RESUMO:
Ao longo dos séculos, a tarefa de produzir e ensinar teologia tem sido uma atribuição exclusiva dos sujeitos masculinos, cujos agentes construíram discursos que desqualificaram o feminino para tais ações. A partir da década de 1970, impulsionadas pelas transformações socioculturais e institucionais, as mulheres começaram a se inserir neste campo de saber. Contudo, a área acadêmica da teologia continua sendo um reduto do sujeito masculino, o que exige das mulheres a construção contínua de estratégias para se legitimarem sujeitos de saber. Este trabalho evidencia como as docentes de teologia fazem da ação de ensinar e produzir saber uma estratégia política de afirmação positiva da diferença, no processo de tornarem-se sujeitos femininos, em um lugar historicamente estruturado como não inteligível para elas. O estudo toma por base as narrativas sobre a experiência de ensinar e produzir teologia de 14 docentes, que atuam em três instituições católicas.
Palavras-chave: Docência feminina; Teologia; Subjetividade; Diferença
ABSTRACT:
Over the centuries, producing and teaching theology has been exclusively the task of men, whose agents have constructed discourses that have disqualified women in this regard. Beginning in the 1970s, driven by sociocultural and institutional transformations, women started to insert themselves into this field of knowledge. However, the academic area of theology continues to be a male stronghold, requiring women to continually construct strategies to legitimize themselves as knowledgeable. This work shows how women theology teachers make teaching and producing knowledge a political strategy of the positive affirmation of difference in the process of becoming women in a place historically structured to be unintelligible to them. The study is based on the accounts of teaching and producing theology of 14 teachers from three Catholic institutions.
Keywords: Feminine teaching; Theology; Subjectivity; Difference
RÉSUMÉ:
Au cours des siècles, la tâche de produire et d'enseigner la théologie a été une attribution exclusive des sujets masculins, dont les agents ont construit des discours qui disqualifiaient le genre féminin pour telles actions. À partir des années 1970, les femmes, poussés par des transformations socioculturelles et institutionnelles, ont commencé à entrer dans cette domaine de connaissance. Cependant, le champ académique de la théologie reste un bastion du sujet masculin, qui oblige les femmes à construire continuellement des stratégies pour se légitimer comme sujets de la connaissance. Ce travail montre comment les professeurs de théologie pratiquent l'enseignement et produisent une stratégie politique d'affirmation positive de la différence du processus de devenir les sujets féminins à un lieu historiquement structuré comme non intelligible pour eux. Cette étude s’est basée sur les récits sur l'expérience de l'enseignement et de la production de la théologie de 14 enseignants qui travaillent dans trois institutions catholiques.
Mots-clés: Enseignement féminin; Théologie; Subjectivité; Différence
Introdução
O campo do saber teológico, mesmo em suas descontinuidades históricas, constituiu-se exclusivamente como masculino, não só pela representatividade de seus sujeitos, mas também por sua estrutura simbólica legitimada pela dimensão do sagrado. Consequentemente, os discursos da teologia tradicional criaram estruturas hierárquicas, produzindo a mulher como o “outro” do sujeito masculino e, portanto, desqualificada para as atividades intelectuais e para lugares de liderança no espaço eclesial.
No Brasil, a inserção da docência feminina no campo acadêmico da teologia ocorreu a partir da década de 1970, cujo fenômeno esteve vinculado às transformações socioculturais, impulsionadas pelas mobilizações feministas, que permitiram às mulheres conquistar maior acesso ao Ensino Superior em diferentes áreas acadêmicas, inclusive as que eram consideradas masculinas, como as ciências exatas, as engenharias, entre outras. Assim, na década de 1980, as universidades e faculdades contavam com um número significativo de mulheres, que já não eram somente estudantes, mas docentes dedicadas às atividades de ensino e produção acadêmica.
É importante mencionar que a graduação em teologia foi recentemente reconhecida pelo Ministério da Cultura (MEC) por meio do Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE/CES) nº 241, de 15 de março de 1999. Historicamente, esses cursos funcionaram como cursos livres destinados a formar indivíduos do sexo masculino para ocupar cargos de liderança na estrutura hierárquica, do universo eclesial. A legalização da graduação em teologia trouxe mais visibilidade para esta área disciplinar, no conjunto das ciências humanas, tornando-se um espaço de saber destinado à formação de sujeitos que almejam outras possiblidades profissionais, para além da tradicional figura do padre e do pastor.
Esses aspectos, de certo modo, favorecem a inserção de mulheres no campo do saber teológico, contudo, esse universo continua sendo um reduto dos sujeitos masculinos. Isso pode ser evidenciado em um estudo de tese de 20141, o qual mostra que a graduação de teologia, entre os cursos que integram a grande área das humanidades, é o que apresenta o maior índice de desigualdade em relação à participação da docência masculina e feminina, ou seja, uma diferença de 47,4%2. Considerando somente o universo das instituições de ensino em teologia católica, essa assimetria chega a 71,2% (FURLIN, 2014). Tal realidade, em parte, pode ser explicada pelas práticas discursivas dessas instituições que, ao longo dos séculos, legitimaram hierarquias sexistas no espaço eclesial e por ter vinculado o curso de teologia ao universo masculino, em vista do serviço ordenado.
Apesar de a presença da docência feminina no universo acadêmico da teologia se apresentar ainda muito reduzida em termos quantitativos, ela ganha importância simbólica por revelar que as mulheres estão rompendo as fronteiras de gênero de um campo profissional demarcado culturalmente como masculino. Ou seja, trata-se de uma “subversão crítica”, no sentido de desestabilizar uma ordem social que parecia ser sagrada e intocável. Contudo, estar nesse lugar de saber exige das mulheres docentes um empreendimento de energias bem superior aos seus pares masculinos para se legitimarem sujeitos de saber teológico.
Nesse sentido, este trabalho procura evidenciar como as mulheres fazem da ação de ensinar e produzir saber teológico uma estratégia política de afirmação positiva da diferença para se construírem sujeitos femininos, em um lugar acadêmico historicamente estruturado como não inteligível para elas. Para isso, estruturamos nossa reflexão em três pontos sobre os quais passaremos a nos deter.
Pressupostos teórico-metodológicos
A realização deste estudo baseia-se em narrativas de 14 docentes que atuavam no ensino superior em três instituições católicas, localizadas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Trata-se de um recorte de um estudo de tese no qual se buscou identificar o processo do tornar-se sujeito feminino de saber, por meio da análise das narrativas de docentes sobre suas trajetórias acadêmicas, no que se refere à escolha pelo curso de teologia, ao processo da formação, às dinâmicas de inserção na docência, às relações de gênero entre os pares, aos lugares de ação e de liderança ocupado por elas e às iniciativas que inauguraram no campo de saber teológico.
Neste artigo, tomamos exclusivamente as narrativas que tratam das experiências das docentes na ação de ensinar e produzir teologia, por considerarmos que nelas é possível evidenciar detalhes específicos sobre a estratégia política de positivação do feminino e afirmação de si, que as mulheres produzem no processo de constituírem-se sujeitos de saber, em um lugar social em que ainda se operam dinâmicas de gênero da ordem sociocultural masculina.
As narrativas foram compreendidas segundo a perspectiva genealógica, inspirada em Foucault (1999) e Lauretis (2000), ou seja, não no sentido cronológico, mas a partir da singularidade dos acontecimentos, nos aspectos que envolvem as experiências situadas, o que nos permitiu pensar as condições nas quais os processos de subjetivação feminina ocorrem no universo da teologia.
Analisamos os conteúdos das narrativas das docentes à luz dos pressupostos teóricos do feminismo e dos estudos de gênero, na perspectiva pós-estruturalista, e da noção de diferença sexual elaborada pela feminista italiana Rosi Braidotti (2004), cuja teoria se conecta com as discussões contemporâneas do feminismo, por contemplar tanto as diferenças dentro de cada sujeito (entre os processos conscientes e inconscientes) como as diferenças entre o sujeito e seus outros.
A noção de diferença sexual de Braidotti (2004) possibilita a atualização da legitimidade do projeto político da afirmação alternativa da subjetividade feminina, a partir de práticas incorporadas em contextos situados, que funcionam como contramemória ao modelo de feminilidade produzido, abstratamente, do ponto de vista dos sujeitos masculinos. Nesse sentido, em Braidotti (2004), a resistência ocorre em relação ao sistema simbólico masculino que produziu subjetividades femininas pejorativas e estáveis, de maneira que o potencial subversivo da agência se encontra na relativa não pertença a esse sistema, o que lhes permite negociar ou produzir formas alternativas de sujeito. Essa resistência, em Braidotti, é focada na prática política feminista e na localização do corpo encarnado, que produzem efeitos de contramemória. É partindo da prática localizada que ela propõe uma versão não essencializada da diferença sexual, em que o eu encarnado se define com a intersecção de muitos campos de forças sociais, como raça, idade, cultura. Se o sistema simbólico masculino colonizava o imaginário das mulheres, para Braidotti (1999, p. 16), “o projeto do feminismo deve tanto resistir como abrir espaços alternativos para as mulheres redefinirem coletivamente suas experiências singulares como o ‘outro de si mesmas’”.
A perspectiva de Braidotti (2004) foi significativa para analisar as narrativas das docentes, já que elas estrategicamente buscam positivar a diferença no “modo feminino” de produzir e ensinar teologia. Trata-se de um projeto político que legitima o devir sujeito feminino de saber em um lugar social que, ao longo de muitos séculos, foi estruturado como um não lugar para as mulheres, conforme passamos a descrever no ponto que segue.
A “diferença” como um projeto político do devir sujeito de saber
A pesquisa de tese intitulada Relações de gênero, subjetividades e docência feminina: um estudo a partir do universo do ensino superior em teologia evidencia que as poucas mulheres inseridas nas instituições de ensino teológico, mesmo que tenham alcançado o maior nível de qualificação acadêmica, precisam estar sempre provando que são competentes e capazes de assumir certas funções, até então, consideradas “masculinas”. A exigência de uma afirmação positiva de si, de certa forma, aparece vinculada à construção histórica de um feminino desqualificado para as atividades intelectuais, muito recorrente no discurso teológico tradicional. Como negação a essa feminilidade pejorativa, as narrativas das docentes enfatizam que as atividades desenvolvidas por elas, aqui especificamente a docência e a produção teológica, são realizadas de “modo diferente”3 e, consequentemente, trazem uma contribuição significativa para o campo do saber teológico.
Um “modo diferente” de produzir teologia
O “modo diferente” de produzir teologia, que é enfatizado nas narrativas das docentes, tem a ver com o método utilizado de desconstrução e reconstrução, baseado na hermenêutica feminista4 e na incorporação das categorias de gênero e de experiência das mulheres, bem como na abordagem de novos temas, como corporeidade e violência contra as mulheres5. Nesse “modo diferente” de produzir teologia, o conteúdo das narrativas também dá ênfase à releitura crítica que elas fazem da teologia tradicional masculina, partindo da metodologia da suspeita, que tem como critério de discernimento crítico as experiências concretas das mulheres. Essa metodologia é indicada como parte do que diferencia a produção feminina da teologia tradicional. Segundo Flax (1992), a metodologia da suspeita tem sido uma postura do feminismo, de um olhar crítico diante das estruturas da sociedade e das formas redutivas do pensamento masculino. Por meio dessa metodologia, as docentes tomam como base as experiências contextualizadas das mulheres, o que permite assumir uma postura de suspeita e de crítica ao pensamento produzido sob o ponto de vista da subjetividade masculina, que passa a ser considerado um saber limitado, insuficiente, hierárquico, binário, polarizante e linear. Nesse sentido, têm-se algumas expressões das docentes como: “Eu acho que a produção das mulheres tem sido importante para uma releitura da teologia nas diferentes dimensões, bíblica, eclesiológica” (Lídia, 39 anos); “Estamos fazendo uma releitura crítica do saber teológico androcêntrico” (Hulda, 64 anos); “Considero que a nossa produção está contribuindo para uma nova releitura do saber teológico, porque produzimos diferente e somos diferentes na forma de ver e sentir o mundo” (Rute, 67 anos); “As mulheres não fazem teologia sem trazer as suas experiências de vida e de fé [...]. Elas trazem o cotidiano como categoria teológica importante” (Ester, 51 anos).
Nas narrativas das docentes entrevistadas observa-se que é recorrente a afirmação de que elas produzem teologia fundamentadas nas experiências femininas, que são vivenciadas em seus próprios corpos e no cotidiano da vida. Isso passa a ser um dispositivo de poder que lhes permite fazer uma releitura crítica a um conhecimento abstrato e desencarnado que, ao longo da história, produziu significados nada reais, com consequências negativas para a subjetividade das mulheres. Com isso, elas assumem um lugar de fala, não como seres desencarnados, mas como seres corpóreos e, portanto, sexuados. De certo modo, essa posição de valorizar as raízes corporais da subjetividade revela que elas rejeitam uma visão tradicional de quem é o sujeito do conhecimento. Isto é, elas se distanciam de uma concepção de sujeito universal, neutro e, consequentemente, desprovido de gênero. Essa maneira “posicional” ou situada de sujeito, como as mulheres docentes se compreendem, “determina que a localização ou situação mais importante do sujeito tem a ver com as suas raízes na estrutura espacial do corpo” (BRAIDOTTI, 2004, p. 40).
Nessa posição, as professoras entrevistadas compartilham da concepção de que estão produzindo uma teologia que é diferente, porque, desde as suas experiências corporais e de seu cotidiano, elaboram uma crítica ao pensamento teológico tradicional e universal. As categorias de experiência e de cotidiano têm sido recorrente nas produções feministas, como bem evidenciam os estudos de Bach (2010) e de Adán (2006). Desse modo, ao se apropriarem das mesmas ferramentas metodológicas do feminismo, elas compartilham dessa rede de estudos das ciências e das humanidades, que mostram que o saber universal e masculino é parcial, por não dar conta das experiências e da subjetividade das mulheres. Entretanto, ao enfatizar que elas produzem de modo diferente, porque também possuem experiências que lhes são singulares, no que se refere à percepção da vida, do mundo e de Deus, elas reforçam sempre seu vínculo político com a corrente do Feminismo da diferença. Aqui, como em outros momentos de suas narrativas, é possível afirmar que elas assumem a posição de “mulher” como lugar político de fala, de ação e de reivindicação do seu devir sujeito, em um contexto masculino6, cuja posição também pode ser interpretada como uma espécie de essencialismo estratégico. Segundo Spivak (1989) apudCosta (2002), o essencialismo estratégico tem a ver com a produção de uma identidade de gênero fixa ou uma “idealização mínima”, de um projeto feminista mais amplo, mesmo que insuficiente, problemático e contestado. Nesse sentido, de acordo com Costa, faz-se necessária a construção de pontos nodais e fixações parciais que permitem certa identificação em torno de uma categoria política “mulher”.
Podemos considerar que é partindo dessa posição política que as docentes produzem o que nomeiam a teologia feminista e afirmam que esta reflexão é uma nova proposta de produção de conhecimento, porque se contrapõe ao saber racional, universal e parcial, produzido do ponto da subjetividade masculina. A narrativa de Miriam (66 anos) ilustra essa concepção, que é compartilhada entre as docentes entrevistadas.
A teologia feminista se constrói a partir de outra metodologia. Com certeza, ela pode ser considerada uma nova proposta epistemológica dentro do campo da teologia, porque ela diz respeito ao conhecimento. Então, você vai caminhando por trilhas novas na produção desse conhecimento, onde se critica o conhecimento que foi feito e a forma como esse conhecimento foi feito, até aqui. Por exemplo, a teologia feminista propõe outros aspectos; não entra só a racionalidade fria, entram dados empíricos, dados mais emocionais aonde a pessoa vem inteira e não coloca só a razão quando escreve, e isso enriquece epistemologicamente. Eu acho que é um ganho, é um ganho epistemológico. Você pode admitir que outras leituras podem ser feitas a partir de outro ponto de vista e a partir de um sentir diferente, que vem da experiência das mulheres.
Esse fragmento da narrativa de Miriam enfatiza uma metodologia do ponto de vista das experiências das mulheres, que é tomada como base para a crítica da teologia tradicional, fundada na razão e na abstração. Em geral, as docentes afirmam que a sua metodologia incorpora o “cotidiano da vida, a emoção, a pessoa inteira (corporeidade)”, de modo que incorporar a pessoa inteira tem a ver com o todo da vida e do cotidiano de um sujeito que tem uma corporalidade de “mulher”. Isso, de acordo com os estudos mais contemporâneos do feminismo, é um primeiro lugar de resistência política, dada a construção negativa em relação ao feminino. Segundo Spivak (1985), o corpo encarnado não é uma essência nem um destino biológico, mas, antes, é a própria localização primária no mundo, a própria situação na realidade. A ênfase colocada na encarnação ou incorporação, ou seja, na natureza situada da subjetividade, permite às feministas elaborarem estratégias destinadas a subverter os códigos culturais. Assim, aspectos que eram desqualificados para a produção do conhecimento, do ponto de vista masculino, agora se tornam argumentos políticos, que funcionam como contramemória na afirmação dos valores femininos, que parecem não só permitir a produção de um conhecimento situado a partir de uma experiência corporificada e encarnada, mas também de uma autoafirmação positiva de si como sujeito (mulher), em contínuo devir ou de um “tornar-se”, que aponta para um processo de ressignificação que começou e que está sempre se produzindo (BRAIDOTTI, 2004). E, nessa luta por emancipação, elas não só se referem às experiências individuais, mas falam de um conjunto de mulheres que fazem as mesmas experiências. Nesse sentido, Bach (2010) tem afirmado que as mulheres não só devem conhecer as suas próprias experiências, mas também as das outras mulheres em suas circunstâncias de vida, porque isso se configura como um dos caminhos para explicar criticamente a ausência das mulheres dentro dos processos de construção do conhecimento.
Apesar das polêmicas históricas e acadêmicas que envolvem o tema das diferenças7, no universo do saber teológico, marcar a diferença parece se tornar “um projeto político que fortalece o processo do devir sujeito feminino, mesmo que no interior do pensamento feminista essa perspectiva ocupe um lugar de tensão conceitual” (BRAIDOTTI, 2004, p. 89). Contudo, uma das formas de sair dessas contradições e dos processos essencializadores, segundo Braidotti (2004), é a corporificação ou a encarnação radical e a mimese estratégica, ou seja, a reelaboração das contradições como um “reelaborar desde atrás uma estratégia de desconstrução que também permite redefinições temporárias, combinando a fluidez e os perigos de um processo de mudança que possui o mínimo de estabilidade ou de ancoragem” (BRAIDOTTI, 2004, p. 86), cuja ancoragem está no significado tradicional do signo “mulher”. A partir dessas concepções, podemos pensar que a reiteração constante de um discurso que dá ênfase aos valores femininos em suas experiências incorporadas, como elementos significativos na produção de uma teologia alternativa, funciona na forma de uma repetição mimética que possibilita a desconstrução de um simbólico feminino pejorativo, ainda vigente nas estruturas acadêmicas do saber teológico, para um “tornar-se” sujeito de saber e de poder. Ou, nas palavras de Braidotti (2004), trata-se de um projeto político que “busca reivindicar e se apropriar da noção de diferença para libertá-la de seus vínculos com o poder da dominação e da exclusão, mediante a estratégia de repetição mimética e criativa, a partir da experiência de ações encarnadas em um contexto específico” (BRAIDOTTI, 2004, p. 89). Essa ação, indubitavelmente, pode ser traduzida como a produção de uma ética de si, no sentido de Foucault (2007), ou uma agência ética, na concepção de Butler (2009), porque se institui na interação com o normativo da ordem simbólica masculina, que produziu a “mulher” como um ser não inteligível e desqualificado.
Mesmo que as docentes discursivamente considerem a teologia feminista como “um novo paradigma” ou uma contribuição inovadora e importante para o universo desse saber, de maneira paradoxal, na prática, ela continua sendo marginal, porque não é assumida oficialmente pelas estruturas acadêmicas, como se pode ler na narrativa de Hulda (64 anos).
Eu, pessoalmente, considero a teologia feminista como parte de um novo paradigma, porém a instituição que mantém o saber teológico, ou seja, faculdades de teologia, institutos de teologia e seminários consideram a teologia feminista um apêndice ou um surto de moda das mulheres. No Brasil, em geral, eles pouco valorizam. Não é a mesma coisa como nos Estados Unidos, por exemplo. No Brasil, eu não vejo, do ponto de vista das instituições, do ponto de vista teológico, nenhum grande interesse em incrementar o aprofundamento e a pesquisa em teologia feminista. O que existe é esforço das próprias mulheres; por exemplo, na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) há o esforço das mulheres que tem a Revista Mandrágora. Em São Leopoldo, na EST (Faculdades EST - Escola Superior de Teologia), também há um grande esforço das mulheres luteranas, o que é admirável, mas é porque elas querem, porque as instituições em si não garantem.
A reflexão de Hulda é contundente. Entretanto, todo o esforço que elas fazem para que a teologia feminista seja reconhecida e saia da marginalidade, inclusive por meio da publicação e circulação em revistas próprias, permite-nos afirmar que, para além da contribuição metodológica que ela traz para o campo do saber teológico, ela é, para essas mulheres, a experiência de um agenciamento de si. Isto é, de um sujeito que na posição de “mulher” pode falar, escrever, pensar e tem algo a dizer para a teologia, mesmo que esse saber encontre resistência de seus pares.
Um “modo diferente” de ensinar teologia
As docentes entrevistadas não só dão grande importância às “experiências situadas das mulheres”8, como parte da metodologia que usam para produzir teologia, mas também afirmam que adotam uma didática diferente daquela assumida pelos homens, na ação de ensinar teologia, fato que, na visão delas, também as torna valorizadas como profissionais do saber, como se lê no relato de Lídia (39 anos): “As mulheres conseguem tornar a teoria mais vivencial, mais experiencial; conseguem tocar mais na vida”. Lídia coordena os cursos de teologia popular em diferentes cidades do seu estado. Em sua experiência interativa com os discentes, ela mencionou que eles avaliavam positivamente as aulas ministradas pelas mulheres e até pediam a presença delas na docência desses cursos. Para ela, isso se justifica porque as mulheres, em geral, ouvem mais e utilizam uma metodologia mais participativa e articulada com a vida, enquanto os homens, de modo geral, centram sua preocupação no dar conta das teorias ou, nas palavras de nossa interlocutora, “de despejar teorias” em um curso que foi construído dentro de uma metodologia popular.
Então, essa articulação, com vivência e experiência, acho que isso é um jeito nosso de fazer as coisas. Então, nosso jeito certamente vem ajudando a trazer mudanças no espaço da teologia. A diferença aparece na questão metodológica, didática, no jeito de fazer o processo e, eu acho que é isso que as pessoas querem dizer quando avaliam bem o trabalho das mulheres e, gostam da presença delas nas disciplinas. (Lídia, 39 anos)
No seu discurso, Lídia parece apontar um jeito especificamente feminino e universal de ensinar, como se fosse um privilégio da “diferença”, quando, na verdade, trata-se de um aprendizado, ou seja, esse “jeito feminino” foi internalizado e naturalizado nas mulheres por convenções culturais de gênero. Entretanto, no processo do vir a ser ou de se legitimarem como profissionais do saber teológico, essa constante reiteração de si e da importância “do jeito feminino de ensinar”, que se contrapõe a um “jeito masculino”, aparece como uma estratégia política que produz um significado positivo para a diferença. Ou seja, trata-se da afirmação do feminino e do seu agenciamento; uma genealogia como contramemória, porque politicamente reafirma a posição de um novo sujeito que é “mulher” e que, até então, era “subalterno”. Contudo, um sujeito que se encontra sempre em processo de devir.
No conteúdo das narrativas das interlocutoras é possível identificar, ainda, que esse “jeito diferente de ensinar e produzir saber” não é entendido como uma questão ontológica de uma suposta natureza feminina, mas se vincula à experiência como vivência e aprendizado, ou seja, uma experiência que é também uma construção social e cultural. “As mulheres trazem tanto as experiências quanto as habilidades aprendidas ao longo de suas vidas, construídas ao longo de suas histórias” (Noemi, 46 anos). Segundo Lauretis (1994), essa experiência é social porque se trata de um complexo de hábitos, disposições e percepções que se engendram por meio de uma interação de sentido do mundo subjetivo com a realidade social, que faz com que elas percebam como experiências específicas do universo feminino.
A noção de experiência das mulheres como disposições e percepções internalizadas por meio da interação com os mandatos sociais pode ser evidenciada, de maneira clara, no conteúdo da narrativa de Ester, que também assinala que a categoria de experiência não é algo específico da teologia feminista9. Contudo, ela assegura que foram as mulheres que mais bem souberam traduzi-la para os processos de construção do saber. Isso porque a potencializaram em suas práticas cotidianas, cuja percepção também é compartilhada no conjunto dos estudos feministas10.
Temos que reconhecer que essa coisa da experiência não veio só da teologia feminista; vem do fazer teológico que se desdobrou nos últimos tempos, mas ninguém como as mulheres conseguiu fazer isso. Os homens falam da experiência, mas falam ainda academicamente das experiências. Já as mulheres falam dessas coisas, das suas vivências ou do seu sentir, do modo de viver a espiritualidade, do seu sentir Deus, o seu modo de sentir as outras pessoas, as dores, os sofrimentos, os sonhos os projetos, isto é, as mulheres têm um trato bem diferente com essa questão da experiência. Elas possuem outra sensibilidade, que, acho, não é uma questão ontológica, mas cultural, no sentido de que é a própria vivência. Nós somos constituídas desse jeito, no ter que nos desdobrar de múltiplas formas para lidar com a vida. E, essa situação que nos oprime, nos coloca em determinados espaços na condição de mulher, também nos enriquece em capacidade, nos potencializa para outro trato com o cotidiano, com as experiências com que traz chaves de leituras para o dia a dia. A gente enxerga coisas que os homens não enxergam, a gente sente coisas que os homens não sentem. A nossa corporeidade, a trajetória de vida, tudo vai junto. A gente integra tudo isso para fazer teologia. (Ester, 51 anos, grifo da autora).
A fala de Ester, narrada no plural, deixa bem evidente o vínculo político das docentes com o Feminismo da diferença, fundado em uma concepção binária de gênero. Há uma sobrevalorização das experiências das mulheres, como um elemento importante para a ação de ensinar e produzir teologia, que parece inverter a hierarquia de gênero. Entretanto, trata-se de invocação pública em favor do sujeito “mulher”, na forma de um “essencialismo positivo”, no sentido de Spivak (1989) apudCosta (2002). Costa (2002) argumenta que, dependendo do contexto social, sobretudo se este for marcado por uma poderosa estrutura masculina, “o essencialismo positivo ou estratégico é uma posição que as feministas devem arriscar, embora ‘conscientes quanto aos limites do (auto)posicionamento - individual e coletivo’ -, de forma que este posicionamento possa ser estrategicamente efetivo” (COSTA, 2002, p. 72)11 para a vida e ação das mulheres.
Outra questão que se pode ler na narrativa de Ester é que as docentes compartilham e conectam-se em experiências históricas de submissão e de opressão, ditadas por práticas discursivas e convenções sociais normativas. Paradoxalmente, essas experiências agora tornam-se um dispositivo de poder a seu favor, no sentido de marcar o lugar de saber por um modo diferente de percepção e de ação, que elas reiteram como importante para esse universo de saber. Ou compreendendo no sentido de Judith Butler (2009), observa-se que nas mesmas dinâmicas de poder que produzem a submissão e limitam as possibilidades da subjetividade das mulheres também se encontram a condição de sua potência/agência. Na mesma perspectiva, em Braidotti (2004), essa produção positiva de si e de seu potencial de sujeito aparece ancorada em um imaginário normativo que produziu a diferença sexual ou a identidade feminina como negativa e inferior. Os mesmos significados de gênero que assujeitaram as mulheres são transcendidos e positivados por elas mesmas, isto é, a diferença sexual é tomada como projeto político que potencializa simbolicamente o feminino (definido como “o outro do outro”) e converte-se em uma plataforma de ação política para e pelas mulheres. Isso parece apontar que a produção ética de si, ou da subjetividade das mulheres docentes, ocorre por meio desse paradoxo ou tensão de estar dentro e ao mesmo tempo fora das dinâmicas de gênero da ordem simbólica masculina. É um sujeito “mulher” em um processo permanente de constituição, que se situa em uma posição autocrítica, distanciada da ideologia de gênero, mas não imune a ela (LAURETIS, 1994)12.
Agência e produção de novos sentidos para o feminino
A partir do que refletimos anteriormente, é possível afirmar que as docentes, ao se constituírem sujeitos do ensino e da produção teológica, assumem um importante papel de agência no universo da teologia. Isso porque elas ressignificam conteúdos e representações simbólicas, colocam a corporeidade e outros valores no centro das discussões teológicas, que até o presente não haviam sido mencionados pelos discursos tradicionais e masculinos. Nesse sentido, as docentes compartilham e registram o valor dos efeitos de sua agência também na vida dos discentes, situação que se observa em quase todas as narrativas e pode ser representada na fala de Miriam (66 anos).
Eu acho que o meu trabalho, a minha reflexão e produção contribuíram para ajudar a pensar diferente. Às vezes, os alunos ou aqueles que escutam minhas palestras ou aulas se espantam, né? Espantam-se no sentido, digamos, que eles ganham uma consciência mais ampla e diferente sobre essas questões bíblicas e teológicas, com novas perspectivas.
Tais práticas parecem, sim, influenciar muito mais as relações que elas estabelecem com seus alunos do que com seus pares docentes ou com a estrutura acadêmica. Contudo, como já dissemos, funcionam muito mais como um dispositivo de poder do devir sujeito “mulher” que está colocado em um lugar de futuro, mas que move as ações do presente dessas docentes. Assim, a reiteração de uma autopercepção positiva de si e de sua ação, que é compartilhada entre elas, tende a materializar ou construir um imaginário positivo sobre feminino e sobre a importância de sua ação para o universo acadêmico da teologia.
A presença de mulheres nesse universo de saber tende a gerar tensões com os sujeitos que tinham uma posição garantida e legitimada. Tratando-se de um lugar em que elas estiveram por muito tempo ausentes, certamente a sua emergência, como sujeito feminino de saber teológico, assume um caráter político, por ressignificar práticas acadêmicas e deslocar dinâmicas históricas de poder, como podemos ler na narrativa de Hulda.
A presença das mulheres trouxe algumas tensões que provocam a teologia. Eu acho que as tensões são salutares, né? Eu acho que a primeira coisa positiva é que passamos a ser incomodativas. Antes, a gente colocava “panos quentes” nas situações, mas agora a gente passou a incomodar e, pelo menos, eles estão mais cuidadosos e atentos, porque nós existimos publicamente. Acredito que isso já é uma mudança significativa (Hulda, 64 anos).
Hulda assume a posição de sujeito reflexivo. Ela faz a memória de um passado e dos significados de gênero que elas agora estão produzindo por meio da inserção em um campo de saber masculino. São deslocamentos espaciais e simbólicos, como possibilidades de agenciamento, que as afastam das convenções sociais demarcadas para as mulheres. Contudo, o “existir publicamente”, de que fala Hulda, nem sempre pode significar reconhecimento, assim como nem sempre “incomoda”, porque depende da posição que essa docente assume, de modo que uma luta pela inserção de mais mulheres, em termos de participação equitativa nos quadros da docência, nem sempre provoca mudanças nas relações de gênero e na construção de práticas inovadoras. Isto é, mais do que números, faz-se necessária a presença qualitativa de mulheres que tenham consciência das dinâmicas de gênero e das estruturas de poder operantes em uma estrutura acadêmica masculina e hierárquica, e coragem de assumir a agência, efetuando certos rompimentos ou mudanças, cuja questão é percebida na narrativa de Raquel.
Eu considero que a entrada da mulher por si só não traz mudanças nas relações de gênero, ou seja, depende da visão dessa mulher, dessa profissional, e não só o fato de ela ser mulher. Isso porque ela pode ser mulher e ter uma postura masculina no jeito, no modo de pensar e agir para poder garantir um espaço ou para galgar em determinados lugares, que, do contrário, não conseguiria. Então, não é o fato ser mulher que vai fazer essa diferença [...]. Para mim, depende muito da visão dessa mulher, do modo como ela se posiciona aí. [...] Quando essa mulher tem uma consciência de gênero, faz toda a diferença aí, porque ela vai lutar por relações melhores para todas, mas essa é uma diferença interessante (Raquel, 49 anos).
Se, por um lado, as docentes entrevistadas afirmam fazer a diferença pelas práticas que inauguram no universo do saber teológico, paradoxalmente, mesmo que Raquel não expresse de maneira direta, ela deixa a entender que nesse lugar há, também, docentes que reproduzem as práticas e os discursos masculinos, como estratégia de vir a ser sujeito reconhecido ou de ocupar lugares de visibilidade com mais facilidade. Isso, talvez, nos remeta a outros espaços tradicionalmente masculinos, que hoje são ocupados pelas mulheres. Certamente, só a sua inserção não significa processos de mudanças, mas a condição de possibilidade, desde que elas problematizem as relações de gênero e sejam capazes de assumir uma consciência crítica na relação com os dispositivos de poder que, sutilmente, circulam nesses espaços, nas relações e na própria subjetividade, e uma vontade política para propor novas práticas. Porque, do contrário, a tendência seria a reprodução da ordem social masculina, incorporada como efeito dos discursos e das práticas hegemônicas, que passariam a orientar a percepção de mundo e a ação que, na concepção de Bourdieu (2003), trata-se de um habitus internalizado. Ao agir em conformidade com a lógica masculina de gênero, as mulheres tendem mais facilmente a garantir um lugar ou uma posição de poder no campo em que atuam. Tal postura, no caso do universo da teologia, não gera as mudanças necessárias para a emancipação e o empoderamento do sujeito “mulher”, mas, antes, reproduz as mesmas dinâmicas de poder, que os efeitos de discursos, práticas e representações simbólicas de gênero, historicamente, produziram no imaginário das pessoas e nas práticas institucionais. Certamente, é nesse sentido que Raquel enfatiza a importância de certa sensibilidade e consciência em relação às dinâmicas de gênero para que a ação das docentes faça a “diferença” nesse lugar de saber. Desse modo, concordamos com Braidotti (2004), para quem não basta incorporar mulheres em alguns lugares, mas que, ao assumir tais lugares, seja possível ajudar a redefinir as regras do jogo, a fim de estabelecer uma “diferença” e fazer com que essa diferença seja valorizada.
Das 14 docentes entrevistadas, 13 tinham um discurso crítico e pareciam assumir uma postura consciente de que as identidades e as relações de gênero são construções socioculturais, resultado das representações simbólicas e das práticas discursas e institucionais de uma ordem social masculina. Em perspectiva bourdieusina, poder-se-ia dizer que essas docentes conheciam as regras do jogo que operavam no campo em que optaram por “jogar”. Contudo, estavam dispostas a não manter a mesma ordem do “jogo”, mas usar de certas “regras” existentes para jogar em outra direção. No sentido das teorias butleriana e foucaultiana, pode-se compreender que essas docentes são sujeitos instituídos pelo poder, mas também instituintes, na medida em que jogam com esse poder no desejo de potencializar outras relações de gênero e produzir novos significados, que dão caráter de positividade à identidade feminina. Trata-se de uma agência que desestabiliza o poder constituído produzindo novos significados para o feminino. Butler (2009) já afirmava que a possibilidade da agência, entendida como capacidade de ação, encontra-se na sujeição e na subordinação, ou seja, a mudança se dá dentro das dinâmicas do poder, por meio da reiteração de novos significados que produzirão novos efeitos. Nessa compreensão, pode-se pensar que as docentes, ao interagir com os poderes normatizadores, criam as suas próprias condições e possibilidades de agência e de afirmação positiva de si, seja por um “novo modo de produzir e ensinar teologia”, seja por outras práticas e iniciativas que elas inauguraram no campo do saber teológico, sobre as quais tratamos, com mais detalhes, em nosso estudo de tese, já mencionado neste trabalho, e que não cabe ao recorte que aqui fizemos.
À guisa de conclusão
Neste trabalho tratamos da docência feminina em um universo de saber marcado por práticas, discursos e representações simbólicas que, ao longo de muitos séculos, funcionaram como uma tecnologia social de gênero, legitimando a ação exclusiva do sujeito masculino e a inferioridade feminina para ações intelectuais e lugares de liderança no universo eclesial. Apesar das recentes mudanças socioculturais e institucionais que impulsionaram o acesso de mulheres no campo acadêmico da teologia, evidencia-se, ainda, uma representação reduzida da docência feminina.
Estando nesse lugar, elas precisam provar a todo o momento que são capacitadas para as funções acadêmicas. Faz parte desse processo de devir sujeito à construção de argumentos de valorização de sua ação e de sua contribuição para o universo do saber teológico, cuja reiteração acaba produzindo deslocamentos subjetivos, em uma espécie de nomadismo. Isto é, da passagem de um feminino desqualificado para um feminino que pode falar, refletir e produzir saberes. Trata-se de uma reinvenção de si, da produção de uma ética de si mesma ou de uma forma de emancipação feminina em relação aos códigos normativos e simbólicos do catolicismo tradicional, em que elas mesmas haviam se aprisionado.
É nessa direção que compreendemos as narrativas das docentes entrevistadas, quando enfatizam que elas ensinam e produzem de um “modo diferente” de seus pares. Nesse caso, isso não parece ser uma postura essencializadora, mas parte de uma estratégia política de afirmação de si e de positivação da feminilidade que foi construída de modo pejorativo, durante um longo período, pelos discursos da teologia tradicional. Nesse sentido, concordamos com Spivak (1985) que, em estruturas poderosas, perpassadas por representações simbólicas, que produzem hierarquias de gênero, ainda parece importante uma afirmação positiva da diferença sexual, que negue o conteúdo substantivo de um sistema simbólico negativo. Isto é, um feminino que resiste a uma determinada definição e encarna novas possibilidades de alteridade, que aparece também em sua forma múltipla.
Assim, o “novo modo de produzir” que as docentes dizem ter inaugurado no interior de uma estrutura masculina, como enfatizamos no corpo deste artigo, refere-se à crítica a uma teologia abstrata e parcial, que fora produzida na ótica da subjetividade masculina, e à ressignificação do sistema simbólico dos discursos tradicionais. Essa desconstrução se realiza por meio da inserção de metodologias e de categorias distintas que incorporam o cotidiano da vida, a emoção, a pessoa inteira (corporeidade). A incorporação da experiência situada de um sujeito que tem um corpo de mulher, segundo os estudos feministas, é um primeiro lugar de resistência política. Assim, aspectos que antes eram desqualificados para a produção do conhecimento agora se tornam argumentos políticos, que funcionam como contramemória na afirmação de si e dos valores femininos. Desse modo, as docentes não apenas produzem um conhecimento situado a partir de uma experiência corporificada e encarnada, mas também se afirmam positivamente como sujeito (mulher), que se coloca em um processo contínuo de “devir”, no sentido da teoria de Braidotti (2004). Pode-se dizer que a teologia que elas produzem e que nomeiam “feminista”, além de dar contribuição metodológica para o campo do saber teológico, traduz-se em uma experiência de agenciamento de si. Isto é, de um sujeito que, na posição de “mulher”, pode falar, pode escrever, pode pensar e tem algo a dizer para a teologia.
Este estudo também evidencia que as teólogas produzem um discurso de que ensinam de “modo diferente”, baseadas na percepção que vem da interação com os discentes. Ou seja, elas reiteram a valorização de atributos considerados femininos, que lhes permitem uma didática mais participativa e próxima da “vida” e do cotidiano. Valores que não são percebidos como constitutivos de uma ontologia feminina, mas de um aprendizado que vem das circunstâncias e papéis socioculturais que se impõem para o universo feminino. Desse modo, podemos considerar que a reiteração de si e da importância “do jeito feminino de ensinar” se constitui uma estratégia política que produz um significado positivo para a diferença, funcionando como contramemória a um modelo de feminino que era tido como desqualificado e reafirmando politicamente a posição da “mulher” como sujeito de saber no universo da teologia. Dessa forma, os atributos de gênero, que antes assujeitavam e desqualificavam as mulheres para atividades intelectuais, agora são transcendidos e positivados por meio de práticas situadas, ou desde as raízes corporais da diferença sexual. Nesse caso, corroboramos com a feminista Rosi Braidotti (2004) que a diferença sexual é tomada como projeto político que desconstrói o simbólico de um feminino pejorativo e o potencializa como uma plataforma de ação política para e pelas mulheres, que se torna significativo dentro de contextos como as instituições teológicas católicas.
Finalmente, é possível afirmar que as docentes, por meio da resistência aos modelos de feminilidade tradicional e de práticas situadas, constroem suas possibilidades para um agenciamento de si, produzindo novos significados que, consequentemente, desestabilizam o sistema simbólico de gênero da ordem social masculina, que ainda operam nas instituições de ensino da teologia católica.
Considerando uma história de discriminação sexista e de ausência nos lugares da produção e do ensino da teologia, bem como os desafios que elas enfrentam no momento presente, pode-se dizer que as práticas de agenciamento que elas produzem, por menor que sejam, tornam-se importantes, porque estabelecem certa autonomia em relação a uma estrutura hierárquica e masculina. Isso nos leva a pensar que o “revolucionário” não se encontra só nos grandes processos de transformação social que se concretizam no tempo e no espaço, mas também na produção de novos significados de gênero ou nas pequenas mudanças que ocorrem nas microrrelações sociais, que são tecidas no cotidiano da vida, como um modo novo de viver, de se produzir e de se reconhecer sujeito.
Referências
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O artigo é um recorte da tese de doutorado intitulada Relações de gênero, subjetividades e docência feminina: um estudo a partir do universo do ensino superior em teologia, com fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI).
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2.
Dados do Censo sobre o Ensino superior de 2005 (BRASIL, 2005), coletados em 93 instituições (presbiterianas, luteranas, metodistas e católicas). Dessas instituições, aproximadamente a metade era de orientação católica.
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4.
Para Deifelt (2003) e Gebara (2008), a hermenêutica feminista coloca as experiências das mulheres, em suas diversidades de raça, tradição, cultura e classe, para dento da reflexão teológica, o que torna a teologia feminista um saber sempre parcial, datado, contextualizado, ademais de ser sexuado racificado e socialmente classificado.
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5.
Para aprofundar essa questão, consultar Furlin (2014).
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7.
Segundo Rosi Braidotti (2004), o conceito de diferença tem suas raízes no facismo europeu, colonizado e adotado por modos de pensamentos hierárquicos e excludentes. Levando em conta que na história a “diferença” se fundamentou sempre em relações de dominação e exclusão, “ser diferente de” chegou a significar “ser menos que”, “valer menos que”. Em consequência, a diferença adquiriu historicamente conotações essencialistas e letais, o que, por sua vez, construiu categorias inteiras de seres descartáveis, isto é, igualmente humanos, mas levemente mais mortais do que aqueles que não estão estigmatizados como “diferentes” (BRAIDOTTI, 2004, p. 89). De modo que, para a autora, a diferença precisa ser repensada para não deixar nas mãos de intepretações facistas, sobretudo quando essa categoria volta ser central nos discursos da globalização, em cujo contexto se produzem muitas “diferenças”.
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8.
Apesar de, às vezes, essa afirmação aparentar ter uma conotação universal, convém dizer que compartilhamos da concepção de que não existe uma experiência das mulheres universal, porque, além de as mulheres serem diferentes entre elas, uma única mulher agrega em si mesmo múltiplas experiências que vem do seu cotidiano e das diferentes posições identitárias que assume. Em Braidotti (2004), essas diferenças múltiplas estão contidas na diferença sexual, de modo que não apagam a identidade sexual. Ela reivindica essa posição identitária como um fator importante na política de afirmação do sujeito individual e coletivo “mulher”.
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10.
O estudo de Bach (2010) tem mostrado claramente a questão que estamos pontuando aqui.
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11.
Para Spivak (1989) apudCosta (2002, p. 73), esse posicionamento “oferece uma percepção mais prática do pós-estruturalismo do que aquele tipo de metafísica negativa, sempre nervosa, com a possibilidade do essencialismo estar de tocaia pelos cantos”.
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12.
Lauretis (1994) denomina esse sujeito de excêntrico.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Abr 2018 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2018
Histórico
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Recebido
12 Out 2017 -
Aceito
18 Dez 2017