-19, decidimos investigar significados, afetos, dilemas e possibilidades de sujeitos educacionais em relação às avaliações externas (Silva, 2023). Neste território, sujeitos educacionais são seres humanos com suas vidas, histórias, seus desejos e suas práticas profissionais. Sujeitos educacionais são estudantes, professores e a diretora da escola e pesquisadores que se dedicam à temática da avaliação externa em educação matemática, os quais “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias” (Kilomba, 2019, p.28).
Com esses sujeitos, na dúvida entre abraçar os silêncios de seus discursos ou evidenciar, de fato, o que foi dito, para além de explicitar as avaliações externas, faíscas e tensões entre o sistema-escola, produzindo significados para aquilo que nos foi dito por meio de uma leitura plausível. Tentamos nos movimentar em possibilidades a partir de efeitos e atravessamentos das avaliações externas em um por vir, com um convite de produção de avaliações como práticas de (re)existências.
Produzindo significados para aquilo que nos foi dito, com aquilo que não pode ser desvisto, compondo com sujeitos educacionais (estudantes, professores e diretora) e com um sistema-escola, escrevemos que o modo de operar do Estado moderno/colonialista em um discurso (utópico) universalista, de uma educação para todos (todos?) impacta diretamente às práticas pedagógicas. Em um projeto moderno de escola, um sistema-escola, pois abrange e se constitui de um conjunto de lógicas e narrativas econômicas, políticas, culturais, ecológicas e não se remete apenas aos processos de ensino e aprendizagem de um conteúdo, temos territórios de disputas e de resistência, bem como de encontros e imaginações outras para a produção/invenção de outras relacionalidades.
Um sistema-escola como projeto da modernidade, pois é constituído nas lógicas e narrativas do progresso, da melhoria e desenvolvimento. Um território que faz a manutenção de um sistema capitalista e institui alunos, professores e todos outros profissionais pelo critério da eficiência e da meritocracia. Uma escola não se inventa apenas como um espaço de formação humana por meio de processos de ensino e de aprendizagem de conteúdos que são importantes para uma sociedade contemporânea. Um sistema-escola se inventa como um projeto de modernidade/colonialidade. Claro que sempre há brechas e, nestas, habitamos.
3 Em uma travessia, entre encontros
Ao longo do ano de 2020, começamos a habitar um sistema-escola: Escola Estadual Major João Carlos de Faria, na cidade de Cornélio Procópio, no estado do Paraná, com intenção de estar junto e produzir com estudantes, professores, coordenadores e diretora da escola. Fomos, como humanos e não-humanos de todo planeta, assolados pela Covid-19 e diante desta pandemia, movimentamo-nos em outras direções. Assim, em nossa travessia entre encontros, produzimos com sujeitos educacionais por meio de situações de entrevistas, entre eles: dois estudantes, seis professores e diretora da escola e com quatro professores universitários que desenvolvem pesquisas com a temática da avaliação na educação matemática. Nossa intenção foi de partilhar com esses sujeitos cenas, situações, efeitos e atravessamentos de avaliações externas em sistema-escolas. Nosso objetivo foi investigar significados, atravessamentos, afetos, dilemas e possibilidades de sujeitos educacionais em relação às avaliações externas. Tomando como referência metodológica a noção de leitura plausível do Modelo dos Campos Semânticos (Lins, 1999, 2022) em uma inclinação às produções decoloniais de Catharine Walsh, Grada Kilomba, Anibal Quijano e Walter Mignolo.
Segundo Lins (1999, p. 83) uma leitura plausível é “toda tentativa de se entender um autor deve passar pelo esforço de olhar o mundo com os olhos do autor, de usar os termos que ele usa de uma forma que torne o todo de seu texto plausível”. Ler é produzir e tentar (sempre em um fracasso já anunciado) dizer o que o outro diria. Entretanto, nesses entres, estão as possibilidades de estar com e produzir com. Não temos apenas um texto de entrevistas em nossas mãos como dados que foram produzidos a partir de uma situação de entrevista. Temos partilhas, produções/invenções com sujeitos educacionais. Segundo Kilomba (2019, p. 28) objetos são aqueles em que a realidade é definida por outros e as identidades são criadas por outros, já os sujeitos “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias”.
Nossa aposta em produzir alianças (inclinações) nos entres da noção de leitura plausível, do MCS, e algumas atitudes decoloniais, está na possibilidade de ampliar um leque de discussões que podem potencializar investigações com sujeitos educacionais, em nosso caso, professores, alunos pesquisadores, diretora da escola, e oferecer outros efeitos em algumas searas de pesquisa, em nosso caso as avaliações externas. A leitura plausível se institui como uma tentativa de estar com o outro: ler é produzir. Esta noção (no modo como operamos e como também nos inventamos com ela) empurra os pesquisadores a suspender suas verdades e tentar se relacionar diante de um outro, que ocupa outros territórios, com afetos, significados e historicidades outras. Interpretar o que o outro disse, explicitar o que o outro quis dizer, desvelar verdades ocultas, tento os sujeitos com quem nos deparamos como dados de uma pesquisa, são movimentos dos quais nos afastamos (sempre em tentativas e vigilâncias de nós mesmos). Por outra entrada, em outras plasticidades, discussões decoloniais, em múltiplos contextos, territórios, historicidades operam em proximidades com esta aposta de uma leitura plausível. Em nossas movimentações de pesquisa, tentamos estar junto com sujeitos educacionais, em uma tentativa de produzir com. Tomamos sempre presentes colonialidades em sistema-escolas, mas que por vezes se escondem nas margens. Colonialidades tais como o conteúdo, a disciplinaridade, uma estrutura de escola diante de um projeto da modernidade. Entre essas discussões que acontecem, nossas inclinações estão nos entres de leituras plausíveis e atitudes decoloniais.
Estudantes partilham conosco seus significados e afetos em relação às avaliações externas. Professores, diretora, professores e pesquisadores partilham outros significados e afetos. Nesses entres de lógicas, narrativas e facetas de avaliações externas que acontecem nas escolas, produzimos algumas discussões nos terrenos da avaliação educacional no âmbito da educação matemática.
Em um de nossos encontros, o estudante Igor Pitoli partilha que nessa escola, os estudantes
[...] entram, sentam e a aula começa. O professor permanece próximo ao quadro negro (em vigilância perpétua), anota nele o (conteúdo) que tem que passar, o professor explica o conteúdo, passa questões sobre aquele conteúdo, de vez em quando envolve o livro didático, realiza uma correção oral e passa uma tarefinha para fazer no papel.
(Fala do encontro entre Igor Pitoli e QUERO, 2023).
Em um possível talvez, essa organização escolar se relaciona à ideia de universalidade, da manutenção de um padrão. Com as salas de aulas compostas com carteiras enfileiradas, com um quadro negro fixado na parede em posição frontal a elas, com o professor na centralidade do processo, em um suposto discurso de que assim, com essa estrutura, os estudantes terão acesso a tudo que é previsto de maneira igualitária, nas mesmas condições, às garantias legais, sob o amparo da homogeneização.
Nesse breve relato de um sujeito estudante, prevalece uma estrutura de saberes universais, verdades absolutas, conteúdo, ensino e aprendizagem, certo e errado, aprovado e reprovado, em uma abordagem disciplinar hegemônica, imersa em relações de poder e ideologias dominantes, atrelada à garantia de qualidade educacional. Qualidade que é traduzida a partir dos resultados obtidos por meio de aplicações de avaliações externas, as quais atuam como dispositivo de controle, como um aparelho de Estado, com base nas metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE).
Com o afeto da esperança no âmago desse instrumento (Viola dos Santos, Santos, 2019), já que os resultados das avaliações externas estão atrelados ao financiamento da educação, e que esse resultado advém de
[...] um retrato que é tirado naquele minuto e que não é, não pode ser modificado.
(Fala do encontro entre Regina Buriasco e QUERO, 2023).
[...] a escola se preocupa em criar caminhos, em uma lógica de preparar para, já que vai precisar chegar em um resultado.
(Fala do encontro entre Raul Tolentino e QUERO, 2023).
De acordo com Mirian Silva (2016, p. 91),
[...] o estabelecimento de metas, os testes em larga escala e a divulgação dos resultados por escola são políticas disciplinares que acabam transferindo para a escola e os professores a plena responsabilidade pela qualidade educacional, fazendo com que as práticas pedagógicas e o currículo escolar sejam estreitados para aquilo que é cobrado nessas avaliações.
Para Esteban (2014), atingir índices, produzir propostas de trabalho com vistas aos itens da avaliação externa se constituem como práticas didático-pedagógicas cada vez mais presentes nas salas de aula de matemática. Na escola, em uma partilha com professor Raul Tolentino,
[...] a gente vê muitos professores preocupados, tentando modificar os seus instrumentos avaliativos, já que quanto mais o estudante tiver experiência com esse tipo de avaliação (com instrumentos nos moldes das avaliações externas), resultados melhores irão acontecer, não que isso seja um treinar o estudante para essa prova.
(Fala do encontro entre Raul Tolentino e QUERO, 2023).
Além disso, Adriane Quero, a diretora deste sistema-escola, relata
[...] que os professores utilizam este mesmo modo de aplicação nas demais avaliações (provas) procurando deixar o estudante consciente de que é uma temática adotada em todas avaliações (provas) e processos de seleção também.
(Fala do encontro entre Adriane Quero e QUERO, 2023).
Nessas partilhas, traços, laços, efeitos e denúncias de uma colonialidade do saber em um sistema-escola que se estrutura e opera na lógica de ir bem em uma avaliação externa.
Atualmente, sistema-escolas se inventam em meio à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, e também com competências e habilidades descritas na Matriz de Referência Curricular do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Todas as outras orientações e normativas estaduais e municipais seguem (estão atreladas) às lógicas e narrativas destas duas grandes garras da colonialidade, na manutenção de sistema-escolas da modernidade. Logo, na expectativa de atingir o índice, os sujeitos passam a operar com poucas possibilidades, pois são capturados pelos afetos da esperança e do medo, que operam na temporalidade da expectativa (Safatle, 2015). Ainda com Safatle (2015, p. 24)
Sempre o tempo da espera que nos retira da potencialidade própria ao instante. Talvez, por isso, o corpo político que a esperança e o medo são capazes de produzir seja sempre modalidade de um corpo político providencial. O corpo constituído pela crença esperançosa em uma providência por vir ou o corpo depressivo e amedrontado de uma providência perdida ou nunca alcançada.
Acontecer em sistema-escolas em uma lógica e narrativa do preparar para, sempre no tempo de espera, nos tira da potencialidade própria ao instante, nos distanciando do que acontece na escola enquanto potência de produção/invenção de sujeitos outros.
Neste sistema-escola, sujeitos se tornam dóceis, submissos e previsíveis (Souza, Miguel, 2020), atuam como objetos, como integrantes de grupos subalternos, sendo que as avaliações externas acontecem como práticas hierárquicas, operando com a classificação, exclusão, opressão, marginalização, com manutenção das desigualdades sociais-culturais-afetivas-estruturais-filosóficas-políticas-econômicas, enfatizando discursos neoliberais, sempre na busca pelo ideal. Neste sistema-escola, práticas pedagógicas têm intenções reguladoras, consolidam e mantêm as sociedades neoliberais (Miguel, 2016). Com efeito,
[...] transformar as aulas no dia a dia em preparação para uma prova parece-me fora de propósito e antidemocrático. Deste modo não dá para saber se os resultados refletem, de fato, a qualidade do ensino, não dá para saber se as coisas estão ou não estão bem.
(Fala do encontro entre Regina Buriasco e QUERO, 2023).
Como salienta Jader Dalto, um professor que realiza pesquisas a respeito da temática das avaliações externas, em uma de nossas partilhas,
[...] se não preparar os estudantes para essas avaliações, os estudantes podem ter resultados insatisfatórios, e isso recai no professor. Parece que se o estudante vai mal, a culpa é do professor.
(Fala do encontro entre Jader Dalto e QUERO, 2023).
Efeitos e relacionalidades da colonialidade do poder acontecem por meio de processos de responsabilização, da antiga e sempre atual ideia de encontrar culpados. A responsabilização é uma marca dos processos que são desencadeados pelas avaliações externas nas escolas.
Ainda nesta discussão, os efeitos dos resultados são vinculados ao progresso, o aparelho de Estado, ou melhor, as avaliações externas, ao criar um número, potencializam suposição da falta e produzem estratégias para o avanço, como exemplificado pela fala de Cleyton Gontijo, um professor que realiza pesquisas a respeito da temática das avaliações externas, em nosso encontro:
Os nossos estudantes tiveram média 500, significa que eles sabem ‘isso’, falta aprender ‘isso’, porque eles deveriam saber ‘isso’.
(Fala do encontro entre Cleyton Gontijo e QUERO, 2023).
Em travessias em um sistema-escola, construímos um olhar das avaliações que lá acontecem como se fosse uma balança de dois pratos: avaliações da aprendizagem e avaliações externas. Estas são confundidas por professores, estudantes, responsáveis e se entrelaçam em vários momentos. As avaliações externas ocupam o lado mais pesado da balança, pois neste sistema-escola, elas operam como indicativos de sucesso, progresso, ranqueamento, de investimento e financiamento para a escola. Em um território meritocrático, as avaliações externas induzem práticas pedagógicas a serem realizadas pelo professor, ditam o que e como acontece na sala de aula de matemática.
Mas como resumir a aprendizagem e justificar práticas pedagógicas por meio de um número, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), se, por vezes, estudantes que assinalam alternativas sem sequer ler o que está proposto nos itens da prova? Se há estudantes que participam das avaliações externas na esperança da nota atribuída diante de sua participação? Se a prova é aplicada seguindo um caráter universal para realidades compostas por diversas formas de vida e estirpes? Se há escolas que, como partilha Raul Tolentino,
[...] de repente, está em uma periferia e tem problemas de evasão, distorção idade-série? Escola essa que, mesmo, muitas vezes, fazendo um trabalho muito bom, não vai conseguir alcançar com a mesma facilidade os indicadores de uma escola que está localizada no centro, com outro público.
(Fala do encontro entre Raul Tolentino e QUERO, 2023).
As avaliações externas se constituem e operam como um (e apenas um entre outros tantos) instrumento de proposição e manutenção de políticas públicas educacionais, produzindo fotografias dos sistema-escolas. Elas não têm alcances de regular e explicitar aprendizagens de estudantes, pois seu foco é no sistema. Entretanto, na escola, em subversões de escalas e planos de existências, falas de professores e outros profissionais da educação são produzidas tomando resultados de avaliações externas para falar de aprendizagens de estudantes. Também em escolas, a qualidade de todo o trabalho de quem a habita, muitas vezes se resume ao resultado da escola no SAEB. Em uma partilha com Maria Isabel Ortigão, uma professora que realiza pesquisas a respeito da temática das avaliações externas, corroboramos suas preocupações na direção de que
[...] não dá para dizer que a qualidade está pautada em um único indicador, não existe nada neutro. O que está chegando na escola é um indicador, o IDEB. Mas, e daí? O que aquilo quer dizer? É um indicador que atua como um termômetro, a gente precisa ter um termômetro. Agora, o que é que aquilo quer dizer? Não estar com febre é sinal de saúde?
(Fala do encontro entre Maria Isabel Ortigão e QUERO, 2023).
Os resultados das avaliações externas são apenas um indicador para os sistema-escolas. Eles não determinam, não marcam e não rotulam. Pelo menos não deveriam. É uma armadilha, muitas vezes já em operação para professores, diretores, técnicos de secretarias de educação, secretários de educação e responsáveis em outras instâncias, realizarem comparações entre escolas tomando como critério os resultados do SAEB e do IDEB.
No cenário das avaliações externas, a referência da Matemática (e o Português) se dá como legitimidade epistêmica, estatuída de um poder per se, com conteúdos ordenados de maneira hierárquica e linear, de regras e processos pré-definidos. Com Walsh (2008) sentimo-nos potentes em escrever que, muitas vezes, a matemática organizada em conteúdos (pautados no currículo escolar e nas referências das avaliações externas) e o conhecimento (epistemológico e hegemônico) matemático alimentam e mantêm as estruturas opressoras da sociedade, devido às condições de produção e por impossibilitarem que os estudantes proponham explicações autênticas para a realidade que os cercam, diante dos modos que lhe são apresentados, tanto o Português, quanto a Matemática.
Atuando nas fronteiras dos espaços (subalternizados) escolares, subvertendo as lógicas (hierárquicas) de poder, entendemos que o estar na escola e produzir conhecimento não se limitam a demonstrar teoremas novos (Davis; Renert, 2009) ou preparar o estudante para as avaliações externas. Uma possibilidade, talvez, produzindo com o que acontece, pode ser abraçar todas as práticas (ou quantas for possível) que mobilizam produções de matemática(s) em diferentes contextos, afirmando diferenças como potência de vida, com matemática(s) produzir significados em espaços de experimentações, sempre em vírgulas. Ou seja, se um sistema-escola opera em uma lógica de avaliações externas como indutoras de uma linguagem universal e de um currículo com vínculos com a neutralidade, a homogeneidade, a invisibilidade de diferentes, reforçando alguns saberes em detrimentos de outros, em brechas e fissuras, movimentos outros também podem acontecer. É possível, então, inventar/produzir um sistema-escola com lógicas outras, que resiste e opera com matemática(s), em plurais, as quais representam, segundo Matos, Giraldo e Quintaneiro (2021, p. 878)
[...] uma concepção plural do corpo de conhecimento instituído como imutável, estático, evolutivo e constituído, essencialmente, a partir de produções eurocêntricas, demarcando um posicionamento político que se opõe a essa história única – e eurocêntrica – de conhecimento, indicando nosso reconhecimento do dinamismo e da diversidade dos processos históricos e sociais que atravessam a produção de saberes matemáticos.
Uma sala de aula de matemática, uma escola, humanos e não-humanos se inventam em movimentos nos quais conhecimentos escolarizados se entrecruzam com demandas e problemáticas do mundo contemporâneo. Sujeitos educacionais podem se colocar como inventores diante de produzir possibilidades e relacionalidades outras. Essas travessias sempre acontecem em relações com historicidades, ancestralidades, proposições filosóficas, éticas, políticas, econômicas, culturais e ecológicas.
4 Uma avaliação como prática de (re)existência
Como uma insurgência política, reconhecendo problemáticas históricas das avaliações externas, em uma travessia entre encontros, uma possibilidade outra é produzir avaliações como práticas de (re)existência. Nesta tentativa, uma subversão, um faiscar outro com estratégias colonial-neoliberais de homogeneização de escola, operando com os processos de avaliações externas que oprimem e violentam é, em uma atitude decolonial, criar, produzir outras lógicas no contexto escolar. Produzir avaliações como práticas de (re)existência é uma uma tentativa de produzir outros mundos possíveis, com postura de resistência, transgressão, intervenção, insurgência, uma atitude em produzir vidas.
Produzir avaliações como práticas de (re)existência é colocar efeitos e aspectos do sistema-escola em suspensão, é uma possibilidade de inventar mundos ainda não inventados, de produzir mundos outros como mundo que acontece, é pensar, em um por vir, em possíveis facetas para essas avaliações. Trata-se de tentar operar em escalas e planos de existências outros que atravessam os sistema-escolas e as avaliações externas, mas que muitas vezes ficam escamoteados e deixados em marginalidades. Explicitamos algumas dessas facetas. Nossa aposta está em uma possível gramática outra que possa ser experimentada em territórios escolares e que, com isso, possa potencializar leituras e produções outras de atravessamentos que constituem sistema-escolas. Nos entres de estratégias da colonialidade, esta é uma tentativa de habitar brechas e insurgir outras potências vitais.
Talvez uma possível faceta seja a de investigações.
Pode ser potente uma investigação de processos epistêmicos-históricos-políticos-cognitivos que atravessam a escola e que atravessam a vida dos estudantes; uma investigação de afetos que atravessam a escola e seus atores; uma investigação de narrativas e lógicas outras, entre tantas. Nesta direção, a ideia é, com a estratégia político-econômica que serve para fazer a retroalimentação do sistema, subverter, produzir atitudes decoloniais. Problematizar diante do que acontece nas escolas com avaliações externas, que traços outros, que laços outros podem ser inventados.
Onde estão os estudantes dessas escolas e como eles podem ser partes constituintes de uma avaliação externa? O que eles fazem? Quais são seus empregos? Quais foram suas movimentações econômicas em relação às suas ancestralidades? Como o depois da escola, por parte dos estudantes, pode ser produtivo para um construir do agora de uma escola?
Talvez outra possível faceta seja a do financiamento escolar.
Neste território, entendemos que as avaliações externas produzem efeitos no singular e no coletivo, “legitimam valores e ideologias, justificam admissões e demissões, ascensões e reprovações, premiações e sanções, reforços e coerções na esfera comportamental, liberações e cortes de financiamento” (Dias Sobrinho, 2004, p. 715). Ao encontro, “muitas vezes, a concessão de empréstimos e ajudas internacionais por parte de países centrais a países periféricos ou semiperiféricos exige que os respetivos sistemas de ensino adotem o uso de testes e outras formas de avaliação" (Afonso, 2015, p. 14).
Com uma escola que se mostra sob a lógica do preparar para, sempre com a “expectativa de que algo deve ser feito no presente, para que no futuro possa lidar de uma ‘maneira melhor’ com entraves e possibilidades” (Viola dos Santos, Correa, 2020, p. 616) originários do financiamento da educação, e que, inclusive, com bem afirma Regina Buriasco,
[...] a meritocracia não é a saída.
(Fala do encontro entre Maria Isabel Ortigão e QUERO, 2023).
uma problematização possível é olhar para os motivos de se relacionar o financiamento educacional (do sistema-escola) com avaliações externas.
Por que as avaliações externas acontecem (também) com este discurso? Por que o financiamento da escola precisa estar atrelado (também) aos resultados obtidos por meio de aplicações de avaliações externas?
Com isso, em um por vir, uma possibilidade nesta faceta pode ser o deslocamento, a separação dos resultados das avaliações externas com parte do financiamento da escola. Em uma tentativa de produzir (ou provocar) fissuras. O financiamento escolar poderia estar associado com as demandas dos seus habitantes. O financiamento escolar poderia (precisaria) ser constituído a partir de perspectivas locais, de outros elementos que os próprios habitantes desta escola demandam. As escolas e os financiamentos das escolas poderiam se constituir em termos de planejamentos estratégicos a médio e longo prazo, de autoavaliação das suas realizações, das suas dificuldades e das suas possibilidades e de seus professores e estudantes, da historicidade das suas infraestruturas, dos desafios colocados pela coletividade do sistema-escola frente ao e ao seu contexto político-econômico-sociocultural e à localidade que habita (bairros, municípios), entre tantos outros. Sempre esses elementos (e outros) e essas decisões (e outras) poderiam compor um espectro do financiamento escolar, com sua produção na coletividade do sistema-escola.
Talvez outra possível faceta seja a dos participantes das avaliações externas.
Por que as avaliações externas são censitárias? Por que todos participam das avaliações externas?
Os sistemas educacionais de cada estado, o Brasil como um todo são o foco das avaliações externas. Os efeitos delas não podem (ou não deveriam) focar em identidades das escolas. Quando estes efeitos acontecem, por vezes, as avaliações externas escapam de suas funções e acabam por
[...] permitir uma comparação entre escolas.
(Fala do encontro entre Jader Dalto e QUERO, 2023).
criando uma alienada expectativa de superação, ou seja, alcançar índices, operando em favor das metas e não em processos de construção de políticas públicas em médio e longo prazo do sistema-escola.
As avaliações externas participam de um processo de comparação entre escolas, o que acarreta uma comparação entre professores e estudantes. Elas não são a única estratégia colonial-patriarcal-eurocêntrica que contribui para esse cenário de comparação, mas ocupa um lugar de destaque. Se o sistema-escola em nosso país é único, ele não pode ser comparado. As escolas são capturadas por uma armadilha na qual se constitui uma sensação psicológica (e fantasmática) de uma suposta (ingênua) melhoria da qualidade, já que o índice aumentou.
Cria-se uma disputa velada entre escolas. Disputa que tem como o único perdedor todo o sistema-escola Brasil. É necessário um trabalho de construção de escola como um espaço de partilha, de produção de solidariedades, uma possibilidade de invenção de vidas outras. Uma escola que se afasta de lógicas de comparações e binaridades entre sucessos e fracassos; perdedores e ganhadores.
Do ponto de vista do pesquisador português Almerindo Janela Afonso, olhando para as avaliações externas internacionais, este movimento comparativo está intimamente ligado com as “lógicas de internacionalização do capitalismo e com os projetos de modernização”. Ele complementa que (Afonso, 2015, p. 10).
[...] a participação de países centrais ou altamente desenvolvidos nas avaliações internacionais não deixa de poder ser uma forma indireta de estabelecer objetivos indispensáveis à comparabilidade de sistemas educativos não comparáveis, porque são altamente desiguais em termos de possibilidades e recursos competitivos, reforçando desta forma os efeitos não esperados da ideologia da modernização, como se fosse possível abstrair das desigualdades intrínsecas ao sistema capitalista globalizado e globalizador.
Talvez, sob o ponto de vista da avaliação dos sistemas educacionais de cada estado e do Brasil em termos de políticas públicas, como salienta Maria Isabel Ortigão,
[...] ao pensar em possíveis indicativos para a gestão, as avaliações externas não precisariam ser censitárias, elas poderiam ser amostrais.
(Fala do encontro entre Jader Dalto e QUERO, 2023).
Um modelo de avaliação amostral, em uma direção outra,
rompe toda a cadeia de pressões sobre a escola, liberando seu potencial criativo paralisado pelas avaliações externas e pelas pressões de responsabilização verticalizadas – uma avaliação amostral não identifica escolas e, portanto, não tem por finalidade padronizar e pressionar a escola e, sim, apenas avaliar a política pública (Freitas, 2014, p. 1108).
Assim sendo, os sujeitos que habitam o sistema-escola deixam de ser atravessados em suas totalidades (e rigorosamente cobrados) pelos enfáticos discursos neoliberais, sempre na busca pelo ideal, que acontecem (sempre) com tentativas (ilusórias) de atingir os índices, satisfazendo as metas e os padrões estabelecidos, esvaziados de sentidos sociais-culturais-afetivos-estruturais-filosóficos-políticos-econômicos,
Talvez outra possível faceta seja a Matriz de Referência (Matriz colonial de poder).
Um outro efeito das avaliações externas no sistema-escola esteja atrelado à colonialidade do saber,
[...] já que as avaliações externas legitimam um saber centralizado em conhecimentos únicos [Português e Matemática] como episteme universalizante e imprescindível a qualquer formação, construindo, portanto, a corporificação de um sujeito único, baseado na personificação de uma cultura avaliativa homogeneizada (Machado et al. 2022, p. 961),
potencializam, de alguma maneira, o genocídio intelectual (dominação epistêmica), excluindo culturas e saberes sob a perspectiva de que alguns conhecimentos (Português e Matemática) se sobrepõem a todos os demais, com “professores de Português e de Matemática operando como reguladores do que pode, não pode, deve ou não deve ser feito” (Viola dos Santos, Santos, 2020, p. 257).
Um caminho alternativo é o de tornar questionável a matriz colonial de poder (Matriz de Referência) que acontece sob uma lógica prescritiva e normativa de (ímpios) descritores e habilidades de Português e a Matemática, de pensar que um sistema-escola é mais que o Português e a Matemática. Um sistema-escola é constituído de vivências, histórias, afetos, materialidades, conhecimentos disciplinarizados, mas também de conhecimentos outros que escapam esta lógica da escola moderna.
Nessas discussões, se as avaliações externas fazem parte do sistema escolar, em uma direção de produção de políticas públicas para construção de uma escola atenta às emergências desse mundo contemporâneo que os estudantes vivem e viverão,
[...] penso que seria interessante também, para além do Português e Matemática, ter uma avaliação que contemple as outras disciplinas.
(Fala do encontro entre Raul Tolentino e QUERO, 2023).
e mais, atravessando as fronteiras, com a organização curricular que privilegia a formação e a escolarização disciplinar (Walsh, 2013) e com os modelos repetitivos e previsíveis, uma outra faceta é a de produzir educações (avaliações externas) com possibilidade indisciplinar.
Seguindo com essa discussão, o indisciplinar abriria espaço para imaginação de práticas escolares distintas daquelas impostas pelo cetro racional-disciplinar, e poderia destacar o fato de que
[...] uma problematização sempre incide, não mais sobre os conteúdos ou temas disciplinares em si e por si mesmos, previamente estruturados ou não, mas sim sobre práticas culturais tomadas como unidades básicas tanto da ação educativa, como da formação de professores e da pesquisa acadêmica em educação (Miguel, Vilela, Moura, 2012, p. 10),
já que a prática indisciplinar se movimenta na intenção de rastrear diferentes práticas culturais não escolares em diferentes campos de atividade humana. As práticas culturais
[...] são engendradas por saberes e rituais valorativos e eticamente orientados acerca dos limites da intervenção humana sobre os próprios humanos e sobre os demais seres naturais. As práticas também mobilizam afetos e sentimentos de quem as pratica. Felicidade e satisfação são alguns deles. Angústias, riscos e inseguranças são outros. [...]. Em suas vidas, os seres humanos não vivem isolados ou apartados de outras vidas, ao contrário, eles sempre se constituem e se organizam em diferentes formas de vida. É esta organização vital interativa que lhes permite produzir saberes sobre outros seres naturais, sobre outros seres humanos, sobre si próprios, sobre as vidas e sobre as próprias formas de vida (Souza, Miguel, 2020, p. 181).
Portanto, entendemos que esta posição indisciplinar aliada às práticas culturais é, sobretudo, um ato de transgressão de limites disciplinares.
5 Apenas algumas considerações
Com essas facetas de uma avaliação como prática de (re)existência, entre cenas, situações, efeitos e atravessamentos, permanecemos em um movimento ocupando uma posição de sujeito inventivo, imaginando, teorizando, propondo formatos e modos outros plausíveis para e com processos avaliativos. Inventamo-nos em um pulo sem volta, em um modo de habitar sistema-escolas também com o afeto do desamparo. Entre medos e esperanças, desamparar-se não na direção da necessidade de um amparo ou alento de alguém ou de uma narrativa. Desamparo como uma oportunidade de criar corpos outros ainda não pensados, em uma direção de despossessão de predicados que nos identificam, em aberturas outras em contingências (Safatle, 2015).
Entre sujeitos educacionais lotados de referências, sem espaço para si mesmo, desconfiados de sua própria desconfiança, atingidos por aquilo que não pode ser desvisto e se jogando num sentimento sem volta, produzimos/inventamos possibilidades para outros processos avaliativos se instituírem em sistema-escolas. Uma, e apenas uma, avaliação como prática de (re)existência. Enxergar o que está diante de nossos olhos, mas que de tão naturalizado e domesticado, cria uma sensação de impotência em notar detalhes e os fios que compõem estratégias de controle, subserviência e captura de nossas subjetividades a uma lógica da vida como mercadoria, talvez é um dos principais desafios em nossos sistema-escolas. Os estudantes não são números. A qualidade de uma escola não pode ser medida por um único instrumento. A potência inventiva de um território de produção e manutenção de pertencimentos, um sistema-escola, não pode se instituir pela narrativa da eficiência e da meritocracia. Entre medos e esperanças, o desamparo pode operar como um afeto transformador e emancipatório, que atua se afastando da melhoria e do progresso, por vezes sinônimos de impotência e estagnação, e mais próximo à invenção e a relacionalidades outras, entre humanos e também não-humanos.
Atuando nas fissuras, em devires, fortalecendo vozes de pessoas historicamente subordinadas, constituímos nossa travessia produzindo escolas (sistema-escolas), produzindo matemática(s), produzindo educações (matemáticas), produzindo avaliações como prática de (re)existência em espaços de experimentações. Produzindo sempre, e mais uma vez. Resistir em pelo menos dois modos de leituras desta palavra: uma resistência frente aos processos violentos e perversos que acontecem nos sistema-escolas e em uma re-existência na produção de uma escola outra em um convite.
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
27 Fev 2024 -
Aceito
23 Set 2024





Fonte: Correia (2020)
Fonte: Correia (2020)
Fonte: Correia (2020)
Fonte: Correia (2020)