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Repensando o social na Educação Física a partir das contribuições da Teoria Ator-Rede e de Bruno Latour

Rethinking the social in Physical Education based on the contributions of the Actor-Network Theory and Bruno Latour

Repensar lo social en Educación Física a partir de los aportes de la Teoría Actor-Red y Bruno Latour

RESUMO

O presente artigo analisou possíveis contribuições da Teoria Ator-Rede (TAR) e da obra de Bruno Latour para se pensar o social na Educação Física. Como metodologia, foi feito um estudo teórico, de característica exploratória, de parte da obra latouriana e da TAR, bem como de textos que tratam do social na Educação Física, para uma reflexão sobre possíveis contribuições da TAR em direção a uma guinada do olhar analítico sobre o social na Educação Física. A partir de nossa análise, constatamos que a TAR e a obra latouriana podem trazer uma análise dinâmica e menos determinista sobre as associações que compõe a Educação Física, reconhecendo os diversos participantes heterogêneos (humanos e não-humanos) que compõe as redes de associações constituintes desta área.

Palavras-chave:
Teoria Ator-Rede; Educação Física; Sociologia; Bruno Latour

ABSTRACT

This article analyzed possible contributions of the Actor-Network theory (ANT) and the work of Bruno Latour to think about the social in Physical Education. As a methodology, a theoretical study was made, of exploratory characteristic, of part of the Latour’s work and ANT, as well as texts dealing with the social in Physical Education, for a reflection on possible contributions of ANT towards a turn of the analytical view on the social in Physical Education. From our analysis, we found that ANT and Latour’s work can bring a dynamic and less deterministic look at the associations that compose Physical Education, recognizing the various heterogeneous participants (human and non-human) who compose the networks of associations that are constituent of this area.

Keywords:
Actor-Network Theory; Physical Education; Sociology; Bruno Latour

RESUMEN

Este artículo analizó las posibles contribuciones de la teoría Actor-Red (TAR) y el trabajo de Bruno Latour para pensar sobre lo social en Educación Física. Como metodología, se realizó un estudio teórico, de carácter exploratorio, de parte del trabajo Latouriana y TAR, así como textos que tratan de lo social en Educación Física, para una reflexión sobre posibles aportes de TAR hacia un giro de la visión analítica sobre lo social en Educación Física. A partir de nuestro análisis, encontramos que la TAR y el trabajo de Bruno Latour puede aportar una mirada dinámica y menos determinista a las asociaciones que componen la Educación Física, reconociendo los diversos participantes heterogéneos (humanos y no humanos) que componen las redes de asociaciones que son constitutivas de esta área.

Palabras clave:
Teoría Actor-Red; Educación Física; Sociología; Bruno Latour

INTRODUÇÃO

A partir da década de 1980, ocorre na Educação Física um movimento de pesquisas associadas a referenciais das ciências sociais e humanas, um período que notadamente trouxe novas formas de reconhecimento epistemológico à Educação Física e seus conteúdos. Este foi um movimento gerador de grupos opostos, de disputas que acabaram por modificar o pensamento da área sobre si e seus objetos de estudo (Daolio, 1997Daolio, J. Educação Física brasileira: autores e atores da década de 80 [tese]. Campinas: Faculdade de Educação Física, UNICAMP; 1997. http://dx.doi.org/10.47749/T/UNICAMP.1997.114837.
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).

Esta aproximação da Educação Física com as ciências sociais acompanhou um movimento mais amplo de toda a área de educação (Caparroz e Bracht, 2007Caparroz FE, Bracht V. O tempo e o lugar de uma didática da Educação Física. Rev Bras Ciênc Esporte. 2007;28(2):21-37.), que visava se destituir de um projeto de educação tecnicista e autoritário, instituído especialmente a partir da ditatura militar de (1964-1985). Este movimento serviu também para a Educação Física questionar sua inserção no meio escolar. Como aponta Bracht (1999)Bracht V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cad CEDES. 1999;19(48):69-88. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005.
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, diferentes fluxos epistemológicos aportaram na área, com destaque para as teorias críticas e humanistas.

Mais ou menos ao mesmo tempo que a tradição educacional e da Educação Física brasileira se desenvolvia à luz de uma sociologia crítica, nos EUA e na Europa, a partir dos Estudos Sociais da Ciência da Tecnologia, Bruno Latour e colaboradores desenvolviam uma outra proposta de abordar sociologicamente os fatos e o fazer científico que, por sua vez, se traduziu em uma teoria denominada por ele (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.) de sociologia associal, ou Teoria Ator-Rede (TAR). Segundo Latour (2012)Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012., a TAR permite abordar fenômenos híbridos (que não se situam apenas no polo da natureza ou no polo da sociedade ou da técnica) – e aqui podemos considerar os objetos de estudo e intervenção da Educação Física, como o corpo e o movimento humano, de forma não dualista, visando compreender como eles são constituídos em rede, por agências múltiplas, sem a necessidade de explicações abstratas apriorísticas.

Esta tradição sociológica, no entanto, ainda não aportou de forma expressiva nas áreas da Educação (Schlieck e Borges, 2018Schlieck D, Borges MK. Teoria ator-rede e educação: no rastro de possíveis associações. Revista Triângulo. 2018;11(2):175-98. http://dx.doi.org/10.18554/rt.v0i0.2984.
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) e da Educação Física1 1 Em função de ainda não haver estudos sobre a produção em Educação Física e TAR, fizemos um levantamento no buscador Google Acadêmico, com as palavras chaves “Educação Física”; “Teoria Ator-Rede”; “Bruno Latour”, em janeiro de 2022, sem delimitação temporal e considerando apenas resultados em língua portuguesa. Foram encontrados apenas quatro artigos diretamente relacionados à Educação Física, a saber: Ribeiro et al. (2017), no qual os autores tratam da educação ambiental na disciplina de esportes de aventura em um curso de Educação Física, sob a perspectiva da TAR (esse texto apareceu duas vezes em nossa pesquisa, sendo a segunda uma apresentação em congresso no ano de 2018); Pacheco et al. (2020), as autoras falam sobre suas experiências com pesquisas utilizando contribuições dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia (local de sistematização da TAR); Martins (2019), texto no qual a autora trabalha com muitos conceitos da TAR para falar da relação do corpo com ambiente digital. , sendo pouco representativa na produção acadêmica dessas áreas. Tendo isto em vista, empreendemos um estudo da Teoria Ator-Rede, no intuito de compreender como esta aborda o social e suas possíveis divergências e contribuições para o fazer sociológico na Educação Física.

Partindo deste lugar analítico, visamos apresentar outra possibilidade de consideração sobre o social para a Educação Física, a partir das formulações de Bruno Latour e da Teoria Ator-Rede (TAR). Para tal, consideramos que a década de 1980 representa um marco para a produção acadêmica da área de Educação Física, devido à sua aproximação ao campo das humanidades (Daolio, 2004Daolio, J. Educação física e o conceito de cultura: polêmicas do nosso tempo. Campinas: Autores Associados; 2004.; Caparroz, 2005Caparroz FE. Entre a educação física na escola e a educação física da escola: a Educação Física como componente curricular. Campinas: Autores Associados; 2005.), e buscamos seguir o fluxo e os rastros das discussões emergentes daquela década – na qual muitos pesquisadores propuseram superar uma visão estritamente biológica e tecnicista da Educação Física no âmbito escolar – para tentar compreender de que forma o fazer sociológico se fez presente na área de forma hegemônica e, então, estabelecer uma reconsideração sobre o social à luz de alguns preceitos da TAR.

Assim, nosso objetivo neste artigo é analisar as visões sociológicas predominantes na Educação Física que emergiram, sobretudo, nas décadas de 1980 e 1990, identificando como o termo “social” foi incorporado e disseminado na área, para, a partir desta contextualização, lançar mão do olhar da TAR, apontando as diferenças e possíveis contribuições para se pensar o social na área de Educação Física a partir de seus pressupostos.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Procedemos um estudo teórico e exploratório da TAR, referenciados sobretudo em Latour (1994Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994., 2001Latour B. A esperança de pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: EDUSC; 2001., 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.), seguindo os rastros de algumas obras analíticas da produção do conhecimento em Educação Física nas décadas de 1980 e 1990, tais como: Bracht (1999)Bracht V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cad CEDES. 1999;19(48):69-88. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005.
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, Daolio (2004)Daolio, J. Educação física e o conceito de cultura: polêmicas do nosso tempo. Campinas: Autores Associados; 2004., Caparroz (2005)Caparroz FE. Entre a educação física na escola e a educação física da escola: a Educação Física como componente curricular. Campinas: Autores Associados; 2005., Souza e Marchi (2011)Souza J, Marchi W Jr. Por uma sociologia da produção científica no campo acadêmico da Educação Física no Brasil. Motriz. 2011;17(2):349-60. http://dx.doi.org/10.5016/1980-6574.2011v17n2p349.
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. Estas foram obras escolhidas como ponto de partida, por serem consideradas obras analíticas de estudos representantes de certa tendência “social” na Educação Física.

A partir dessas obras iniciais, o presente estudo chegou, principalmente, livros da Educação Física que surgiram em meados da década de 1980 e vão até o final da década de 1990, época de muita repercussão das ciências sociais e das humanidades em geral na Educação Física, em especial na literatura da área escolar.

Considerando as recomendações das obras inicialmente investigadas, chegamos ao seguinte corpus: “Educação Física cuida do corpo... e mente” (Medina, 1983Medina JPS. A Educação física cuida do corpo... e” mente”. Campinas: Papirus Editora; 1983.); “O que é a Educação Física” (Oliveira, 1983Oliveira VM. O que é educação física. São Paulo: Brasiliense; 1983.); “Educação Física Humanista” (Oliveira, 1985Oliveira VM. Educação física humanista. Rio de Janeiro: Shape; 1985.), “Educação Física no Brasil: a história que não se conta” (Castellani, 1988Castellani L Fo. Educação física no brasil: a história que não se conta. 18. ed. São Paulo: Papirus Editora, 1988.); “Educação Física progressista” (Ghiraldelli, 1988Ghiraldelli P Jr. Educação física progressista. São Paulo: Edições Loyola; 1988.); “Educação Física e aprendizagem social” (Bracht, 1997Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997.); “Metodologia do ensino da Educação Física” (Soares et al., 1992Soares CL, Tafarell CNZ, Varjal E, Castellani Filho L, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez; 1992.); “Educação Física: ensino & mudanças” (Kunz, 1991Kunz E. Educação física: ensino e mudança. Ijuí: Ed. Unijuí; 1991.). “Educação Física e sociedade” (Betti, 1991Betti M. Educação física e sociedade: a educação física na escola brasileira de 1º e 2º graus. Vol. 1. São Paulo: Movimento; 1991.).

No entanto, para além das obras indicadas acima, também analisamos obras posteriores a esse recorte temporal, como Kunz (2004)Kunz E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 6. ed. Ijuí: Editora Unijuí; 2004. e Betti et al. (2013)Betti M, Silva EG, Gomes-da-Silva PN. Uma gota de suor e o universo da educação física: um olhar semiótico para as práticas corporais. Kinesis. 2013;31(1):91-106., pois foram obras encontradas pelos autores e que também constituíram/constituem o entendimento do social na Educação Física.

Portanto, o presente artigo se caracteriza como uma pesquisa teórica e possui uma abordagem qualitativa, utilizando como instrumento de pesquisa fontes bibliográficas, livros e artigos científicos referentes à TAR e ao campo da Educação Física. De acordo com os objetivos, trata-se de um estudo exploratório, já que pretende trazer mais informações sobre o assunto (Prodanov e Freitas, 2013Prodanov CC, Freitas EC. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale; 2013.).

Através do estudo teórico, buscamos aproximar os conceitos da TAR e os escritos de Bruno Latour a área da Educação Física, a partir de uma revisão bibliográfica referente à TAR e de obras ligadas ao social, ou a sociologia, na Educação Física. Posteriormente contrastamos a visão sociológica presente na TAR com as principais visões encontradas nos textos e livros da área de Educação Física supracitados, e nos questionamos quais as diferenças e contribuições a TAR oferece para compreensão social na Educação Física.

BREVE APRESENTAÇÃO DA TEORIA ATOR-REDE

A TAR tem seus primeiros trabalhos publicados na década de 1980, visando compreender como as associações de humanos e não humanos (coisas, objetos e outros animais) interferem nos processos diários de construção do conhecimento científico, rompendo com alguns pressupostos da sociologia clássica, como o uso do social para explicar associações relacionadas ou decorrentes das interações humanas (Latour, 1994Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994., 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Hoje, a TAR se caracteriza como uma proposta teórico-metodológica capaz de analisar os mais diferentes tipos de associações que se formam no dia a dia, buscando observar o que essas associações produzem e quais os participantes mais se destacam. Este estudo das associações e dos agrupamentos que compõem o social, na visão da TAR, busca valorizar a análise da ação e de seus atores. Na perspectiva da TAR, os atores que compõem o social podem ser humanos ou não humanos. Tudo que possua agência em uma rede, atuando nas associações e nas performances dos agrupamentos constituídos é considerado um agente, ou, nos termos da TAR, um actante (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Latour (2012)Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012. entende a TAR como uma sociologia das associações, que busca observar como o social é construído através das associações de diferentes actantes, sendo oposta as correntes entendidas, por ele, como sociologias do social, referindo-se à sociologia tradicional que é comumente utilizada e que, segundo ele, faz uso do termo social como uma entidade ou substância abstrata que fornece explicação para os acontecimentos (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Para incluir na análise os não humanos (objetos, coisas e outros animais), que haviam sido deixados de lado na análise do social, Latour busca respaldo na origem etimológica da palavra social, que no latim traz como significado associação (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.). Assim, o autor se empenha em garantir que, na visão da TAR, o social seja entendido como o resultado de inúmeras interações heterogêneas, composto por diferentes participantes que se associam, e não como algo que molda essas interações.

Na TAR, o termo actante define aquele que atua em uma associação, independentemente de ser um humano ou não. O actante pode ser um intermediário (quando apenas transporta a informação que entra em contato com ele), ou um mediador (quando modifica, distorce e traduz aquilo com que entra em contato) (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

O conceito de rede é importante para a TAR, ela não é algo fixo ou palpável, ela se faz e desfaz nas associações dos actantes, esse conceito é útil para o sociólogo observar quais actantes se conectam e quais modificações provocam no rumo das associações (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.). A mediação é como os actantes se mantem unidos interpretando interesses para estabilizar a rede e assim produzir algo novo – está estabilização é precária, pois os actantes sempre exercem forças uns sobre os outros. Esse movimento, desde o início da associação até a produção de algo, é entendido como uma translação, ou seja, ao mesmo tempo uma interpretação/tradução e um deslocamento (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

A EDUCAÇÃO FÍSICA E A SOCIOLOGIA DO SOCIAL

Nossa análise identificou e problematizou a visão sociológica predominante nas análises sobre Educação Física em alguns dos principais livros que tratam do social publicados nesta área, principalmente, nas décadas de 1980 e 1990. Em contrapartida às concepções sociológicas encontradas nessas obras, o presente texto traz outra possibilidade de leitura sociológica da Educação Física, a partir da TAR. No entanto, nosso intuito não é decidir qual a melhor perspectiva analítica, apenas buscamos na TAR contribuições que venham acrescentar possibilidades de pesquisa e de fundamentação teórica para nossa área.

Para Bracht (1997)Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997., a chegada das ciências humanas e sociais na Educação Física da origem ao que o autor chama de movimento ou Educação Física progressista, e se opõe a outras formas de fundamentar/legitimar a área que eram hegemônicas até então, sendo a mais proeminente a fundamentação ou concepção biológica do corpo e do movimento humano. Assim, buscando se opor a essa visão de Educação Física, os pesquisadores de orientação sociológica, ou ligados às ciências humanas, trouxeram o debate da construção histórica e social dos conteúdos da Educação Física, que deveriam ser trabalhados a partir desse aspecto (Bracht, 1997Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997.).

A respeito dos agrupamentos progressistas desta área, concordamos com Bracht (1996)Bracht V. Educação Física no 1º grau: conhecimento e especificidade. Rev Paul Educ Fís. 1996;(supl. 2):23-8. https://doi.org/10.11606/issn.2594-5904.rpef.1996.139640.
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quando este aponta que um dos eixos centrais de oposição ao paradigma da aptidão física, presente na Educação Física, se deu por meio da análise da função social da educação e da Educação Física em particular, como elementos constituintes de uma sociedade capitalista, portanto, marcada pela dominação e pelas diferenças de classe. Decorria daí, que:

O movimento instalado na EF brasileira a partir da década de 1980, ao menos em uma de suas vertentes (aquela que vai buscar fundamentação pedagógica na Pedagogia Histórico Crítica) [...] ao invés de controlar o movimento apenas no sentido mecânico-fisiológico, encarando-o agora como fenômeno cultural, pretende dirigi-lo a partir da “consciência crítica dos determinantes socio-políticos-econômicos que sobre eles recaem” (Bracht, 1996Bracht V. Educação Física no 1º grau: conhecimento e especificidade. Rev Paul Educ Fís. 1996;(supl. 2):23-8. https://doi.org/10.11606/issn.2594-5904.rpef.1996.139640.
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, p. 26).

No movimento progressista da década de 1980, muitos autores e autoras vão se destacar e produzir textos que ganham forte repercussão na área com questionamentos humanistas e reflexões críticas sobre como a Educação Física era pensada estritamente em termos biologistas e à luz de certa racionalidade cartesiana. No corpus investigado, Oliveira (1983)Oliveira VM. O que é educação física. São Paulo: Brasiliense; 1983. vai questionar o que é a Educação Física e traçar uma reconstituição histórica e das características dessa área, dentro de um referencial humanista. Já autores como Medina (1983)Medina JPS. A Educação física cuida do corpo... e” mente”. Campinas: Papirus Editora; 1983., Ghiraldelli (1988)Ghiraldelli P Jr. Educação física progressista. São Paulo: Edições Loyola; 1988., Castellani (1988)Castellani L Fo. Educação física no brasil: a história que não se conta. 18. ed. São Paulo: Papirus Editora, 1988., Bracht (1997)Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997. e Soares et al. (1992)Soares CL, Tafarell CNZ, Varjal E, Castellani Filho L, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez; 1992., irão trabalhar com uma reflexão baseada em teorias críticas. Importante destacar que esses autores e autoras possuem características especificas em seus trabalhos, porém, nos interessa aqui, o seu modo de abordar o social dentro das teorias críticas.

Autores como Kunz (1991)Kunz E. Educação física: ensino e mudança. Ijuí: Ed. Unijuí; 1991., Betti (1991)Betti M. Educação física e sociedade: a educação física na escola brasileira de 1º e 2º graus. Vol. 1. São Paulo: Movimento; 1991., fundem as influências críticas com outras teorias, não focando apenas na visão crítica dos conteúdos da Educação Física. Isto decorre de que, após um início mais homogêneo, em torno do questionamento crítico, o movimento progressista passa a receber mais influências das humanidades, ampliando seu escopo teórico-epistemológico (Bracht, 1999Bracht V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cad CEDES. 1999;19(48):69-88. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005.
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).

Ao observar as obras supracitadas, notamos que o discurso a respeito do social no âmbito da Educação Física, prevalente na década de 1980, contém traços da forma de pensamento e de produção científica sociológica típica daquilo que Latour denominou de “sociologia do social”, ou seja, trata-se do social que explica as associações já estabilizadas e que é focado prioritariamente na ação humana “intencional”. Nas palavras do autor:

Quando os sociólogos do social pronunciam as palavras “sociedade”, “poder”, “estrutura” e “contexto”, dão em geral um salto adiante para conectar um vasto conjunto de vida e história, mobilizar forças gigantescas, detectar padrões dramáticos a partir de interações confusas, ver por toda parte, nos casos à mão, ainda mais exemplos de tipos bem conhecidos e revelar, nos bastidores, algumas forças ocultas que manipulam os cordéis. (Latour, 1994Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994., p. 43).

Podemos observar um certo “determinismo” atribuído, por exemplo, ao esporte, ou ao poder ideológico do esporte em muitas passagens textuais das obras observadas. Em Bracht (1997)Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997., encontra-se a seguinte afirmação: “[...] assim, podemos dizer que a socialização através do esporte escolar pode ser considerada uma forma de controle social, pela adaptação do praticante aos valores e normas dominantes como condição alegada para a funcionalidade e desenvolvimento da sociedade.” (Bracht, 1997Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997., p. 61). Essa passagem mostra a preocupação com a forma com que a classe dominante controla e espalha seus valores através do esporte, moldando os praticantes às regras do jogo capitalista (Bracht, 1997Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997.).

A visão determinista a respeito da capacidade de alienação dos conteúdos da Educação Física era corroborada por Soares et al. (1992Soares CL, Tafarell CNZ, Varjal E, Castellani Filho L, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez; 1992., p. 70)

Sendo uma produção histórico-cultural, o esporte subordina-se aos códigos e significados que lhe imprime a sociedade capitalista [...] exigência de um máximo rendimento atlético, norma de comparação do rendimento que idealiza o princípio de sobrepujar, regulamentação rígida (aceita no nível da competição máxima, as olimpíadas) e racionalização dos meios e técnicas [...]

As imposições da classe dominante aparecem como centrais nos trabalhos críticos na área de Educação Física. Para Medina (1983)Medina JPS. A Educação física cuida do corpo... e” mente”. Campinas: Papirus Editora; 1983., os detentores do poder querem manter seus privilégios e para isso fazem uso do poder institucionalizado. Sendo assim, a escola e a aula de Educação Física sofrem diretamente essas imposições. Vejamos a passagem a seguir:

Vivendo numa sociedade repressiva, opressora e domesticadora, sabem que precisam lutar em defesa de uma educação que verdadeiramente vise à libertação. Entendem que, para tanto, não podem deixar de ser seres políticos. Enxergam os problemas de sua área à luz do seu contexto histórico-cultural (sociopolítico-econômico) mais amplo (Medina, 1983Medina JPS. A Educação física cuida do corpo... e” mente”. Campinas: Papirus Editora; 1983., p. 82).

Com base em Latour (1994)Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994., constatamos nas citações acima que a sociedade explica e impõe um estado de coisas e os professores, tendo por base a concepção crítica, são aqueles que devem lutar contra essa sociedade que reprime, oprime e domestica as pessoas.

Podemos notar nos textos analisados que, quando existe alguma proposta de enfrentamento do poder da classe dominante, ela é pautada na figura do professor enquanto detentor de um conhecimento diferenciado, como mostra a seguinte fala de Bracht: “[...] e o Educador representa o momento de ruptura em relação ao que é determinado socialmente, ao mesmo tempo em que define uma conduta para levar o educando a uma solidariedade consciente, vale dizer, ao sentido coletivo de sua formação” (Bracht, 1997Bracht V. Educação física e aprendizagem social. 2. ed. Porto Alegre: Magister; 1997., p. 68). Essa análise considera um social, primeiramente, pautado exclusivamente na relação entre humanos, tendo principalmente o professor como agente, e, em segundo lugar, como substância ou domínio abstrato que explica ou atua sobre outro estado de coisas.

Gostaríamos de destacar que o pensamento crítico na Educação Física é amplo, complexo e possui diferentes abordagens sobre o social na Educação Física. É importante destacarmos que muitos autores desse corpus foram dando densidade em suas produções e modificando diversos ‘entendimentos’ que tinham nas décadas de 80/90. Com o passar do tempo, como apontam Kirk et al. (2019)Kirk D, Almeida, FQ, Bracht V. Pedagogia crítica da educação física: desafios e perspectivas contemporâneas. Movimento. 2019;25:e25061. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.97341.
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, esse pensamento se articulou formando uma paisagem variada, difícil de ser enquadrada dentro de uma única definição, por isso o termo “teorias críticas”, no plural, tem sido reconhecido como um modo melhor de caracterização (Bracht e Almeida, 2019Bracht V, Almeida, FQ. Pedagogia crítica da educação física: dilemas e desafios na atualidade. Movimento (ESEFID/UFRGS). 2019;25,e25068. https://doi.org/10.22456/1982-8918.96196.
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). No entanto, conforme observamos, os modos de pensar o social ainda guardam foco nas relações humanas e na concepção de um social que molda relações, que exerce poder.

REPENSANDO O SOCIAL NA EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DA TAR

A TAR se diferencia da forma de compreender o social como “algo” ou “domínio” relativamente estável, que fornece explicações para algum outro estado de coisas, pois o social assim entendido não trata da multiplicidade de interações presentes nas nossas associações diárias. No âmbito da Educação Física, o social assim designado trata de relações de causa-efeito na socialização através do esporte e dos demais conteúdos da Educação Física. O “controle social” é o que entra nas associações de uma aula (como “causa”) e também o que se mantém nela (efeito), a menos que o professor interfira.

Partindo de nossa leitura da TAR, a afirmação de que o esporte em uma sociedade capitalista se traduz em forma de controle social não é equivocada, em termos generalistas, mas pode assumir uma posição demasiado vaga, aludindo a forças transcendentais, sem, no entanto, explicar como este controle social opera em grupos específicos. Nesses casos, não se detalha sob quais condições, premissas, fundamentos, ou a partir de quem e como isto se daria. Ou seja, como afirma Latour (2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012., p. 19), “o social parece diluído por toda parte e por nenhuma em particular”.

A TAR, ao contrário, propõe que o social, no caso de uma sociologia associal, não seja tomado como a explicação, mas como aquilo que deve ser explicado. A TAR busca observar o social, entendido como associações heterogêneas em formação e não um social pronto, sendo esse o resultado das interações (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Para a TAR, “[...] quando uma força manipula outra, isso não significa que seja uma causa a gerar efeitos; pode ser também a ocasião para outras coisas começarem a agir” (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012., p. 93). O que o autor depreende é que onde há forças agindo, há uma rede se formando, há movimento, e a partir de interações múltiplas e heterogêneas pode surgir algo novo, fora do previsto. Isso ocorre porque mediadores deslocam a informação que entra na rede. Se assumirmos esta forma de observação, poderíamos dizer que o esporte é um efeito de sua rede associativa, portanto, na sua associação com a materialidade da aula, com os alunos, com o professor e com o ambiente escolar, ou com apenas um desses, o ator-rede “esporte” se modifica, pois as relações ali feitas são únicas (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Podemos notar nos enunciados contidos nas obras analisadas e que tratam do social na Educação Física, que eles consideram o social como algo estabelecido, um social que explica. Já a TAR busca observar as associações em movimento que constroem o social fluido, mutável, que é resultado de múltiplas interações. Os actantes de uma rede são condicionados, mas o condicionamento não provém de forças sociais ocultas que apenas citamos como responsáveis por um estado de coisas. Na TAR, o que entendemos por social viaja por caminhos estreitos, que são as conexões entre actantes. Por isto, o analista precisa ir a campo e acompanhar esses processos de construção do social para poder constatar, ou não, a alienação dos sujeitos, por exemplo. Porque a alienação será construída em circunstâncias e com mediadores precisos e não de forma generalista e generalizada (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Portanto, através de nossas leituras, notamos que a influência sociológica presente na produção acadêmica da Educação Física escolar brasileira, advinda das décadas de 1980 e 1990, é fortemente caracterizada por aquilo que Latour (2012)Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012. veio a denominar de sociologia do social. Nas palavras do autor, “[...] não há nada de errado com esse emprego da palavra se ela designa aquilo que já está agregado, sem acarretar nenhuma declaração supérflua sobre a natureza do que se agregou [...]” (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012., p. 17). No entanto, o estudo da obra de Latour nos permite constatar que a contribuição da TAR para analisar a área reside na prática de outra forma de conceber a sociologia como ciência das associações, que busca analisar as associações em formação, levando em conta humanos e não humanos, natureza e cultura, a materialidade do socius, e não uma nova polarização.

Não obstante, o movimento de aproximação da Educação Física com as ciências sociais não é marcado apenas pela presença de influências sociológicas, trata-se antes de uma espécie de virada humanística na área. Entre as obras que se destacaram neste âmbito no corpus por nós analisado, temos também a perspectiva pedagógica crítico-emancipatória, proposta por Elenor Kunz (1991Kunz E. Educação física: ensino e mudança. Ijuí: Ed. Unijuí; 1991., 2004Kunz E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 6. ed. Ijuí: Editora Unijuí; 2004.) que assume muitas contribuições da teoria do agir-comunicativo de Habermas e da fenomenologia de Merleau Ponty. A influência fenomenológica aponta outra questão para o debate, a busca por uma alternativa na intencionalidade do sujeito, na sua subjetividade, opondo-se à frieza, à mecanização e ao reducionismo do movimento humano nas perspectivas “biopsicológicas” (Kunz, 2004Kunz E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 6. ed. Ijuí: Editora Unijuí; 2004.).

Importante destacar que a visão da TAR e de Latour se distância também da ideia fenomenológica. Para Latour (2001)Latour B. A esperança de pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: EDUSC; 2001., tal tendência é fortemente marcada por ideais modernos, especialmente pelo antropocentrismo. Esta forma de conceber da filosofia e das ciências modernas, muito focada no humano, abandona o rico mundo das coisas e sua influência em nossa história. O autor fala que “[...] o mundo real, conhecido pela ciência, fica todo entregue a si mesmo. A fenomenologia trata apenas do mundo-para-uma-consciência-humana [...]” (Latour, 2001Latour B. A esperança de pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: EDUSC; 2001., p. 21). Encontramos uma crítica de Latour quando o autor fala sobre possíveis aproximações da TAR com a fenomenologia, o autor destaca a forte tendência dessa corrente em considerar a ação humana e a intencionalidade em oposição ao efeito frio dos objetos. Isto, na TAR, está fora de questão, pois ela pensa nas capacidades de agência de humanos e não humanos de forma simétrica (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Poderíamos, seguindo o exemplo de Latour (2012)Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012., questionar se haveria uma instância estritamente subjetiva do movimentar-se. Pois, na visão da TAR, todo ser em ação é sempre coabitado por muitos outros agentes. Os actantes são postos em movimento por uma infinidade de associações, o ator-rede é o ponto de encontro de inúmeras mediações. Portanto, podemos dizer que, para essa teoria, o ser humano é posto em movimento por uma série de associações, ele é um ator-rede, um híbrido (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.). Igualmente, o movimento humano, poderíamos pensar, nem é estritamente objetivado, nem, tampouco, pura expressão da subjetividade. Antes, o se-movimentar, ao qual se refere Kunz (1991Kunz E. Educação física: ensino e mudança. Ijuí: Ed. Unijuí; 1991., 2004Kunz E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 6. ed. Ijuí: Editora Unijuí; 2004.), seria resultado de um ser-em-meio-ao mundo.

Gostaríamos de destacar que olhares não antropocêntricos, como o do professor Mauro Betti, ainda que por vias epistemológicas diversas aquelas da TAR, entende que: “O espaço de aula, de treino, de jogo, de prática, será entendido como partícipe da comunicação e formação do sujeito praticante” (Betti et al., 2013Betti M, Silva EG, Gomes-da-Silva PN. Uma gota de suor e o universo da educação física: um olhar semiótico para as práticas corporais. Kinesis. 2013;31(1):91-106., p. 104). Assim, fundamentado na semiótica de Charles S. Peirce, o autor trata de forma mais ampla a área através da significação, levando em conta o conceito de signo para designar todo tipo de actante que age no sentido de produzir novas associações ou mediações entre o mundo das coisas (ou dos objetos semióticos) e do humano que se movimenta.

Vale ressaltar, que a TAR pode ser enquadrada no que Law (2019)Law, J. Material semiotics. heterogeneities.net, 2019. Disponível em: http://www.heterogeneities.net/publications/Law2019MaterialSemiotics.pdf.
http://www.heterogeneities.net/publicati...
chama de semiótica material. Pois, assim como a semiótica peirceana, a TAR é uma teoria das relações associativas. A semiótica de Peirce investiga as relações associativas que constituem todo e qualquer fenômeno, em especial as linguagens, a partir dos signos e da ação dos signos. A TAR investiga as relações associativas que constituem o social a partir dos actantes e suas performances (Law, 2019Law, J. Material semiotics. heterogeneities.net, 2019. Disponível em: http://www.heterogeneities.net/publications/Law2019MaterialSemiotics.pdf.
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).

Não obstante, é importante frisar que Latour, apesar de ser influenciado por autores pragmatistas, mostra um distanciamento entre a TAR e a semiótica de origem europeia, por entender que elas focam apenas na linguagem como instância autônoma e suspendem os polos natureza e sociedade. Na visão de Latour (1994Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994., p. 64)

As semióticas oferecem uma excelente caixa de ferramentas para seguir de perto as mediações da linguagem. Mas ao eludir o problema duplo das ligações com o referente e com o contexto, elas nos impedem de seguir os quase-objetos até o fim. Estes, como eu disse, são ao mesmo tempo reais, discursivos e sociais. Pertencem à natureza, ao coletivo e ao discurso. Se autonomizarmos o discurso, entregando para tanto a natureza aos epistemólogos e a sociedade aos sociólogos, tornamos impossível a conciliação dessas três fontes

O hibridismo de que somos feitos é difícil de ser compreendido se nos ativermos apenas a uma destas três instâncias (o natural, o social ou o discurso), portanto, a TAR as analisa de forma conjunta, sem separações (Latour, 1994Latour, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34; 1994.). Sendo uma sociologia das associações a TAR se preocupa em observar e descrever associações, tratando humanos e não humanos em simetria, do ponto de vista analítico, pois ambos podem modificar os rumos da associação (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Sendo o resultado das associações, o social é fluido, é movimento, e está em constante transformação, por isso não pode ser usado como explicação, devendo ser explicado. A cada nova associação nos conectamos com diferentes actantes e isso gera um ator-rede diferente, com diferentes capacidades de agir, portanto não devemos definir a priori sobre a intencionalidade da ação (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

Poderemos, com a contribuição da TAR, tentar ampliar nosso campo de visão, notando os participantes do coletivo “aula de Educação Física” como actantes (atuantes), buscando visualizar como eles medeiam aquilo que foi construído historicamente e transportado/transformado nas associações de vários outros actantes. Ao observarmos o processo de construção, tentaremos ver como as novas conexões nas associações do dia a dia movimentam, são movimentadas e fazem surgir algo novo, entendendo que muitos mediadores transformam a informação que entram em contato (Latour, 2012Latour B. Reagregando o social: uma introdução a Teoria Ator-Rede. Bauru, SP: EDUSC; Salvador, BA: EDUFBA; 2012.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como principal objetivo investigar possíveis contribuições da TAR, a partir do pensamento de Bruno Latour, para a Educação Física, bem como analisar alguns aspectos da obra do autor que se associam a essa teoria. Em vista do objetivo exposto, no decorrer das nossas pesquisas, acreditamos que as contribuições da TAR e da obra latouriana são relevantes para se pensar o social na área de Educação Física.

Entendemos que a TAR pode contribuir com uma visão diferenciada sobre a forma de compreender o social na área da Educação Física, ou mesmo na aula de Educação Física – o entendendo como o resultado das associações heterogêneas – levando-nos a prestar mais atenção aos actantes e suas associações. Como destacamos, a TAR pode ajudar a entendermos o humano em meio ao mundo, um ator-rede que é afetado por associações difusas e híbridas, humanas e não-humanas. Sendo assim, se destacam as relações corpo-movimento-mundo como momentos de construção de afetação e constituição do humano em sua intra-ação com as coisas. A TAR contribui também para buscarmos superar as dicotomias fortemente presente na Educação Física, entendendo cultura e natureza de forma integrada.

Indicamos que mais estudos sobre a TAR, que explorem mais autores e autoras dessa teoria, podem contribuir significativamente para se pensar a Educação Física de uma forma menos antropocêntrica e dualista. Ressaltamos, que trabalhos empíricos utilizando referencial teórico da TAR também podem promover leituras inovadoras sobre a constituição social da Educação Física.

FINANCIAMENTO

  • 1
    Em função de ainda não haver estudos sobre a produção em Educação Física e TAR, fizemos um levantamento no buscador Google Acadêmico, com as palavras chaves “Educação Física”; “Teoria Ator-Rede”; “Bruno Latour”, em janeiro de 2022, sem delimitação temporal e considerando apenas resultados em língua portuguesa. Foram encontrados apenas quatro artigos diretamente relacionados à Educação Física, a saber: Ribeiro et al. (2017)Ribeiro SJT, Alves MP, Martins C. A Teoria Ator-Rede e a formação do educador ambiental. AS&T. 2017;5(1):3-14. http://dx.doi.org/10.17648/uezo-ast-v5i1.189.
    http://dx.doi.org/10.17648/uezo-ast-v5i1...
    , no qual os autores tratam da educação ambiental na disciplina de esportes de aventura em um curso de Educação Física, sob a perspectiva da TAR (esse texto apareceu duas vezes em nossa pesquisa, sendo a segunda uma apresentação em congresso no ano de 2018); Pacheco et al. (2020)Pacheco AC, Silveira R, Stigger MP. Etnografias: notas sobre percursos teórico-metodológicos de produção de conhecimento na Educação Física. Motrevivência. 2020;32(6):1-15., as autoras falam sobre suas experiências com pesquisas utilizando contribuições dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia (local de sistematização da TAR); Martins (2019)Martins MZ. Corporalidades-digitais: sobre metodologias de pesquisa dos encontros entre corpos-ciborgues-digitais. REBEH. 2019;2(2):163-77. http://dx.doi.org/10.31560/2595-3206.2019.6.9959.
    http://dx.doi.org/10.31560/2595-3206.201...
    , texto no qual a autora trabalha com muitos conceitos da TAR para falar da relação do corpo com ambiente digital.
  • O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Aceito
    09 Maio 2022
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