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Alfabetização e desenvolvimento

Literacies and developments

Alfabetización y desarrollo

Resumos

Este artigo analisa a dinâmica da recente alfabetização em massa na Inglaterra no contexto de práticas em países modernos em desenvolvimento, incluindo o Brasil. A Grã-Bretanha começou a investir em educação durante as décadas de 1860 e 1870, aproximadamente, e desenvolveu técnicas para medir os índices de alfabetização, os quais influenciaram profundamente as concepções de leitura e escrita de hoje e do passado. Redes de poder e ações eram ignoradas em favor da realização individual. Os dados sugerem que a Inglaterra levou mais tempo do que países modernos para alcançar suas metas, mas que mostrou desigualdades similares em relação a idade, gênero e renda. A ênfase dada ao ensino subsidiado e inspecionado sistematicamente ignorou o papel dos métodos informais de instrução. A escolarização inglesa antiga, assim como a do presente, elegeu praticamente um único método de alfabetizar. Comparada com seus contemporâneos, a Inglaterra teve a vantagem de ter um forte desenvolvimento econômico e uma longa história de práticas de alfabetização.

alfabetização; educação; Inglaterra; século XIX; países em desenvolvimento; índices de alfabetização


The article examines the dynamics of the recent mass literacy in England in the context of practices in modern developing countries, including Brazil. Britain began to invest in schooling during the second third of the 19th century and developed techniques for measuring literacy outcomes which deeply influenced past and contemporary conceptions of reading and writing. Networks of possession and practice were ignored in favour of individual fulfillment. The data suggests that England took longer to reach its goals than modern countries, but it displayed similar inequalities related to age, gender and income. The emphasis on subsidised and inspected schooling systematically ignored the role of the informal methods of instruction. The former English schooling, as the present, basically chose a single method of teaching literacy. Compared with its contemporaries, England was advantaged by its strong economic development and long history of literacy practice.

literacy; education; England; 19th century; developing countries; measurement of literacy


Este artículo analiza la dinámica de la reciente alfabetización en masa en Inglaterra en el contexto de prácticas en países modernos en desarrollo, incluido Brasil. Gran Bretaña empezó a invertir en educación a lo largo de las décadas de 1860 y 1870, aproximadamente, y desarrolló técnicas para medir los índices de alfabetización, que influenciaron profundamente las concepciones de lectura y escritura de hoy y del pasado. Se ignoraban redes de poder y acciones en favor de la realización individual. Los datos sugieren que Inglaterra tardó más tiempo que los países modernos para lograr sus metas, pero presentó desigualdades parecidas en lo que se refiere a edad, género y renta. El énfasis dado a la enseñanza subsidiada e inspeccionada sistemáticamente ignoró el papel de los métodos informales de instrucción. La antigua escolarización inglesa, igual que la del presente, eligió prácticamente un único método de alfabetizar. Comparada a sus contemporáneos, Inglaterra tuvo la ventaja de haber tenido un fuerte desarrollo económico y una larga historia de prácticas de alfabetización.

alfabetización; educación; Inglaterra; siglo XIX; países en desarrollo; índices de alfabetización


ARTIGOS

Alfabetización y desarrollo

David Vincent

The Open University, Londres, Reino Unido

RESUMO

Este artigo analisa a dinâmica da recente alfabetização em massa na Inglaterra no contexto de práticas em países modernos em desenvolvimento, incluindo o Brasil. A Grã-Bretanha começou a investir em educação durante as décadas de 1860 e 1870, aproximadamente, e desenvolveu técnicas para medir os índices de alfabetização, os quais influenciaram profundamente as concepções de leitura e escrita de hoje e do passado. Redes de poder e ações eram ignoradas em favor da realização individual. Os dados sugerem que a Inglaterra levou mais tempo do que países modernos para alcançar suas metas, mas que mostrou desigualdades similares em relação a idade, gênero e renda. A ênfase dada ao ensino subsidiado e inspecionado sistematicamente ignorou o papel dos métodos informais de instrução. A escolarização inglesa antiga, assim como a do presente, elegeu praticamente um único método de alfabetizar. Comparada com seus contemporâneos, a Inglaterra teve a vantagem de ter um forte desenvolvimento econômico e uma longa história de práticas de alfabetização.

Palavras-chave: alfabetização; educação; Inglaterra; século XIX; países em desenvolvimento; índices de alfabetização.

ABSTRACT

The article examines the dynamics of the recent mass literacy in England in the context of practices in modern developing countries, including Brazil. Britain began to invest in schooling during the second third of the 19th century and developed techniques for measuring literacy outcomes which deeply influenced past and contemporary conceptions of reading and writing. Networks of possession and practice were ignored in favour of individual fulfillment. The data suggests that England took longer to reach its goals than modern countries, but it displayed similar inequalities related to age, gender and income. The emphasis on subsidised and inspected schooling systematically ignored the role of the informal methods of instruction. The former English schooling, as the present, basically chose a single method of teaching literacy. Compared with its contemporaries, England was advantaged by its strong economic development and long history of literacy practice.

Keywords: literacy; education; England; 19th century; developing countries; measurement of literacy.

RESUMEN

Este artículo analiza la dinámica de la reciente alfabetización en masa en Inglaterra en el contexto de prácticas en países modernos en desarrollo, incluido Brasil. Gran Bretaña empezó a invertir en educación a lo largo de las décadas de 1860 y 1870, aproximadamente, y desarrolló técnicas para medir los índices de alfabetización, que influenciaron profundamente las concepciones de lectura y escritura de hoy y del pasado. Se ignoraban redes de poder y acciones en favor de la realización individual. Los datos sugieren que Inglaterra tardó más tiempo que los países modernos para lograr sus metas, pero presentó desigualdades parecidas en lo que se refiere a edad, género y renta. El énfasis dado a la enseñanza subsidiada e inspeccionada sistemáticamente ignoró el papel de los métodos informales de instrucción. La antigua escolarización inglesa, igual que la del presente, eligió prácticamente un único método de alfabetizar. Comparada a sus contemporáneos, Inglaterra tuvo la ventaja de haber tenido un fuerte desarrollo económico y una larga historia de prácticas de alfabetización.

Palabras clave: alfabetización; educación; Inglaterra; siglo XIX; países en desarrollo; índices de alfabetización.

A TAREFA COMUM

Sinto-me agradecido e honrado por ter sido convidado a discursar na conferência anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) sobre letramento e sua história. Sei que o Brasil é um país que vem lutando contra o analfabetismo há muito tempo. Nesse sentido, algumas intervenções têm sido realizadas, como o Plano Nacional de Educação (2001), que lançou uma série de iniciativas desenvolvidas com o objetivo de completar o trabalho que foi iniciado na segunda metade do século XX. O Programa Brasileiro de Alfabetização e o trabalho subsidiado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECADI) têm buscado promover a educação básica e enriquecer nossa compreensão sobre a dinâmica do analfabetismo em uma sociedade em processo de modernização. Estou ansioso para aprender mais sobre essas ações durante minha estada.

Solicitaram que eu discorresse sobre a história da leitura e da escrita na Inglaterra, que durante o século XIX se constituiu em um dos poucos países do noroeste europeu a atingir pela primeira vez a alfabetização completa formal. No gráfico da Figura 1, é possível visualizar como um grupo de países - Inglaterra e País de Gales, Holanda, Escócia, França e Prússia (da Alemanha de 1870) - conseguiu diminuir, até quase zerar, os índices de analfabetismo por volta de 1900, sendo acompanhado por outro grupo de países de outras partes da Europa, os quais foram na mesma direção, mas ainda com quinze ou mais pontos acima da base, pouco antes da Primeira Guerra Mundial.


A fim de inserir esse tópico em uma espécie de panorama comparativo, pensei em explorar os paralelos entre o caso Britânico e o trabalho, mais recente, de novos países em desenvolvimento. Seria então o caso de analisar o berço da revolução industrial como uma economia e sociedade em desenvolvimento no século XIX, tendo em vista que houve uma transição do modo de vida rural para o urbano. Assim, em 1800, quatro em cada cinco membros da população vivia no campo; em 1861, a Inglaterra se tornou o primeiro país moderno com mais da metade de sua população vivendo em pequenas e grandes cidades, conforme os registros da época. A população da Inglaterra e do País de Gales aumentou de nove para 32 milhões de pessoas entre 1801 e 1901, criando uma sociedade incrivelmente jovem, com um terço dos habitantes contando menos de quinze anos ao final do século XIX e metade com menos de vinte e cinco anos.

Com a invenção da máquina a vapor, a produtividade da economia ficou livre das restrições relacionadas com o trabalho braçal humano, da força do cavalo, da energia proveniente do vento ou da água. E com o advento da estrada de ferro, no exato momento em que os índices de letramento começaram a melhorar, foi dado início à revolução nas comunicações.

O Estado foi modernizado e novas formas de burocracia no serviço público foram introduzidas em uma tentativa de evitar que a pobreza, as doenças e o descontentamento da população esmagassem as realizações do capitalismo nascente. O Estado britânico também se tornou a maior potência imperial do mundo, responsável pelo progresso educacional, ou pela falta dele, em grandes regiões do planeta, mas essa é uma outra história.

O PADRÃO DE CRESCIMENTO

O momento crítico na história do Estado, o ponto em que a Grã-Bretanha esteve mais próxima de uma revolução, foi a Reforma de 1832, pois emancipou a classe média emergente. Isso levou imediatamente ao primeiro subsídio estatal para a educação primária em 1833, o qual representou o comprometimento formal do poder público para a erradicação do analfabetismo. A notória consequência desse ato está descrita no gráfico da Figura 2.


Os gráficos, representando homens e mulheres medidos pela capacidade de assinar o registro de casamento, mostram uma queda contínua e acelerada do analfabetismo, até quase atingir o letramento formal completo demonstrado nos primeiros anos do século XX. Esse fato significou por muitos anos um grande triunfo da educação britânica, pois abriu um caminho que foi seguido, subsequentemente, por outros países em processo de desenvolvimento.

No entanto, a primeira coisa a ser dita sobre esse gráfico é que ele apresenta uma visão equivocada da totalidade da mudança. A Grã-Bretanha parece ter lidado com o analfabetismo em apenas duas ou três gerações, fato que contrasta fortemente com o trabalho de muitos países em desenvolvimento no século seguinte. Tenho visto recentes e positivos relatos de campanhas pela educação no Brasil desde 1940, que descrevem a redução do analfabetismo de 56% para 10%, em um período de 60 anos, como "um declínio gradual e quase vegetativo" (Ireland, 2008, p. 718).

Mas é preciso olhar com mais detalhes o ponto de partida desse gráfico. O analfabetismo masculino já estava abaixo de 40% e o feminino, em 50%. Até onde podemos medir, esses níveis foram alcançados em meados do século XVIII e permaneceram nos mesmos níveis do aumento da população durante os 75 anos seguintes. Na realidade, o crescimento do letramento para além da elite começou no século XVI, com a publicação dos primeiros livros para o aprendizado da leitura e da escrita, não muito depois da invenção da tipografia. A primeira sociedade letrada do mundo já estava sendo formada há três ou quatro séculos. Todo país que entrou em processo de desenvolvimento depois disso conseguiu alcançar níveis mais altos em um menor espaço de tempo.

Em outros aspectos, o caso da Grã-Bretanha demonstra características da distribuição da alfabetização que se repetem em países em desenvolvimento. Como pode ser visto na Figura 2, as mulheres estiveram atrás dos homens durante todo o período. A mesma realidade se repete em toda a Europa, como demonstrado no gráfico da Figura 3.


Na Inglaterra a lacuna não é tão grande. Um trabalho mais detalhado sobre áreas específicas sugere que nas zonas rurais, no sul e no leste da Inglaterra, os registros de casamento com assinatura de mulheres, na verdade, superaram os dos homens em meados do século XIX (Figura 4).


Novamente é preciso reforçar que, sendo uma ação comum naqueles países em desenvolvimento, a maior parte dos esforços de investimentos foram direcionados para a educação primária, mais do que para a educação de adultos. Por esse motivo a alfabetização varia no que diz respeito à idade, como indica o gráfico da Figura 5.


Em média, na Inglaterra do século XIX, as pessoas que se casavam por volta dos 25 anos eram pelo menos vinte pontos mais alfabetizadas que a geração de seus pais, como mostra o gráfico da Figura 6. Entre outros aspectos, isso significou que a vitória final sobre o analfabetismo nominal foi ainda mais prolongada do que esses gráficos sugerem. O último dos analfabetos idosos não morreria até a véspera da Segunda Guerra Mundial.


Finalmente, os registros britânicos mostram a distribuição dos índices familiares de letramento por renda. O Quadro 1 traz uma amostra da população, dividida entre as principais categorias ocupacionais da época. As duas colunas da esquerda são as da pequena nobreza e das classes profissionais que já eram completamente alfabetizadas. O mesmo ocorreu com os dois grupos seguintes, o de artesãos especializados (H) e o de pessoas que trabalhavam em ocupações manuais que exigiam a alfabetização como requisito formal, tais como as de policial ou trabalhadores em ferrovias. Os empregados de fábricas têxteis e de cerâmica, bem como os de indústrias de metais (T, P, Met) eram em torno de 50% alfabetizados no período inicial do estudo, rumo a sua reta final para alcançar o letramento, pois eram trabalhadores semiqualificados em ocupações mais tradicionais (3). Os últimos eram os mineiros (M), que extraíam o carvão que alimentava as engrenagens a vapor e esquentavam as recém-construídas casas nas pequenas e grandes cidades, e os trabalhadores sem qualquer qualificação, particularmente os que trabalhavam com a terra (5), que iniciaram sua reta final em níveis de 25% a 50%.


A longa história da difusão das práticas de letramento e de seu aprendizado antes do século XIX baseia-se no fato de que não somente as classes superiores, mas também os trabalhadores em serviços manuais e em ofícios que exigiam alguma habilidade tinham plena capacidade de ler e escrever antes mesmo de o Estado se comprometer com a educação em massa. E o destino comum de todas as categorias ocupacionais demonstra que mesmo as habilitações de menor nível promoveram uma grande transformação nas capacidades, aumentando as realizações por sucessivas gerações.

A MENSURAÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO

O que também liga o caso britânico às atuais campanhas de alfabetização é o conceito de mensuração em si. A noção de uma meta - dados quantificáveis das contribuições oficiais - é a base que fundamenta o Estado moderno e que orienta suas ações. Assim, a Grã-Bretanha pode reclamar para si o crédito de ter inventado o gráfico de analfabetismo, a linha única, sempre descendente e com ocasionais desacelerações ou reversões, dividindo a população em dois grupos distintos. Essa forma de avaliação estatística tornou-se possível por meio de uma série de inovações administrativas que se seguiram à Reforma de 1832, particularmente nos registros de nascimentos, mortes e casamentos - Reforma de 1836. Isso exigiu a realização de registros padronizados de casamentos que solicitavam a assinatura com o nome ou com uma cruz, pela noiva e pelo noivo, além de duas testemunhas. Tão logo foram colhidos os dados, Thomas Lister, o então secretário-geral de Registros da Inglaterra e de Gales, publicou essas informações como uma primeira tentativa, produzida por um Estado moderno, para estimar o capital cultural de toda uma nação. Além das tabelas com nascimentos, mortes e casamentos, ele incluiu uma nova maneira de medir a saúde do país:

Quase todos os casamentos são devidamente registrados, e todo registro é assinado pelas partes; por aqueles que são capazes de assinar o nome, e por aqueles que não o são, ou mesmo pelos que escrevem de maneira imperfeita, fazendo suas marcas pessoais. Consequentemente, a quantificação desses tipos de casos, nos quais as marcas são feitas, mostrarão a proporção dos que não sabem escrever de maneira alguma e dos que escrevem de maneira imperfeita. (Porter, 1843, p. 277)

O Quadro 2 marca o início da contagem relacionada com os números da alfabetização. Essa tabela foi, de fato, o primeiro indicador mundial de desempenho dos investimentos públicos, demonstrando aos que pagavam impostos em que nível se encontrava o problema, que precisava ser abordado, e as consequências do esforço em efetivar esse tipo de despesa.


Mesmo naquele tempo, reconhecia-se que a capacidade de assinar um registro era um indicador básico para avaliar a habilidade de ler e escrever. Assim, esforços foram ocasionalmente empreendidos para gerar mais nuances a fim de medir graus de capacidade e uso, particularmente a partir do momento em que os resultados das crianças em escolas começaram a ser avaliados. Desde aquele momento, no início da década de quarenta do século XIX, houve constantes atividades com mensurações simples e contextualizadas.

Atualmente, o programa Educação para Todos monitora o crescimento da alfabetização em países em desenvolvimento, nos termos compreendidos pelos educadores vitorianos, publicando estatísticas baseadas na medição binária da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) para avaliar a habilidade ou inabilidade do indivíduo de "ler e escrever com compreensão uma simples frase representando sua vida diária" (UNESCO, 2000, p. 62).

Ao mesmo tempo, afirma-se que essas medidas transnacionais deturparam a "alfabetização como praticada em casa e na comunidade", o que levou a formas mais sofisticadas de medição, como o Programa de Avaliação de Estudantes Internacional (PISA), da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD), o qual investiga

a capacidade dos alunos de aplicar conhecimento e habilidades em áreas-chave do conhecimento e analisar, raciocinar e expressar a interpretação e resolução de problemas concretos, e numa variedade de situações. (PISA, 2004, p. 20)

A inovação representa uma rejeição consciente do passado:

O conceito de alfabetização usado no PISA é muito mais amplo do que a noção histórica da habilidade de ler e escrever. É, na verdade, uma mensuração contínua, não como algo que um indivíduo tem ou não tem [...] Uma pessoa alfabetizada tem uma gama de competências e não há uma linha divisória precisa entre a pessoa que é totalmente alfabetizada e outra que não é. (idem, p. 23)

Há mais a ser dito sobre essa abordagem. Porém é um caro e complexo modo de investigação, o qual pode dificultar a produção de uma perspectiva de longo prazo. Muda com o passar do tempo, dentro e entre países, e ainda nos remonta ao tipo de exercício inventado nos primeiros anos do reinado da rainha Vitória.

Na medida em que usamos essas formas de avaliação, é importante reconhecer o peso das suposições nelas envolvidas. Para os vitorianos, a "ignorância" significava a incapacidade de acessar o conhecimento registrado, o que seria fator determinante nos índices de criminalidade e revolta social. Foi argumentado, por ocasião das discussões sobre a reforma educacional de 1839, que

dois terços das crianças de classes mais humildes estavam completamente sem acesso à educação. A consequência dessa negligência foi que os registros de crimes estavam aumentando e dos 22 mil crimes cometidos naquele ano, 20 mil foram cometidos por pessoas totalmente destituídas de educação. (Hansard, 1839, col. 298)

A escolarização medida pelos índices de alfabetização foi a estratégia de renovação dos recursos culturais da sociedade, que haviam sido deteriorados pela rápida velocidade da urbanização e da industrialização. Nas palavras do primeiro oficial de estatística:

Tem sido visto, e está começando a ser reconhecido de maneira prática, que a maior doença moral da qual a sociedade está agora sofrendo é o resultado da ignorância, e sem insistir no aperfeiçoamento da natureza humana, nós poderemos sensatamente esperar que a remoção da ignorância trará significativas contribuições para a restauração da saúde moral das comunidades e consequentemente inseri-las no gozo racional das bênçãos cada vez mais disponíveis pela sua aceitação. (Porter, 1843, p. 173)

A contagem era uma forma de categorização. A população estava separada em duas colunas nas tabelas de alfabetização. As colunas descreviam uma sociedade dividida. De um lado, os educados e racionais, do outro, os que não possuíam educação e que seriam escravos dos seus próprios juízos de valores e do egoísmo.

Uma segunda consequência desse modo de contabilizar foi que a sociedade era descrita não como sendo composta por famílias ou redes de sociabilidade, mas como um agregado de indivíduos. Embora os dados vitorianos tenham sido coletados por meio de uma cerimônia que criava uma nova família, o casamento, eles eram representados por tabelas de dados e índices comunicadores autossuficientes e separados, cada pessoa possuindo ou não uma habilidade diferenciada. Essa forma de raciocínio foi utilizada para realizar cálculos estatísticos relacionados com a alfabetização da nossa era, incluindo os que mediam os resultados dos programas nacionais e globais de alfabetização. Se a informação é derivada de relatórios individuais, censos ou avaliações mais detalhadas, os resultados aparecem como agregados a realizações pessoais.

Em importante artigo publicado no Economic Journal (1998, p. 1.734), Basu e Foster levantaram uma objeção a essa abordagem: "é nossa contestação", disseram, "que ter um membro letrado na família pode fazer uma diferença substancial para cada membro iletrado, no que diz respeito a acessar informações e realizar tarefas que exigem habilidades advindas do letramento". É uma abordagem que vê a alfabetização apenas como mais uma fonte escassa, em uma acentuada economia cultural, como qualquer outra fonte que poderia ser utilizada em tempos de escassez para realizar uma tarefa específica. "Consequentemente, é importante distinguir entre dois tipos de analfabetos, quando da análise da distribuição da alfabetização: um 'quase analfabeto', analfabeto que mora em uma família com pelo menos um membro alfabetizado e que tem acesso a bens públicos; e um 'analfabeto isolado', cuja família não possui membros alfabetizados" (idem, ibidem). Em sociedades em desenvolvimento, os alfabetizados isolados são pouco frequentes comparativamente.

Basu e Foster aplicaram sua ideia à alfabetização em estados indianos em 1981 e descobriram que uma taxa absoluta de 43% aumentaria para 85% se os quase analfabetos fossem incluídos nos cálculos (idem, p. 1.742). Esse fato tem grandes implicações tanto no que diz respeito à mensuração do sucesso de programas de alfabetização quanto para a compreensão da capacidade de comunicação de sociedades que ainda não alcançaram o letramento pleno.

Posto que os britânicos seguiram o caminho de individualizar a aquisição da alfabetização, eles também foram os primeiros a apontar as limitações dessa abordagem. Em seu relatório sobre o ano de 1857, muito antes da descoberta do jornal de economia Economic Journal, o secretário-geral chamou a atenção para um fato que estava sendo continuadamente ignorado em comentários sobre suas tabelas. "Cada casamento constitui uma família; e para a família o fato de que um dos seus membros pode ler e escrever tem mais importância do que o fato de que ambos possam ler e escrever" (Basu; Foster, 1998, p. 1.857, P. V.). Há uma série de evidências sugerindo que havia certa transmissão de conhecimento. Dessa forma, um pai letrado lia para uma criança que ainda não possuía esse conhecimento; uma criança em idade escolar ajudava um pai analfabeto com um formulário oficial; jornais eram lidos em voz alta em casas ou em espaços públicos; as mulheres letradas faziam a contabilidade para os maridos não letrados que possuíam negócios; cartas que chegavam eram lidas por outros membros da família ou mesmo por vizinhos; cartas a serem enviadas eram escritas por amadores ou por escreventes profissionais da comunidade.

Em certo nível, é impossível reduzir esse tipo de relações a cálculos estatísticos. Eles se baseiam em dois pontos importantes. Primeiro, na Inglaterra vitoriana, como na maioria das sociedades desenvolvidas, não havia uma distância significativa entre letrados e iletrados, mas uma complexa mudança de padrão de capacidades de aquisição temporárias e práticas de letramento. Segundo, é preciso ter precaução no que diz respeito à expansão do letramento, pelo menos entre os pobres, como forma de promoção de uma cultura de privacidade na qual os indivíduos eram retirados de práticas coletivas para o desenvolvimento de práticas individuais e solitárias de letramento, como a leitura de livros e cartas.

No entanto, o conjunto de dados nacionais que compilei para meu estudo sobre letramento na Inglaterra abre espaço para alguns novos cálculos estatísticos. Ao contrário do secretário-geral, tive a oportunidade de analisar as redes sociais mais básicas.

Se focarmos o noivo e a noiva juntos quando da assinatura do registro de casamento, o perfil de letramento no século XIX pode ser significativamente redimensionado. O nível médio de analfabetismo entre 1839 e 1914 era de 25%, mas levando em conta os parceiros unidos o letramento podia ser identificado em 86% dos casamentos. Observando-se o grupo menos letrado na amostra, o de trabalhadores sem qualificação, aproximadamente nos primeiros vinte e cinco anos, menos de um terço dos noivos eram capazes de assinar o registro, mas, com suas novas esposas, um pouco acima da metade dos casais passariam a ser considerados letrados.

O fato de que noivas letradas geralmente casavam-se com noivos iletrados enfraquece a visão, frequentemente expressa por estudiosos do período, de que a falta de letramento era socialmente estigmatizada em alto grau. Os dados não nos permitem uma investigação sobre redes mais amplas dentro da família ou da comunidade, mas é possível vislumbrar essa dimensão incluindo no cálculo os números, nos registros, das duas testemunhas que provavelmente eram parentes próximos ou amigos. Tomando como base esse argumento, em apenas uma cerimônia, de um total de quinze, dispensou-se a habilidade de assinar o nome, durante todo o período. Entre os menos letrados, seis cerimônias de sete tinham alguém que sabia assinar o nome.

Enquanto os gráficos e tabelas agregados que vimos anteriormente exibiam um longo percurso até a erradicação completa do analfabetismo, estendendo-se para além dos seus primeiros resultados, a mudança de parâmetro de indivíduos para redes sociais, de letrados para quase letrados, sugere que a Inglaterra e o País de Gales constituíam-se como sociedades quase que totalmente letradas, no período em que a rainha Vitória assumiu o trono em 1837. Reciprocamente, isso significa que, por todo o período, aqueles que sabiam escrever continuaram a viver ao lado dos que não sabiam, com alguns ainda assinando com uma marca, como em muitas das 44% de todas as cerimônias de casamento (Vincent, 1989, p. 22-23).

Uma terceira consequência desse modo de contabilizar foi que se colocou, em primeiro plano, o papel da escolarização, provocando a desvalorização e desqualificação dos processos informais de instrução, dentro da família ou por professores da comunidade pouco qualificados e que não tinham seu trabalho supervisionado. Essa associação tem sido e permanece fundamental para a abordagem sobre letramento em países em desenvolvimento.

O relatório de 2006 do programa oficial da UNESCO Educação para Todos afirma categoricamente: "o fator mais significativo a influenciar a proliferação da alfabetização por todo o mundo, nos dois últimos séculos, tem sido a expansão da escolarização" (UNESCO, 2005, p. 194). No entanto, o relatório de 2008 admite que ainda sabemos muito pouco sobre a educação fora da sala de aula:

Enquanto uma grande variedade de atividades de aprendizagem estruturada para jovens e adultos acontece fora de sistemas educacionais formais, não se sabe até que ponto isso atende à demanda. Uma melhora no sistema de monitoramento dessas atividades e também da demanda para a educação não formal se faz urgentemente necessária, nacional e internacionalmente. (UNESCO, 2007, p. 61)

O foco exclusivo na escolarização formal começou com as tabelas e gráficos de alfabetização britânicos. A sua compilação aconteceu no mesmo momento em que o Estado mudou sua posição de temor em alfabetizar os mais pobres para a aceitação de sua responsabilidade de assegurar o letramento difundido entre a população. Embora a terminologia não estivesse em uso, foi o início de uma das primeiras campanhas oficiais mundiais de alfabetização. O subsídio inicial do Estado para a educação elementar foi votado em 1833, uma das primeiras ações do Parlamento reformado. Três anos depois, o novo sistema de registros foi introduzido, levando à organização das primeiras tabelas de letramento. Dois anos após elas terem sido publicadas, o Estado começou a inspecionar escolas elementares subsidiadas para garantir que o dinheiro público estivesse sendo aplicado corretamente.

Intervenção e mensuração são processos que ocorreram simultânea e relacionalmente. Em seu relatório de 1881, o secretário-geral constatou, com satisfação, o aumento contínuo das estatísticas de letramento: "esses números se configuram em testemunhos irrefutáveis do crescente e rápido aumento da educação elementar em comparação com anos recentes" (Forty-seventh, 1881, XVII, p. 4).

Há, porém, outra forma de visualizar a relação entre as tabelas de letramento e a escolarização oficial. Os dados ingleses nos revelam o quanto poderia ser alcançado, sem a presença do Estado ou mesmo através de um sistema generalizado de educação, por meio do trabalho realizado pela Igreja. O esforço individualizado das escolas religiosas não explica como 3 entre 5 homens sabiam assinar o nome na década de 1750. Quando o Estado começou a fazer uma contribuição simbólica aos esforços pioneiros das escolas ligadas às igrejas, em 1833, a arrancada final em direção ao completo letramento já estava iniciada, apesar das dificuldades causadas pelo rápido crescimento populacional.

Considerando que a idade média em que as pessoas se casavam era em torno de 15 anos após permanecerem na escola, faz-se necessário ir além para mensurar o impacto do desenvolvimento educacional. Tal cálculo revela que a média, para noivas e noivos, já havia passado de 60% antes de o Estado ter gasto qualquer quantia em educação e tinha alcançado quase 90% antes de ser criado o sistema nacional de educação, através da reforma de 1870. A escolarização ainda não tinha se tornado obrigatória até 1880, quando restava menos de 5% da tarefa a ser cumprida.

Diante disso, verifica-se uma situação em que a relação causa e efeito acontece de forma invertida, já que a intervenção do Estado, mais do que causa da expansão do letramento, foi posterior a ele. O Estado somente começou a investir recursos mais substantivos e a reforçar a necessidade de comparecimento às aulas quando uma significativa parcela da população já investia na instrução dos filhos. A retórica da reforma, todavia, desconsiderou o papel do currículo doméstico. A escolarização por meio das igrejas, gradualmente subsidiada, suplementada e supervisionada pelo Estado, foi acompanhada pela desvalorização de toda a estrutura de aprendizado nas comunidades de trabalhadores pobres.

Sarah Trimmer, uma das primeiras advogadas a cuidar de causas envolvendo a educação pública, explicou a necessidade da intervenção do Estado: "Na Grã-Bretanha e na Irlanda, pelo menos 1.750.000 membros da população do país que se encontravam em idade para serem instruídos alcançaram a idade adulta sem instrução alguma, na mais grosseira ignorância" (Bell, 1807, p. 10). As primeiras escolas subsidiadas não estavam meramente inscrevendo o aprendizado nas mentes jovens ignorantes, elas estavam combatendo ativamente a instrução recebida em casa. Um inspetor escolar explicou o que estava em jogo, na medida em que as crianças eram alfabetizadas pela nova geração de professores treinados: "É realmente uma triste e má necessidade que a primeira aula que eles têm na escola seja a de que eles todos tomem cuidado com os próprios pais e que olhem com nojo, se não com horror, para a imundícia e abominação dos seus próprios lares" (Vincent, 1989, p. 73).

Pelo fato de o Estado ter deixado para trás os registros oficiais para a consulta dos historiadores, esta perspectiva tem dominado muito do que é escrito sobre o tema. Temos que recolher e conectar discursos presentes em autobiografias das classes trabalhadoras e outros fragmentos de evidência para ter uma ideia da variedade das formas pelas quais os pais deram condições a seus filhos de alfabetizarem-se, nos séculos anteriores à escolarização compulsória, por meio do Estado.

Em alguns casos, um pai ou mãe, um irmão mais velho, um vizinho alfabetizado passava seus conhecimentos em meio à rotina doméstica diária e ocupação laboral. Em outros, alguns trocados eram pagos a uma viúva ou a um trabalhador "semiaposentado" para instruir um grupo de crianças em uma sala de estar. Ainda, a igreja providenciava o local, contratava o professor, que podia ter alguma educação formal, mas sem formação específica para ensinar.

O processo era facilitado através do comércio, há muito já estabelecido, de cartilhas usadas para ler e escrever e que podiam ser compradas novas ou de segunda mão em bancas de mercado, em todo o país. A história da intervenção do Estado na educação, no século XIX, está menos relacionada com políticos que tentavam preencher um vácuo e mais, com funcionários travando uma guerra contra o ensino fora de controle.

Mesmo diante de crescentes campanhas, os pais ainda preferiam fazer uso de estratégias que respeitavam suas necessidades práticas e seus valores culturais. Na década de cinquenta do século XIX, duas décadas após o Estado começar a intervir, provendo o letramento da população, a participação nas chamadas dame schools (locais que ofereciam ensino fundamental, geralmente conduzido por professoras que ensinavam em suas próprias casas) e nas escolas da iniciativa privada era maior do que nas escolas paroquiais por ele subsidiadas e inspecionadas. Em Londres, por volta de 1870, escolas particulares que ofereciam ensino diurno tinham um total estimado de 44 mil crianças sob a vigilância de legisladores e inspetores (Vincent, 1989, p. 69).

O PAPEL DO ESTADO

De certa forma, a função da provisão informal do letramento na história inglesa deve ser encarada com certa precaução, diante do risco de generalização sobre o papel do ensino oficial na história do sujeito. De fato havia, no início dos tempos modernos e durante o século XIX, muitos e diferentes caminhos para o letramento. As igrejas assumiram uma variedade de papéis. O caso mais interessante foi o da Suécia do século XVII, onde a igreja luterana solicitou que os pais educassem seus filhos e sistematicamente assegurou que eles assim o fizessem.

Em outros aspectos, isso reforça duas verdades que permanecem relevantes hoje. A primeira é que é sempre imprudente assumir uma direta correlação entre legislação e resultado. Desde o século XVIII até as mais recentes campanhas de alfabetização, o campo está cheio de intervenções governamentais significativas que levaram a nada. A única diferença é que o ciclo de ação e inércia agora é mais curto, e a evidência de falha é identificada mais rapidamente.

Os precursores dos programas modernos de alfabetização podem ser encontrados em diferentes partes da Europa do século XVIII. Os prussianos legislaram por um sistema de educação elementar, em 1717, os suecos em 1723, os dinamarqueses em 1739, os islandeses em 1744, os portugueses em 1759, os estonianos em 1765, os bávaros em 1771, os austríacos em 1774 e os poloneses em 1783.1 1 Ver Melton (1988); Schleunes (1989, p. 37); Lamberti (1989); Tomasson (1975); Seidler (1977); Carrato (1977); Boucher (1982, p. 8-20); Raun (1979, p. 119). Os resultados nunca alcançaram as intenções do Estado em nenhum desses países.

Nos países mais desenvolvidos da Europa foram necessários cerca de cem anos desde a promulgação do sistema universal e compulsório de educação elementar até sua execução total. Aproximadamente na metade do século XIX, algumas reformas foram propostas e, geralmente, a primeira fase de uma proposição utópica era sucedida por um programa mais cauteloso de reforma educacional. Nessa segunda fase, o Estado reconheceu a necessidade de fazer alianças com provedores alternativos de escolarização, como as igrejas. Já nas últimas décadas do século, o Estado propôs uma escola livre, mas com a sua inspeção, sendo disponibilizada para cada criança em toda vila e área urbana. Era finalmente negada aos pais a liberdade de determinar que educação seus filhos receberiam.

A principal causa do fracasso foi a fragilidade da infraestrutura do Estado no século XIX. Por mais urgente que a tarefa fosse, o custo da construção e manutenção dos prédios e para equipar escolas, treinar, pagar e supervisionar professores, impôs à máquina administrativa um fardo pesado, aumentando as taxas e a dificuldade em gerenciar as finanças públicas. De fato, poucos Estados eram, na prática, capazes de suportar tal situação.

Se isso se configurava como uma série de desafios para um país em desenvolvimento, estável e próspero como a Inglaterra, estava totalmente além das condições dos Estados "mais atrasados" da Europa. A Rússia introduziu um plano de educação em 1786 e aprovou leis importantes em quase todas as décadas no século seguinte, mas ainda o novo governo bolshevik achou necessário aprovar um decreto (em dezembro de 1919) para acabar de vez com o problema.

A segunda verdade é que uma campanha de letramento para crianças que obtivesse sucesso dependeria, de maneira complexa, dos desejos e recursos dos pais. Apesar de o ensino compulsório na Inglaterra ter sido inserido tardiamente e sem muito rigor, até aquele momento toda criança, em todo tipo de escola, oficial ou não, a frequentava porque os pais assim desejavam. A escola pública tornou-se gratuita em 1885, mas até então ela funcionava porque os pais estavam dispostos a pagar, tanto diretamente quanto abrindo mão da renda do trabalho dos filhos, ocasionando uma retração do orçamento doméstico. Com o passar do tempo, essa realidade forçou os formuladores de políticas educacionais a prestarem um pouco de atenção ao investimento familiar na instrução, já que as famílias faziam sacrifícios em favor do investimento na instrução de seus filhos e filhas.

A Comissão Newcastle (Report of the...,1861, XXI, pt. 1, p. 34), um divisor de águas como pesquisa oficial, descobriu, sem grande surpresa, que os pais não apoiavam a visão de religiosos e reformadores do Estado sobre o fato de que "uma grande parte dos que pertenciam às classes pobres da população estava em uma condição que prejudicava seus próprios interesses e que também era perigosa para o resto da comunidade". Em vez disso, talvez "eles atribuíssem uma maior importância, em comparação aos promotores e gestores de escolas, para o domínio de conhecimentos específicos, como o letramento, o que seria rentável para a criança durante toda a sua vida" (idem, ibidem).

A visão deles em relação à sala de aula era geralmente instrumental. Eles desejavam habilidades relacionadas com letras e números, em vez de uma superestrutura voltada para a instrução moral ou reformatória. Um membro da Comissão Newcastle comentou:

Tenho recebido perguntas indagando-me se os pobres têm preferência por um sistema de educação em detrimento de outro, se eles negligenciam a educação de seus filhos por causa da indiferença religiosa e se, em suma, não há nada nas escolas de hoje que indisponha os pais a mandar os filhos para a escola. Eu fiz a mais diligente pesquisa sobre essas questões e não encontrei nenhuma diferença de opinião. Mestres, clérigos, ministros, missionários da cidade, todos me disseram que os pobres, na escolha de uma escola, procuravam saber se a escola fornecia uma boa leitura, escrita e aritmética. (idem, p. 35)

O relatório marcou o início de uma lenta negociação entre os provedores de educação e as exigências de seus alunos e das comunidades de onde estes tinham vindo. Nos termos do Revised Code de 1862, o currículo foi ampliado para incluir a poesia e a ficção, em um esforço para atrair os alunos para a escola e dar a eles algum prazer na aplicação de suas habilidades em desenvolvimento.

No entanto, permaneceu nas práticas escolares a visão de que o ambiente cultural doméstico seria prejudicial às atividades em sala de aula, muito embora agora saibamos que no espaço doméstico era mais provável a disponibilização de textos de ficção baratos e em papel de jornal. Essa crença foi incorporada no conceito de método, ao qual a profissão docente, cada vez mais treinada, agarrava-se para imprimir seu papel e status. As primeiras escolas inspecionadas implantaram o método silábico ou fônico, método que se constituiu como característica das cartilhas de alfabetização por séculos. As palavras foram divididas em partes consideradas unidades básicas, e as crianças aprendiam como combinar fragmentos estranhos e transformá-los em palavras, com um número cada vez mais crescente de sílabas. A sala inteira começaria a recitar em voz alta: "a, é, i, ó, u". Em meados do século XIX, esta abordagem foi desafiada pelo método "Veja e Diga", ou método sintético, no qual eram apresentadas ao aluno palavras completas e era permitido a ele que usasse adivinhação para decifrá-las.

Ciclos sucessivos têm ocorrido e, na Inglaterra, está sendo usada uma abordagem muito similar à utilizada nos primórdios do século XIX. O fio condutor comum ao redor das mudanças é a suposição de que o sucesso escolar é proveniente de um método pedagógico, e não da interação entre recursos escolares e familiares.

OS CAMINHOS PARA O DESENVOLVIMENTO

Não houve apenas um caminho para o letramento em massa na Europa do século XIX, como também não houve em países em desenvolvimento em um passado mais recente. Entre seus contemporâneos, a Inglaterra se distinguiu por duas razões. Primeiramente, já possuía uma relativa e eficiente, além de não corrupta, infraestrutura política e no decorrer do século XIX conseguiu evitar levantes revolucionários ou desastres militares do tipo que, na época, e também nos dias atuais, provocaram e provocam deslocamentos significativos nas campanhas de alfabetização.

Em segundo lugar, possuía uma longa tradição no uso de habilidades e artefatos de letramento sobre os quais as realizações ocorridas no século XIX puderam ser construídas. Como vimos, não eram apenas os artesãos qualificados que eram capazes de assinar o registro do casamento, no início da reta final para o letramento, mas também podiam fazê-lo pelo menos um quinto dos que estavam na categoria de menos letrados. Livretos de literatura popular e histórias de aventura baratas circularam pelas cidades e aldeias do país durante dois séculos. A literatura religiosa estava amplamente disponível. Não havia comunidades inteiramente orais, existiam grupos da população que eram privados da palavra escrita e da aprendizagem de como usá-la.

O sistema postal, que exigia o uso mais direto das habilidades de leitura e escrita, foi totalmente estabelecido e amplamente utilizado até o final do século XVIII. Com a introdução do Penny Post (primeiro correio instaurado em Londres que tinha um sistema de entrega), em 1840, uma ação explicitamente concebida para incentivar o uso da leitura e da escrita, a correspondência tornou-se acessível a qualquer homem ou mulher trabalhador e recém-educado. Essas duas ações juntas permitiram ao país reduzir o analfabetismo em um gráfico ininterrupto, apesar do rápido crescimento populacional.

O que talvez tenha ligado a Inglaterra a outros Estados em modernização, no final do século XX e início do XXI, foi a relação entre a função libertadora de novas habilidades de comunicação e a resistência de estruturas de desigualdade herdadas. Em alguns casos as meninas desfrutaram do fato de terem quase as mesmas oportunidades que os meninos na aprendizagem das primeiras letras. A diferença de gênero nas taxas iniciais não era grande e, progressivamente, estreitou-se.

A escolaridade oficial foi colocada à disposição tanto para meninos quanto para meninas, e o mesmo currículo básico foi seguido. A separação veio na função da educação. As meninas sabiam que seu futuro estava confinado à educação dos filhos, atividade complementada por trabalho informal antes do casamento e emprego de meio período para melhorar a renda familiar. Meninos poderiam utilizar a sua educação em ocupações artesanais e, no caso de uma minoria capaz, poderiam buscar posições nas novas profissões uniformizadas, como em ferrovias ou no correio, onde a avaliação em leitura e escrita seria requisito de entrada.

Mesmo assim, a alfabetização fez pouco para desfazer as barreiras entre os mundos do trabalho manual e as classes médias. Somente no final do século XIX, foram construídas vias estreitas entre o ensino primário e secundário. Não havia quase nenhuma educação de adultos patrocinada pelo Estado.

A classe permaneceu uma realidade. Tudo o que pode ser dito sobre a Inglaterra do século XIX deve-se à história da relação de classes. Mesmo rigidamente estratificada, constituiu-se como uma sociedade relativamente coesa. O programa Educação para Todos (2006) trouxe os resultados de uma pesquisa que afirmava: "Nos países em desenvolvimento, as taxas de alfabetização subnacionais que estavam disponíveis revelavam disparidades significativas nos níveis de alfabetização entre os diferentes grupos linguísticos, étnicos, religiosos e raciais" (UNESCO, 2005, p. 193).

Havia as minorias linguísticas dos falantes de galês e gaélico, que estavam inicialmente em desvantagem por conta das campanhas de alfabetização realizadas com base no idioma inglês. Mas as denominações religiosas, que no início do século XIX enxergavam na oferta da alfabetização um poderoso meio de afirmar sua autoridade, foram cada vez mais marginalizadas durante a transmissão da responsabilidade da instrução para o Estado, devido à sua incapacidade de financiar o novo sistema de ensino. Na Inglaterra, pelo menos as etnias não foram um fator distintivo. Os migrantes irlandeses em novas cidades compartilhavam a pobreza de oportunidades dos trabalhadores não qualificados em geral. Há pouca evidência de que o ensino fundamental foi especificamente discriminatório em sua prestação ou resultado.

Uma distinção final encontrava-se no que poderíamos chamar de caráter particular das campanhas nacionais de alfabetização. Ao menos já no final do século XVIII, houve um movimento europeu reconhecidamente educacional. Especialistas e reformadores viajaram entre os países, estudando e "roubando" inovações em pedagogia. Durante o século XIX, países modernos mantiveram um olho em cada um deles e comparavam suas taxas de alfabetização, onde elas podiam ser medidas. Mas sempre eles eram os únicos responsáveis por suas próprias realizações. O único organismo internacional foi a União Postal Universal, formada em 1875 para promover e reunir informações sobre o uso internacional de correspondência.

Esse foi, em muitos aspectos, um precursor das modernas organizações mundiais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), mas que não exerceria autoridade sobre seus Estados membros. Não havia a UNESCO, as Metas de Desenvolvimento do Milênio, nem as entidades internacionais para relatar, comparar, financiar e gerenciar campanhas de alfabetização, em nome de declarações globais de direitos humanos. Cada país do século XIX estava livre para encontrar seu próprio caminho para a alfabetização em massa.

Recebido em novembro de 2012

Aprovado em maio de 2013

SOBRE O AUTOR

DAVID VINCENT é PhD pela University of Cambridge (Reino Unido). Professor emérito de história social da The Open University (Reino Unido). E-mail: david.vincent@open.ac.uk

Tradução de Marcus Levy Bencostta

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  • Alfabetização e desenvolvimento

    Literacies and developments
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      Nov 2012
    • Aceito
      Maio 2013
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