Facilitadores e barreiras para a dupla carreira do estudante-atleta de elite: uma revisão integrativa

Facilitators and barriers to elite student-athlete dual careers: an integrative review

Facilitadores y barreras para la doble carrera del estudiante atleta de élite: una revisión integradora

RESUMO

O objetivo deste artigo é sistematizar informações de pesquisas realizadas com estudantes-atletas de elite de diversos países, bem como fornecer uma síntese sobre os facilitadores e as barreiras para dupla carreira. A pesquisa foi realizada no Portal de Periódicos da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em um total de 24 artigos, entre os quais 19 foram publicados a partir de 2018, ao passo que 18 abordaram exclusivamente participantes europeus. Identificou-se facilitadores e barreiras à dupla carreira atuando nos níveis individual, social e de setores fora do ambiente esportivo, em que esforços para o apoio ao estudante-atleta se concentraram nos âmbitos político e institucional. Avanços na dimensão científica e em propostas práticas pautadas em evidências se apresentam como desafios para a área.

Palavras-chave:
Dupla carreira esportiva; Estudante-atleta; Atleta de elite; Revisão

ABSTRACT

The purpose of this article is to systematize information from research conducted with elite student-athletes from different countries and provide a synthesis of facilitators and barriers to dual careers through a search of the CAPES Journals Portal. Twenty-four articles were included. Of these, 19 were published in 2018, 18 of which dealt exclusively with European participants. Facilitators and barriers to dual careers were identified at the individual, societal and non-sporting levels, and efforts to support student-athletes should focus on the political and institutional levels. Advances in the scientific dimension and practical, evidence-based proposals are presented as challenges for the field.

Keywords:
Dual sports career; Student-athlete; Elite athlete; Review

RESUMEN

El objetivo de este artículo es sistematizar la información procedente de investigaciones realizadas con estudiantes-deportistas de élite de diferentes países y ofrecer una síntesis sobre los facilitadores y las barreras a la doble carrera, a través de una búsqueda realizada en el Portal de Revistas CAPES. Se incluyeron 24 artículos. De ellos, 19 se publicaron en 2018; 18 abordaban exclusivamente participantes europeos. Se identificaron facilitadores y barreras para las carreras duales a nivel individual, social y del sector no deportivo, y que los esfuerzos para apoyar a los estudiantes-deportistas deberían centrarse en las esferas política e institucional. Los avances en la dimensión científica y en las propuestas prácticas basadas en pruebas se presentan como retos.

Palabras-clave:
Carrera deportiva dual; Estudiante-atleta; Atleta de élite; Revisión

INTRODUÇÃO

A conciliação esportivo-acadêmica, entendida como o processo em que atletas buscam combinar as rotinas esportivas com a trajetória educacional (Stambulova et al., 2015) tem ganhado destaque na pauta política e institucional em diversos países (Hakkers, 2019; Hong et al., 2022; Stambulova e Ryba, 2013). Tal fato ocorre em razão de a publicação de documentos e as diretrizes internacionais abordarem o tema (European Commission, 2012), bem como a divulgação de pesquisas que, desde o final da década de 1970, vêm apontando consistentemente os benefícios individuais, econômicos e/ou sociais relacionados à dupla carreira de atletas (Li e Sum, 2017; Maciel et al., 2022; Picamilho et al., 2021; Ricci et al., 2022).

Há vasto acervo de evidências científicas disponível, demonstrando que o engajamento de atletas na dupla carreira acadêmica-esportiva pode impactar positivamente a saúde, a sociabilidade, a cognição, a produtividade e o bem-estar (Fleischman et al., 2022; Maciel et al., 2022; Stambulova et al., 2015), favorecendo a inserção e a adaptação a uma carreira alternativa no mercado de trabalho, bem como a transição para uma aposentadoria sustentável e tranquila (Torregrosa et al., 2015). Ademais, os estudantes-atletas podem apresentar expectativas educacionais e níveis de escolarização elevados e melhores que às de seus pares que não são atletas ou da média populacional de seus países (Costa et al., 2021; Olah et al., 2022).

Embora haja muitos argumentos e os esforços para o fomento e a promoção da dupla carreira entre o esporte e a educação,¹ é comum identificar atletas que encontram dificuldades ou se veem privados da possibilidade de desenvolver suas carreiras esportivas junto aos estudos (Aguilar-Navarrete et al., 2020; Bon et al., 2022; Condello et al., 2019). Essa situação acontece em função da existência de diversos fatores (individuais/pessoais, econômicos), bem como do ambiente social e político presentes no contexto esportivo e não esportivo, os quais atuam como facilitadores e barreiras à dinâmica de conciliação da carreira esportiva com as atividades educacionais (Fleischman et al., 2022; Guirola Gómez et al., 2018; Kerstajn et al., 2018; Knight et al., 2018b; Sum et al., 2017).

Como facilitadores para a construção de ambientes esportivos e acadêmicos harmonizados, pautados em práticas éticas e sustentáveis podemos citar: a) a existência de legislação específica; b) o desenvolvimento de recursos pessoais; c) a oferta de apoio social, acadêmico e/ou esportivo (Brown et al., 2015; Capranica et al., 2022; Gavala-González et al., 2019). Ao mesmo tempo, a ausência de tais recursos constituem barreiras que podem tornar os estudantes-atletas mais suscetíveis ao esgotamento tanto físico quanto mental (Brustio et al., 2020a; Linnér et al., 2019), ocasionado o abandono da formação como atleta (Aguilar-Navarrete et al., 2020; Guirola Gómez et al., 2018; Mateu et al., 2020).

Em âmbito internacional os diversos fatores que afetam direta e indiretamente a dupla carreira de atletas vêm sendo discutidos na literatura científica, com enfoque especial nos desafios enfrentados por atletas que integram a elite esportiva (Li e Sum, 2017; Picamilho et al., 2021; Sum et al., 2017). Por atleta de elite compreende-se a pessoa que cumpre programas de treinamentos intensivos, exigentes e de longa duração, alcançando, assim, nível internacional de competição (Damo, 2007; McAuley et al., 2022).

Por causa dos avanços alcançados na dimensão acadêmico-científica nas últimas décadas (Li e Sum, 2017; Picamilho et al., 2021; Stambulova e Ryba, 2014), evidencia-se a necessidade de mais pesquisas que possam auxiliar a ampliação das reflexões sobre os desafios e as possibilidades presentes no processo de dupla carreira acadêmica-esportiva tomando como base as evidências disponíveis. Investigações nesse sentido podem propiciar a formulação de políticas e programas de acompanhamento do ao estudante-atleta, adequados às necessidades dos sujeitos e às diferenças existentes entre os sistemas esportivos e educacionais de cada país (European Commission, 2012; Hakkers, 2019).

No intuito de somar informações a esse cenário, o presente estudo tem como objetivo sistematizar pesquisas empíricas realizadas com estudantes que tenham se tornado atletas de elite, a fim de fornecer uma síntese interpretativa sobre os facilitadores e as barreiras para a dupla do estudante-atleta.

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa de revisão integrativa da literatura realizada pela análise de pesquisas empíricas que investigaram estudantes-atletas de elite de diversos países. O protocolo da pesquisa foi elaborado seguindo as recomendações da literatura especializada sobre a aplicação do método de revisão integrativa, percorrendo as seguintes etapas: a) delimitação do tema e seleção das questões temáticas; b) estabelecimento dos critérios para identificação e seleção de referências bibliográficas; c) compilação, análise dos dados e interpretação dos resultados; d) apresentação do artigo ou da síntese construída (Dantas et al., 2022; Soares et al., 2014; Souza et al., 2010).

O processo de busca e seleção de referências bibliográficas foi realizado no mês de novembro de 2022, mediante a execução de quatro etapas: i) identificação; ii) triagem; iii) elegibilidade; iv) inclusão (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma do processo de busca e seleção de artigos.

Na etapa de identificação foi realizada pesquisa por referências bibliográficas no Portal de Periódicos da Capes, com acesso remoto via Comunidade Acadêmica Federada, usando as palavras-chave: “dupla carreira”, “dupla carreira Esportiva”, “estudante-atleta” com seus equivalentes em inglês (dual career, dual sports career, athlete student) e espanhol (dual carrera, carrera dual deportiva, estudiante atleta), combinadas por meio da utilização dos operadores booleanos AND e OR. Em adição, o recurso “busca avançada”, disponível no sítio eletrônico do Portal de Periódicos, foi utilizado para delimitar o escopo das buscas por linguagem (português, espanhol e inglês), tipo da publicação (artigo) e período (2013 – 2022) – delimitação temporal que levou em consideração o lançamento das diretrizes europeias sobre dupla carreira, documento relevante que estimulou a realização de pesquisas sobre o tema em diversos países visando ao norteamento de ações de apoio ao estudante-atleta.

A pesquisa na base de dados retornou 383 referências bibliográficas, submetidas a um processo de triagem e avaliação de elegibilidade para inclusão na revisão. Os critérios de inclusão adotados foram: a) ser artigo empírico, disponível na íntegra on-line, publicados entre os anos de 2013 e 2022, nos idiomas português, inglês ou espanhol; b) utilizar no título algumas palavras relacionadas ao escopo da pesquisa, a saber: dupla carreira, dupla carreira esportiva, estudante-atleta, atleta de elite; c) ter amostra total ou parcial constituída por estudantes-atletas de elite em atividade; d) ter abordado questões relacionadas aos facilitadores às barreiras ou políticas de apoio à dupla carreira de estudantes-atletas de elite.

Para efeito de exclusão de referências bibliográficas os critérios adotados foram: a) ter abordado o tema da dupla carreira em perspectivas não relacionadas ao esporte e à educação (por ex.: dupla carreira de casais, trabalhadores ou artistas); b) ter abordado exclusivamente populações de atletas não pertencentes à elite esportiva (por ex.: atleta de representação ou praticantes de atividades esportivas) ou atletas aposentados, atletas-trabalhadores ou agentes envolvidos com a dupla carreira, tais como treinadores, professores, pais, entre outros; c) ter centrado na investigação problemáticas não relacionadas ao escopo da pesquisa;² d) publicações em formato de revisão (narrativa, sistemática ou integrativa), validação de instrumentos ou de artigos teóricos/conceituais ou documentos institucionais.

Na etapa de triagem foram excluídas 246 referências bibliográficas por não apresentarem nos títulos nenhuma das palavras identificadas no critério de inclusão “b”. A seguir, realizou-se a leitura dos resumos das 137 referências bibliográficas selecionadas para a aplicação dos demais critérios de inclusão. Esse procedimento resultou na exclusão de referências duplicadas (n = 11), outras apresentadas no formato de artigo de revisão (narrativa, sistemática ou integrativa), que tratavam da validação de instrumento ou eram de caráter teórico/conceitual (n = 20), outras que abordaram simultaneamente o desenvolvimento das carreiras esportiva e educacional ou estudantes atletas (n = 26), bem como algumas que investigaram majoritariamente amostras de atletas aposentados ou que não pertenciam à elite esportiva (n = 23). Por fim, 22 referências foram excluídas por abordarem temas ou problemáticas não relacionadas ao escopo da pesquisa.

Ao final da triagem, 35 artigos foram lidos na íntegra para confirmação de elegibilidade para a inclusão na revisão. Assim, foram excluídos seis artigos por não investigarem atletas de elite ou atletas aposentados, mais um manuscrito em formato de resumo, um artigo de revisão/teórico, e outros três por não atenderem ao escopo da pesquisa, uma vez que enfocaram a avaliação do efeito de programas de intervenção e a medição/exploração de identidade de carreira, identidade atlética e autoeficácia.

Os 24 artigos empíricos incluídos estão relacionados na Tabela 1 com as seguintes informações: a) localização geográfica (país/ região do mundo); b) características metodológicas (abordagem investigativa, população-alvo e instrumento de coleta de dados, modalidade esportiva, grau escolar/acadêmico). Já na Tabela 2 são apresentados os principais resultados relacionados aos facilitadores e barreiras. Os dados foram tabulados em uma planilha Microsoft Excel e analisadas por meio da utilização de estatística descritiva (frequência absoluta e relativa) e técnicas de análise textual (Medeiros e Amorim, 2017).

Tabela 1
Apresentação das características gerais dos 24 artigos incluídos na revisão.

Referência	Local	Nο amostral	Escolaridade/esporte praticado	Aspectos metodológicos
Bon et al. (2022)	Transnacional	14 (♀︎).	ES / Handebol	Qualitativo longitudinal
Capranica et al. (2022)	Transnacional	77 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Qualitativo
Fleischman et al. (2022)	Austrália	867 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Mateo-Orcajada et al. (2022)	Espanha	100 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Olah et al. (2022)	Transnacional	3 (♀︎-♂︎).	ES / Atletismo	Qualitativo
Postema et al. (2022)	Estados Unidos	243 (♀︎-♂︎)*.	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Costa et al. (2021)	Brasil	15 (♀︎-♂︎).	EB e ES / Saltos ornamentais	Quantitativo
Gorenc e Braz (2021)	Eslovênia	112 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo.
Aguilar-Navarrete et al. (2020)	Chile	19 (♀︎-♂︎).	ES / Canoagem	Quantitativo e qualitativo.
Brustio et al. (2020b)	Itália	711 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Brustio et al. (2020a)	Itália	711 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Mateu et al. (2020)	Espanha	11 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Qualitativo retrospectivo
Condello et al. (2019)	Intercontinental	426 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Gavala-González et al. (2019)	Espanha	21 (♀︎-♂︎).	ES / Canoagem	Qualitativo e quantitativo
Linnér et al. (2019)	Suécia	71 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Graczyk et al. (2018)	Polônia	243 (♀︎-♂︎).	EB e ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Guirola Gómez et al. (2018)	Espanha.	11 (♀︎-♂︎).	ES / Remo	Qualitativo
Kerstajn et al. (2018)	Transnacional	123 (♀︎-♂︎).	ES / DM – Individual	Quantitativo
Knight et al. (2018a)	Reino Unido	8 (♀︎-♂︎)*.	EB e ES / DM – indiv. e equipe	Qualitativo
Graczyk et al. (2017)	Polônia	243 (♀︎-♂︎).	EB e ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Lupo et al. (2017)	Itália	616 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Quantitativo
Sum et al. (2017)	Hong Kong e Taiwan	8 (♀︎-♂︎).	ES / DM – indiv. e equipe	Qualitativo
Brown et al. (2015)	Reino Unido	26 (♀︎-♂︎)*.	ES / DM – indiv. e equipe	Qualitativo
Geraniosova e Ronkainen (2015)	Eslováquia.	5 (♀︎-♂︎).	ES / DM – Indiv. e equipe	Qualitativo

• Legenda: DC = dupla carreira; ♀︎ = Feminino; ♂︎ = Masculino; ES = Ensino Superior; EB = Educação Básica; DM = diversas modalidades;
• ^*
  Indica pesquisas que envolveram também agentes de DC, tais como treinadores/professores, pais/familiares, colegas de treino e outros. Fonte: Autores.

Tabela 2
Síntese dos fatores que atuam como facilitadores e barreiras à dupla carreira acadêmica-esportiva.

Político/institucional	Fac.	Bar.
a) Existência de estrutura legislativa nacional relacionada à DC.	☑️	∅
b) Apoio de organizações, clubes e associações esportivas.	☑️	∅
c) Existência programas de DC nas IE: currículos flexíveis, planos de estudo individualizados e ensino a distância, tutor; instalações universitárias; bolsas de estudo.	☑️	∅
d) Cooperação interinstitucional; intra e intersetorial; previsão de abordagem multidisciplinar.	☑️	∅
e) Migração transnacional.	☑️	∅
f) Ausência de amparo legal e apoio institucional: pouco tempo para estudar, falta de assistência em classe (tutor), de flexibilidade curricular, de horários acadêmicos e de treinos.	∅	☑️
Social	Fac.	Bar.
a) Suporte/apoio dos agentes sociais envolvidos com estudante-atleta (pais/familiares, colegas de equipe/amigos, cônjuges, treinadores/professores e outros).	☑️	∅
b) Conscientização e sensibilização da comunidade (esportiva e acadêmica) sobre a condição do estudante-atleta.	☑️	∅
c) Dificuldade na relação com os treinadores, professores e/ou colegas de treino/classe.	∅	☑️
d) Falta de compreensão da condição do estudante-atleta por parte dos agentes envolvidos.	∅	☑️
e) Tempo restrito para participar de atividades sociais ou estar próximo a pessoas estimadas; solidão.	∅	☑️
Econômico/financeiro	Fac.	Bar.
a) Recebimento de bolsas (acadêmica e esportiva).	☑️	∅
b) Subsídios fornecidos pelos órgãos esportivos para manutenção da carreira atlética ou da DC.	☑️	∅
c) Patrocinadores.	☑️	∅
d) Falta de compensação/incerteza financeira como atleta.	∅	☑️
e) Custos do esporte e da educação.	∅	☑️
f) Não recebimento de bolsas.	∅	☑️
g) Potencial econômico da modalidade esportiva.	∅	☑️
Pessoal/individual	Fac.	Bar.
a) Competências e habilidades individuais/pessoais: motivação intrínseca, organização pessoal, compromisso/responsabilidade, tomada de decisões, gerenciamento eficiente do tempo e planejamento de diferentes atividades e rotinas.	☑︎	∅
b) Gestão de relacionamentos: resolver conflitos, negociar, ouvir e aprender com os outros.	☑️	∅
c) Gestão emocional: capacidade de adaptação a novas situações, lidar com a pressão e o estresse.	☑️	∅
d) Ausência de recursos pessoais, sociais e emocionais para lidar com a DC: planejamento ineficiente, dificuldade de se manter focado.	∅	☑︎
f) Estresse, cansaço/sobrecarga, pressão, medo e insegurança com o futuro.	∅	☑️

• Legenda: Fac. = facilitador; Bar. = barreira; DC = dupla carreira; IE = instituição de ensino. Fonte: Autores.

RESULTADOS

A análise dos 24 artigos empíricos incluídos na presente revisão (Tabela 1) revela que a maior parte das publicações ocorreu a partir do ano de 2018 (79,16%, n = 19), as quais foram derivadas de pesquisas desenvolvidas na Europa (Espanha, n = 4; Itália, n = 3; Reino Unido, n = 2; Suécia, n = 1; Eslováquia, n =1; Eslovênia, n = 1; Polônia, n =2). Já nas Américas foram três (Brasil, n =1; Chile, n = 1; e Estados Unidos, n = 1), ao passo que uma foi na Oceania (Austrália, n = 1) e outra na Ásia (Hong Kong e Taiwan, n =1). Outras pesquisas transnacionais envolveram simultaneamente estudantes atletas de dois ou mais países da Europa (n = 4) e da Ásia (n = 1), sendo que uma pesquisa intercontinental envolveu participantes dos cinco continentes.

Os objetivos dos artigos são variados e podem ser sintetizados genericamente como pesquisas interessadas em investigar aspectos relacionados: a) ao apoio (social ou institucional) e incentivo à dupla carreira; b) ao perfil esportivo e educacional dos estudantes-atletas; c) competências e habilidades, interesses, necessidades e desempenho dos estudantes-atletas sobre a dupla carreira; d) experiências de transição; e d) facilitadores e barreiras ou fatores internos e externos relacionados ao desenvolvimento da dupla carreira.

Metodologicamente, identificou-se o investimento em pesquisas de abordagem qualitativa (37,5%, n = 9), quantitativa (54,16%, n = 13) e de métodos mistos – quantitativo e qualitativo – (8,34%, n = 2). Dessas, apenas uma pesquisa foi desenvolvida com um delineamento longitudinal. Na coleta de dados foram utilizados instrumentos/técnicas diversas, tais como análise de documentos, entrevistas individuais, grupos focais e questionários (estruturados e semiestruturados). Os questionários foram utilizados em mais de 58,33% (n = 14) das pesquisas, sendo que em seis investigações houve utilização conjunta de entrevista e grupo focal (n = 3), questionário e entrevista (n =2), e documentos e entrevista (n = 1).

O número de participantes pesquisados variou de três a 867 estudantes-atletas. Em 45,83% (n = 11) das investigações foram abordas amostras iguais ou superiores a 100 participantes, ao passo que atletas de elite e outros agentes envolvidos com a dupla carreira (pais, treinadores/gerentes de equipe, professores/tutores) foram investigados em três pesquisas. Estudantes-atletas de elite de modalidades esportivas individuais e que cursavam o Ensino Superior foram alvo de 70,83% (n = 17) e 75,0% (n = 18) das pesquisas, respectivamente.

Os fatores que atuam como facilitadores e barreiras à dupla carreira acadêmica-esportiva foram identificados nos resultados das pesquisas e agrupados em quatro categorias: a) político/institucional, referente aos marcos legais e programas de DC oferecidos em países e pelas instituições esportivas e educacionais; b) social, referente às relações que o estudante-atleta estabelece com diferentes agentes sociais ao longo da dupla carreira; c) econômico/financeiro, referente ao acesso a recursos econômicos; e d) pessoais/individual, que considera as capacidades e habilidades individuais, a gestão de relacionamentos e emoções.

DISCUSSÃO

Esta pesquisa de revisão integrativa busca somar aos debates e às reflexões que vêm sendo conduzidos sobre a temática da dupla carreira acadêmica-esportiva em diferentes países, sintetizando informações de pesquisas empíricas realizadas com estudantes-atletas de elite e oferecendo uma síntese dos fatores que atuam como facilitadores e barreiras à combinação da carreira esportiva de excelência atlética com as atividades educacionais.

Com base na literatura analisada, a existência de políticas públicas nacionais específicas à dupla carreira é fundamental para garantir amparo legal/jurídico, infraestrutura, transporte de qualidade e bolsas para o financiamento das despesas do esporte e da educação, bem como para nortear as ações das organizações esportivas e das instituições educacionais na promoção de práticas éticas, sustentáveis e que respeitem as necessidades educacionais e os interesses dos estudantes-atletas (Bon et al., 2022; Olah et al., 2022; Sum et al., 2017). Salienta-se que uma pesquisa intercontinental demonstrou que poucos estudantes-atletas conhecem ou estão familiarizados como a existência e a relevância das políticas, programas, iniciativas ou documentos de apoio a dupla carreira (Condello et al., 2019).

Em países onde não há políticas de dupla carreira em vigor os estudantes-atletas de elite precisam lidar com restrições legais e regras administrativas tradicionais que ampliam as dificuldades para o cumprimento das atividades esportivas e educacionais, favorecendo o estabelecimento de arranjos informais que aumentam a responsabilidade da família na dinâmica de conciliação, sujeitando-os ao jugo discricionário dos professores e das instituições de ensino (Brustio et al., 2020b; Rocha et al., 2020). Tais aspectos podem gerar impactos negativos na motivação e na saúde do estudante-atleta, contribuindo para o abandono da dupla carreira (Aguilar-Navarrete et al., 2020; Gavala-González et al., 2019; Guirola Gómez et al., 2018; Kerstajn et al., 2018).

Ficou evidenciado que as oportunidades para o desenvolvimento da dupla carreira acadêmico-esportiva são diferentes para os estudantes-atletas de diversos países (Condello et al., 2019). Assim, observou-se que em países onde a oferta de oportunidades para seguir caminhos de dupla carreira são limitadas a migração esportiva tem se constituído como um caminho importante para o alcance das aspirações de desenvolvimento de carreiras profissional, pessoal, cultural e educacional (Bon et al., 2022; Stambulova e Ryba, 2013).

Já no contexto institucional a análise empreendida revela que as organizações esportivas que pautam suas ações em projetos ou programas estruturados de dupla carreira podem oportunizar ao estudante-atleta planejamentos específicos que prevejam horários de treinos compatíveis com as atividades educacionais, além de logística de transporte e estruturas físicas favoráveis à rotina de estudo, treino e competições (Bon et al., 2022; Olah et al., 2022). O investimento em tais ações pode minimizar o impacto de barreiras recorrentes na rotina dos estudantes-atletas de elite relacionadas à elevada dedicação de tempo ao esporte (concentração, treinos e competições) e à dificuldade de deslocamento para treino e estudo (Aguilar-Navarrete et al., 2020; Guirola Gómez et al., 2018; Mateo-Orcajada et al., 2022; Mateu et al., 2020).

No tocante às instituições de ensino (IE) os estudantes-atletas de elite podem se beneficiar quando são oferecidos programas institucionais de apoio à dupla carreira que prevejam frequência flexível às aulas e sessões de exames, tutoria, aconselhamento de carreira e planos de estudo individualizados (Brustio et al., 2020b; Capranica et al., 2022; Condello et al., 2019). Os cursos à distância também ampliam a possibilidade para os atletas se manterem estudando (Bon et al., 2022; Mateo-Orcajada et al., 2022). Pesquisa realizada em uma universidade britânica evidenciou que a legislação formal para a dupla carreira na IE pode assegurar aos estudantes-atletas dispensa especial, no caso de os compromissos acadêmicos e atléticos coincidirem, e se quiserem estender seus estudos por mais um ano (Brown et al., 2015).

Avançar em programas de dupla carreira que permitam aos estudantes-atletas desenvolver as atividades esportivas e educacionais de forma harmonizada é um desafio a ser superado pelos clubes e/ou pelas IE (Brustio et al., 2020b; European Commission, 2012; Hakkers, 2019). A literatura sugere que fatores como gênero, nível esportivo, cenários enfrentados pelos atletas, modalidades esportivas, tempo de carreira esportiva, bolsa de estudo/esportiva disponível devem ser levados em conta na concepção de futuros programas de dupla carreira promovidos pelas instituições esportivas e educacionais. Além disso, parcerias entre a IE e o governo são relevantes e podem permitir o acesso a uma variedade de serviços de apoio ao estudante-atleta (Graczyk et al., 2017; Lupo et al., 2017; Mateo-Orcajada et al., 2022; Postema et al., 2022; Sum et al., 2017).

Os resultados obtidos apontam para a importância dos fatores econômicos/financeiros no fomento e desenvolvimento da dupla carreira dos estudantes-atletas, bem como destaca que o baixo potencial econômico da modalidade esportiva e a capacidade limitada dos atletas acumularem capital econômico ao longo de suas carreiras esportivas/atléticas se constitui um grande motivador para o investimento em uma dupla carreira (Capranica et al., 2022; Graczyk et al., 2017; Guirola Gómez et al., 2018). Ao mesmo tempo, a carga financeira exigente da dupla carreira é relatada como uma barreira potencial à participação nas atividades esportivas e educacionais, e até responsável por desistências da carreira esportiva ou da educação (Aguilar-Navarrete et al., 2020; Costa et al., 2021; Mateo-Orcajada et al., 2022; Mateu et al., 2020).

Os caminhos apresentados pela literatura como relevantes para apoiar/auxiliar os estudantes-atletas no enfrentamento das dificuldades financeiras é o recebimento de bolsas esportivas e educacionais, com apoio financeiro de clubes, federações/associações esportivas e patrocinadores para cobrir os custos inerentes à preparação para a competição esportiva de alto nível. Em alguns países, o emprego de treinadores e desportistas nas administrações públicas tem sido evidenciado como uma estratégia positiva para ajudar no financiamento da dupla carreira (Costa et al., 2021; Olah et al., 2022). Aspectos interessantes são a recomendação de práticas colaborativas e a implementação de processos estratégicos que alinham as dimensões esportiva e educacional para ajudar os estudantes-atletas a lidar com os custos da dupla carreira.

A literatura analisada indica também que diversos agentes sociais – família/pais, professores e treinadores, colegas de treino/equipe e de classe, assim como o companheiro (cônjuge), patrocinadores e demais membros/profissionais – que integram as instituições de ensino e os clubes exercessem influência importante no bem-estar (Fleischman et al., 2022), na tomada de decisão e no apoio nas esferas emocional, motivacional, material/financeiro do estudantes-atletas de elite (Geraniosova; Ronkainen, 2015; Kerstajn et al., 2018; Knight et al., 2018b; Sum et al., 2017).

No entanto, verifica-se que, quando os agentes sociais envolvidos com a dupla carreira não estão conscientes ou estão preocupados com a condição do estudante-atleta, eles podem acentuar a carga de pressão e cobrança por resultados ao atuar no sentido de promover sobreposição de importância e conflitos na dinâmica de conciliação das atividades esportivas e educacionais, ampliando os desafios enfrentados pelo estudante-atleta (Aguilar-Navarrete et al., 2020; Guirola Gómez et al., 2018; Kerstajn et al., 2018).

Esses achados fundamentam a importância de o estudante-atleta de elite ter acesso a uma rede de apoio coerente e qualificada, capaz de reconhecer e atuar sobre as demandas explícitas do esporte de elite e da educação nos diversos espaços de convivência (Knight et al., 2018b). Para tal, torna-se relevante que os relacionamentos estabelecidos durante o percurso da dupla carreira sejam estimulados e aprimorados por meio de serviços que favoreçam a orientação e a conscientização, bem como que promovam o diálogo entre os agentes envolvidos (incluindo estudantes-atletas mais experientes como modelos). Estratégias utilizadas para esse fim preveem a realização de seminários, workshops e reuniões periódicas, por exemplo (Brustio et al., 2020a; Capranica et al., 2022; Guirola Gómez et al., 2018; Kerstajn et al., 2018; Sum et al., 2017).

Esta pesquisa identificou que competências e habilidades pessoais e emocionais como motivação, autodisciplinados, gerenciamentos de tempo e de relacionamentos e emoções tendem a facilitar de forma importante a conciliação entre as atividades esportivas e educacionais (Kerstajn et al., 2018; Linnér et al., 2019; Lupo et al., 2017; Postema et al., 2022; Sum et al., 2017). Um estudo realizado com atletas do handebol feminino evidenciou que a migração pode promover o desenvolvimento de novas habilidades e competências, além de aumentar a motivação para seguir uma dupla carreira (Bon et al., 2022). Outros achados demonstram também que o recebimento de bolsas de estudo se relaciona de forma positiva ao aumento na motivação intrínseca necessária para continuar estudando e competindo (Gavala-González et al., 2019; Guirola Gómez et al., 2018) e que pessoas com escolarização superior conseguem lidar de forma mais satisfatória com as competências e os cenários que se apresentam no percurso de uma dupla carreira (Graczyk et al., 2018).

Observou-se também que muitos estudantes-atletas não possuem e/ou não conseguem desenvolver habilidades e competências pessoais ao longo dos seus processos de dupla carreira. Consequentemente, tais sujeitos tendem a ser acometidos por sentimentos de medo, frustração, ansiedade e outros, os quais geram prejuízos à sua saúde mental e podem levar ao abandono do esporte ou da educação (Brustio et al., 2020a; Linnér et al., 2019; Mateo-Orcajada et al., 2022; Mateu et al., 2020; Sum et al., 2017).

Esses resultados ratificam a necessidade de oferta de programas de dupla carreira pautados em uma concepção holística que, além de prever condições para o desenvolvimento atlético, acadêmico e socioeconômico, contemplem intervenções psicológicas que possibilitem aos estudantes-atletas (e demais agentes envolvidos com a dupla carreira) a aquisição de recursos necessários para autossuficiência no enfrentamento das demandas e exigências relacionadas ao engajamento na dupla carreira acadêmica-esportiva esportiva (Brustio et al., 2020b; Capranica et al., 2022; Guirola Gómez et al., 2018; Mateo-Orcajada et al., 2022).

Uma limitação da presente pesquisa diz respeito às escolhas metodológicas empreendidas que não abrangeram a consulta às bases de dados específicas da área de dupla carreira esportiva, segundo demonstrado por Cadavid et al. (2021). É importante destacar que os artigos analisados retratam pesquisas que investigaram estudantes-atletas com características sociodemográficas (e.g.: idade, sexo e raça) bastante heterogêneas, de diferentes modalidades esportivas e de distintos graus acadêmicos, exigindo cautela na generalização dos dados. Tais aspectos devem ser considerados em pesquisas futuras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise de parte das pesquisas realizadas na última década sobre o tema dupla carreira acadêmica-esportiva demonstram que diversas ações têm sido empreendidas para que os estudantes-atletas de elite de diferentes países consigam conciliar suas atividades da carreira esportiva com a trajetória educacional. Em que pese o enfrentamento de diversos desafios, observou-se o interesse e a relevância atribuída pelos atletas aos estudos e a compreensão de que a experiência com a dupla carreira tem repercussão positiva no desenvolvimento das esferas cultural, pessoal, social, esportiva e/ou acadêmica.

Ademais, os achados empíricos compartilhados pelos artigos analisados revelam que para lidar com as demandas de dupla carreira acadêmica-esportiva os estudantes atletas de elite precisam desenvolver competências, habilidades, atitudes, adquirir conhecimento e conseguir gerenciar suas emoções e seus sentimentos. Além disso, é fundamental que haja o apoio dos diversos agentes sociais (pais/familiares, treinadores/professores, colegas de treino e classe, e outros) envolvidos com os estudantes-atletas, de modo a obterem base legal e estrutura de apoio institucional (programas de DC, bolsas esportivas e/ou educacionais). Tais aspectos desempenham um papel crucial na facilitação ou na restrição no processo de conciliação da carreira esportiva com o desenvolvimento educacional.

• 1
  O programa European Community Action Scheme for Mobility of University Students (ERASMUS+ Sport) é um exemplo de programa que busca promover práticas éticas e sustentáveis para desenvolver um ambiente esportivo e acadêmico harmonizado, eficaz para atletas talentosos e de elite, respeitando suas necessidades educacionais.
• 2
  Foram consideradas como temas de pesquisa não relacionados ao escopo da revisão: e.g. saúde/doença de atletas; perfil cognitivo e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), bornout; qualidade de vida e do sono ou mal-estar de atletas; concussões/lesões no esporte; dopping; medos relacionados a carreira futura; analise de aspectos psicológicos específicos: stress, ansiedade ou estado emocional pré-competitivo e etc; impacto específico da pandemia do COVID-19 na saúde mental e no desenvolvimento da dupla carreira.

• FINANCIAMENTO

  O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  27 Nov 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  28 Jul 2023
• Aceito
  06 Set 2023