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EDITORIAL

Este editorial, finalizado em 16 de julho pp, foi redigido em uma conjuntura tensa, de desdobramentos imprevisíveis para o país, marcada pela incerteza em torno dos alcances e limites dos mecanismos de representação democrática para garantir a dimensão ética da Política.

A grande imprensa, empenhada em dar destaque às graves denúncias de suborno de parlamentares e tráfico de influências no alto escalão do governo, informa, em pequenas notas "ao pé de página", dois acontecimentos de grande relevância para a área da educação, concomitantes à saída do ministro Tarso Genro, convocado para assumir a presidência do Partido dos Trabalhadores: de um lado, o envio ao Congresso Nacional do projeto de um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), que destina 47 bilhões de reais para aplicação no setor nos próximos 14 anos; de outro lado, o anúncio da finalização e do envio ao Congresso do anteprojeto de Lei de Educação Superior.

Tomando fôlego a partir de janeiro de 2004, a proposta dessa Lei de Educação Superior, amplamente debatida, ao longo dos últimos dois anos, no âmbito da academia e das entidades representativas de docentes e estudantes, gerou opiniões e análises divergentes, que encontram ressonância nas duas versões preliminares, de dezembro de 2004 e maio de 2005. O debate entre militantes, estudiosos da temática do ensino superior, jornalistas etc., engajados no processo reformador, polariza-se em torno de uma questão central: as propostas concretas inscritas no texto do anteprojeto respondem ao compromisso, formulado explicitamente, de construir uma universidade voltada à "republicanização", ou seja, "(...) um espaço público e plural de produção de conhecimentos e de diálogo com a sociedade civil", vinculado "(...) ao projeto de nação, como elemento estratégico na busca de um novo modelo de desenvolvimento, central para a consolidação de uma nação soberana democrática e inclusiva"? (Apresentação da 2ª versão do anteprojeto de lei).

Em que pesem as diferenças entre as opiniões a respeito da proposta, todos os setores progressistas convergem em considerar que a democratização do acesso ao ensino superior, preservando a liberdade intelectual e a vocação "civilizatória" e "pública" da Universidade, implica, em primeiro lugar, um forte investimento de recursos, em direção oposta às políticas de ajuste fiscal predominantes desde os anos de 1990, as quais, priorizando a meta de "sustentabilidade da dívida", operam cortes drásticos nos gastos sociais, abrindo caminho para a privatização e mercantilização desse tipo de serviço. A maioria dos analistas realça que tal orientação não é apenas uma herança da "era neoliberal" do Governo FHC, mas está incrustada no centro nevrálgico da atual administração, na política econômica que radicaliza ainda mais tais tendências em sua incessante corrida para atender às exigências do FMI, como mostra o recente convite formulado pelo presidente da República a Delfim Netto para elaborar um plano com meta de "déficit nominal zero".

Apesar da desaceleração, no atual governo, da privatização tout court de empresas, a desestatização dos serviços públicos, impulsionada pelo esforço para o crescimento do "superávit primário", continua a se aprofundar pelo enorme incentivo às parcerias público-privadas (PPP). Estas, sob a aparência de colaboração entre Estado e sociedade civil na realização de empreendimentos de interesse público, transformam serviços destinados à garantia de direitos de cidadania, conquistados na modernidade, em mercadorias voltadas primordialmente à realização do lucro.

Na área do ensino superior, uma das formas desse gênero de parceria, já amplamente criticada pelos universitários e repudiada pelas entidades estudantis e docentes, é o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que concede isenção fiscal às instituições privadas, em troca de bolsas de estudo para alunos provenientes de famílias de baixa renda, buscando expandir o acesso ao ensino superior sem custos para o herário público.

O PROUNI, que em sua formulação inicial previa a concessão de bolsa integral exclusivamente a alunos e professores da rede pública, descaracteriza-se ao longo da tramitação no Congresso Nacional, resultando em uma lei (3/1/2005) que amplia o público-alvo, incluindo os egressos de escolas privadas e os que podem pagar 50% da mensalidade. Além disso, concede maior autonomia às instituições na seleção dos candidatos ao Programa e reduz as exigências de qualidade, "facilitando" o processo de avaliação dos referidos cursos. Dessa forma, o Programa acaba tornando-se um mecanismo indireto de financiamento e subsídio das instituições privadas, em um período de crise e retração do setor, concedendo isenção fiscal a um custo muito barato, em frontal oposição ao veto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEM) (Lei nº 9.394/96), que proíbe a isenção tributária para as instituições com fins lucrativos. Outro exemplo é o da Lei de Inovação Tecnológica, pela qual, sob o pretexto de estreitar a colaboração científica e técnica entre universidades e empresas, legitima-se a transferência de tecnologia do setor público para o privado, inclusive oferecendo vantagens financeiras aos pesquisadores engajados no projeto, como, por exemplo, afastamento de até seis anos para trabalhar no setor empresarial.

No interior desse quadro pouco promissor, que, aliás, parece revelar o quanto a cartilha "ortodoxa" da equipe econômica contribui para a mercantilização da educação superior, o anteprojeto da lei de reforma da educação superior, ao contrário, apesar de suas fragilidades, entre outras, relativas à questão do financiamento e da consolidação das fundações (privadas) de apoio institucional, pode ser lido, sob muitos aspectos, como uma vitória das tendências mais autenticamente progressistas e democráticas que, no MEC e na sociedade civil, engajam-se para preservar a vocação pública e humanista da universidade.

Em primeiro lugar, o anteprojeto reafirma a gratuidade no ensino público superior, em flagrante discordância com o documento do Ministério da Fazenda, de título "Gasto social do governo central de 2001 a 2003" (13/11/2003), que se empenha em demonstrar o empecilho constituído, para as metas do governo popular, pela gratuidade do ensino público superior, por este abrigar os 10% entre os mais ricos da população.

A recusa em introduzir mensalidades na universidade pública constitui um posicionamento claro em defesa do direito universal à educação, particularmente importante em um momento no qual alas do próprio governo popular camuflam um propósito de enxugamento de despesas na retórica da transferência de renda dos alunos ricos aos pobres, enquanto resultados de pesquisa do IBGE mostram que a renda familiar dos alunos da universidade pública é menor, em média, que a daqueles que cursam as universidades privadas. Na mesma linha de "resistência" aos cortes, o anteprojeto retoma uma meta vetada pelo Governo FHC, ampliando "a oferta de ensino público mediante expansão dos sistemas públicos federal e estaduais de modo a assegurar uma proporção nunca inferior a 40% do total das vagas, prevendo inclusive a parceria ou o consórcio público da União com os estados e os municípios na criação de novos estabelecimentos de educação superior". (Anteprojeto – 2ª versão)

A priorização do ensino superior público e da cooperação entre instituições pertencentes a este sistema encontra correspondência no FUNDEB. Torpedeado, inclusive em declarações públicas, pelo ministro da Fazenda, ao longo de sua elaboração, trata-se de um projeto de investimento maciço, sem precedentes na história da República, destinado a melhorar os salários, hoje indignos, dos professores dos ensinos fundamental e médio, a ampliar as vagas da rede pública e modernizar os equipamentos das escolas, podendo constituir-se, se aprovado na íntegra, em um passo fundamental na efetiva democratização do acesso ao ensino superior no país.

Enfim, no que diz respeito às formas diferenciadas de inclusão, o texto reafirma a proposição inicial de contribuir para neutralizar as condições desiguais de concorrência advindas de determinações históricas e sociais, destinando 50% das vagas a alunos egressos de escolas públicas e estabelecendo cotas étnicas proporcionais às características de cada região.

Sem desconsiderar o caráter polêmico das políticas de ação afirmativa, em torno das quais se trava o debate entre os defensores da conceituação universalista de igualdade e aqueles que defendem a necessidade de levar em conta as diferenças culturais, sociais e étnicas, a proposta atesta indubitavelmente a vontade política de abrir caminhos para tornar efetivo o acesso à universidade de "todos os filhos da nação indistintamente", inserindo-se em uma tradição inaugurada pela ala mais democratizante das Luzes e da Revolução Francesa.

Estamos conscientes de que os empecilhos à realização destas propostas se encontram no próprio projeto, que silencia em torno da necessidade de regulamentar as relações entre ensino público e privado. Tal omissão, combinada às leis de parceria, originárias da mesma equipe do Ministério da Educação, ao enorme poder atribuído pelo governo à equipe econômica e à política de aliança com setores mais conservadores do Congresso Nacional, pode esvaziar o conteúdo republicano e democratizante presente no anteprojeto, como já aconteceu, por exemplo, no caso do PROUNI.

Para que isso não aconteça, é de extrema importância que o debate seja mantido vivo entre os setores mais críticos da universidade, da imprensa e das organizações da sociedade civil.

Educação & Sociedade, que já dedicou o número especial de 2004 à reforma universitária no país e no exterior, busca contribuir para esse debate publicando constantemente artigos de diferentes posições sobre o assunto. A realização e a difusão de estudos rigorosos e intransigentes sobre estas temáticas certamente contribuem para manter viva e operante a missão pública e emancipadora da universidade, em oposição ao espírito mercantil – "seu maior inimigo", nas palavras dos grandes reformadores das Luzes.

Educação & Sociedade publica neste número o dossiê "Sociologia da infância: pesquisa com crianças". Considerando a importância deste campo em constituição na sociologia, articulado particularmente com as sociologias da educação e da família, e imerso no contexto das transformações sociais da gestão do tempo cotidiano – contemporâneas e universais, culturais, sociais e econômicas –, a revista intenciona aprofundar o debate crítico das produções nessa área, abrindo espaço para pesquisadores do exterior, esperando que os nacionais entrem no debate com suas marcas da cultura brasileira e de toda a América latina.

O CEDES presta homenagem à destacada educadora Argentina Cecilia Braslawski, falecida em junho deste ano em Genebra, pela sua importante contribuição em prol da educação na América Latina.

Comitê Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
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