EDITORIAL
Educação: de direito de cidadania a mercadoria
Elizabeth de Almeida Silvares Pompêo de Camargo; Ivany Rodrigues Pino; José Augusto Pacheco; Patrizia Piozzi; Pedro Goergen; Romualdo Portela de Oliveira; Valdemar Sguissardi
Organizadores
A última década do século XX e a primeira do século XXI estão servindo de cenário para o retorno da educação, em novo patamar, ao centro do debate público. Entretanto, no contexto de mudanças macroeconômicas globais, orientadas por Estados hegemônicos e organismos multilaterais a seu serviço, que contam com a anuência voluntária ou não dos demais países (subalternos e periféricos?), a educação, ao mesmo tempo em que é alvo da crítica de todos os matizes ideológicos por não responder às demandas sociais, passa por transformações de sua identidade histórica: de direito de cidadania herdado do ideário liberal, da Revolução Francesa e do Estado de Bem-Estar, ou socialista parece transformar-se a cada dia em um bem privado ou mercantil, isto é, moeda de troca entre indivíduos, entre indivíduos e organizações comerciais nacionais ou transnacionais, e mesmo entre nações nas suas transações mercantes. A modernização conservadora do Estado e da sociedade estaria fazendo do campo educacional a mais nova fronteira de expansão do capital na dita Sociedade do Conhecimento. Não surpreende, pois, que a mercantilização dos serviços (antes, direitos) educacionais esteja há quase uma década na ordem do dia de agcs/omc desde as propostas americanas, australianas e neozelandesas para sua regulamentação nem que a imprensa nacional noticie que "Fundos de investimento externos pretendem adquirir instituições [universidades] para depois vender participação", de modo similar ao que estaria ocorrendo com empresas de serviços de saúde, como redes de farmácias e laboratórios, ou comerciais, como as de comunicação e de energia, ou industriais, como as de alimentos e de agribusiness.
Além desses, listem-se entre os principais sintomas dessa profunda transformação identitária da educação em curso: 1) a estagnação ou redução do financiamento público, em especial da educação superior; 2) a grande expansão da educação privada lato e stricto sensu (nesse caso, a começar pela legalização das instituições educacionais com fins lucrativos) e a adoção de claros processos de mercantilização dos serviços; 3) a crescente privatização interna das instituições públicas via venda de serviços, consultorias e outros mecanismos, entre os quais se destacam as fundações privadas de apoio institucional; 4) o surgimento de novos modelos empresariais provedores de serviços educacionais com fins lucrativos (for profit) orientados pelo mercado, as universidades corporativas, escolas e universidades virtuais, os consórcios de instituições públicas e empresas privadas, as escolas autogestionadas e a franchising educacional; 5) os novos sistemas de coordenação, avaliação e controle que, estimulando a administração gerencial e a competição de tipo empresarial, submetem os subsistemas de ensino, inclusive os públicos, aos mecanismos e interesses do mercado e destroem a autonomia da instituição escolar; 6) a indústria dos dispositivos pedagógicos extra-escolares (softwares educativos, entre outros) para incremento da competitividade escolar, o mercado de produtos paraescolares e de serviços especializados, que incluem empresas prestadoras de serviços psicopedagógicos (tutorias remotas, entre outros), de acompanhamento de deveres de casa, de aulas particulares de recuperação e reforço.
Um grande arsenal de conceitos-chave, revestido em grande medida de semântica nova, tem sido utilizado para alimentar e viabilizar, sejam aquelas transformações macroeconômicas e estruturais de fundo, sejam as do campo educacional. Bourdieu & Wacquant, em célebre artigo intitulado "La nouvelle vulgate planétaire" (Le Monde Diplomatique, maio de 2000), chamam a atenção para a estranha nova língua "cujo vocabulário, aparentemente surgido em lugar nenhum, está em todas as bocas: 'mundialização' e 'flexibilidade'; 'governança' e 'empregabilidade'; 'underclass' e 'exclusão'; 'nova economia' e 'tolerância zero'; 'comunitarismo', 'multiculturalismo' e seus primos 'pós-moderno', 'etnicidade', 'minoridade', 'identidade', 'fragmentação' etc.". Alertam, entretanto, para a surpreendente ausência de termos como capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade, e que "tantos vocábulos peremptoriamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de impertinência presumidas é o produto de um imperialismo propriamente simbólico". Alertam, igualmente, para seus efeitos poderosamente perniciosos, que o seriam ainda mais porque utilizados não apenas pelos neoliberais convictos, que, sob a capa de modernização, fazem tábula rasa de cem anos de conquistas sociais, mas também pelos produtores culturais (pesquisadores, escritores, artistas) e por militantes de esquerda que, em sua maioria, consideram-se progressistas.
No campo educacional, como de resto em todo o campo social, os conceitos que subjazem a essa cruzada mercantilizadora não são menos empobrecedores do discurso teórico e político-ideológico. Em recente texto intitulado "Público versus mercantil", na Folha de S. Paulo (19/6/2003), o sociólogo Emir Sader expunha o que ele chama de "Uma das operações teóricas e políticas mais bem-sucedidas do neoliberalismo", isto é, a instauração do debate em torno da oposição entre estatal e privado. O debate posto nesse eixo impõe segundo ele "um campo duplamente favorável ao liberalismo, porque, por um lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal e, por outro, desloca um dos termos essenciais do debate: o público". Contra o estatal são lançadas as pechas de ineficiente, cobrador de impostos e mau prestador de serviços à população, além de burocrático, corrupto, opressor. Em favor do privado idealizam-se virtudes como as de espaço de liberdade individual, de criação, de imaginação e de dinamismo. Esquece-se de que "O Estado brasileiro tem sido facilmente desqualificável, porque se tornou um Estado privatizado. Um Estado que arrecada do mundo do trabalho e transfere recursos para o setor financeiro, gastando mais com o pagamento dos juros da dívida que com educação e saúde. Um Estado que paga taxas de juros estratosféricas ao capital financeiro, mas remunera pessimamente seus professores e seus trabalhadores do setor de saúde pública, aqueles mesmos que prestam serviços à massa da população. (...) Por oposição, o privado surge como pólo privilegiado".
De fato, enfatiza Sader, a oposição estatal x privado reduziria o debate a dois termos que não seriam necessariamente contraditórios: o estatal não seria um pólo, mas, sim, um campo de disputa, dominado hoje pelos interesses privados. Assim, o privado também não seria a esfera dos indivíduos, "mas dos interesses mercantis como se vê nos processos de privatização, que não constituíram processos de desestatização em favor dos indivíduos, mas das grandes corporações privadas, aquelas que dominam o mercado , a verdadeira cara por trás da esfera privada no neoliberalismo". Nesse esquema, o pólo oposto ao estatal "é a negação da cidadania, é o reino do mercado, aquele que, negando os direitos, nega a cidadania e o indivíduo como sujeito de direitos". A conclusão mais óbvia e definitiva é que: "A polarização essencial não se dá entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil".
Como alertam Bourdieu & Wacquant, o poder desse imperialismo simbólico se agrava quando se torna senso comum. Algo similar afirma Apple, em seu artigo nesta edição, ao mapear a modernização conservadora que se imporia como estratégia hegemônica mesmo entre os que lutam pelos direitos dos despossuídos de direitos. Políticas conservadoras, direitistas, que se apresentam freqüentemente como radicais e como soluções necessárias para um sistema educacional fora de controle e que não responderia às necessidades do povo. É este conservadorismo, lembra Apple, que avança e toma o lugar central em muitas nações, que toma conta de largos segmentos governamentais e de policy makers, e ainda é apropriado por grupos dos quais não se esperaria que o fizessem.
No rol desses conceitos-chave, para entender-se a guinada conservadora mercantil que assola o campo educacional, Apple lista mercados, padrões, prestação de contas (accountability), tradição, Deus, além de numerosos outros, com valência emocional diversa, que incluem os de democracia, liberdade, escolha, moralidade, família e cultura, aptos a prover suporte para os caminhos palmilhados por esse novo e diferente poder. A estes ainda se poderia acrescentar: quase-mercado educacional, forças do mercado, decisões privadas, regulação, regulação pela oferta e pela procura, desregulação, controle, ranking, competências, qualidade total, acreditação, bem privado x bem público, eqüidade social, livre escolha escolar, escolas autogestionadas, organizações sociais, organizações públicas não-estatais, produtos paraescolares, capitalismo acadêmico etc.
Para analisar essa realidade acima apenas delineada em alguns de seus principais traços, mediante novas leituras com novas (e velhas!) categorias teóricas, Educação & Sociedade convidou um grupo selecionado de especialistas nacionais e estrangeiros. É assim que, de diferentes lugares teóricos e posições político-ideológicas, autores brasileiros, argentinos, mexicanos, americanos, ingleses, franceses e portugueses nos apresentam, nesta edição, instigantes reflexões sobre um conjunto muito significativo de aspectos deste mosaico formado pela temática da educação como direito de cidadania e sua acelerada transformação em semimercadoria ou mercadoria, simplesmente, no quase-mercado educacional, onde desponta em especial a histórica contradição público x privado ou, em termos mais adequados, público x mercantil.
Registre-se que este número especial de Educação & Sociedade, além disso, retoma e aprofunda questões já levantadas em números anteriores, em particular no número especial de 2002 (v. 23, n. 80), no qual, sob o título "Políticas públicas para a educação: olhares diversos sobre o período de 1995 a 2002", procurou-se realizar um balanço crítico dessas políticas, inegavelmente marcadas por essa contradição.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Out 2003 -
Data do Fascículo
Set 2003